Ainda sobre obra vs. biografia


Depois de muito ler aqui, no Facebook e no Twitter opiniões as mais variadas possíveis sobre o post O gênio e o monstro, pensei em alguns pontos sobre a questão:

1) Ela ficaria mais bem colocada da seguinte maneira: é justo celebrar um autor cujas atitudes ou convicções causem repulsa, mas cuja obra seja genial? (Lembrando que eu complementava: é justo desmerecer uma criação artística genial pelos desvios de personalidade de quem está por trás dela?).

Afinal, toda a polêmica sobre Céline está na celebração do autor, não da obra – a efeméride que motivou a discussão na França não é relacionada a algum livro dele, mas à biografia, já que diz respeito aos 50 anos de sua morte. Mesmo quem prefere analisar a obra sem pensar na biografia há de convir que a celebração por efeméride envolve a imagem do autor. É claro que essa homenagem pode ser feita com a contextualização de pontos positivos e negativos do pensamento do autor. A homenagem a Gilberto Freyre na última Flip, por exemplo, deu margem para uma boa discussão nesse sentido.

2) Meu editor colocou na sexta-feira uma questão (já analisada na ficção, como lembraram) que cheguei a levantar no Facebook, mas para a qual não tive resposta: Hitler, como muitos sabem, era escritor e desenhista frustrado. Se, em vez disso, tivesse deixado junto com seu legado político uma criação literária ou artística absolutamente genial… seria possível fazer essa separação?

14 Respostas

  1. […] Update em 21/2: leia mais sobre a questão neste post. […]

  2. deixando os argumentos de lado (se é que isso é possível), eu diria apenas que me parece muito possível amar uma obra e, ao mesmo tempo, odiar o homem que a escreveu.

  3. Estava gostando do post, seguindo a argumentação e refletindo a respeito da questão obra x autor. Aí surgiu o golpe final … lançar Hitler em qualquer discussão é muito primário, o chamado golpe baixo ou “reductio ad absurdum”. Que idéia infeliz a deste editor! Por que não nos atermos a exemplos palpáveis, como o antissemitismo de Céline, Erza Pound e seu apoio ao fascismo, Borges e seu apoio a ditadores argentinos e chilenos para ficarmos em alguns apenas. Hitler não dá!! É o fim de qualquer discussão adulta.

    • Oi, Claudio. Não acho infeliz a sugestão dele, já que Hitler de fato tinha ambições artísticas e deixou livros e desenhos para a posteridade – há um bom livro lançado pela Companhia, A Biblioteca de Hitler, que aborda a qualidade dessa produção. Tanto é relevante que, como citou o Del Rey no Facebook, a própria literatura já tratou dessa possibilidade, em obras como The New Adventures of Hitler, de Grant Morrison, e The Iron Dream, de Norman Spinrad. É, sim, um argumento radical, mas acho válido levantar esse ponto porque uma redução comum é falar em censura (como aconteceu no debate sobre Lobato, por exemplo). Sobre os outros exemplos que vc deu, não voltei a eles aqui, mas foram bastante discutidos no Facebook e lembrados no texto do Llosa. Beijo, Raquel

  4. Sinceramente, acho que a obra é muito maior que o autor. Não tenho receio nenhum em dizer que mesmo discordando da posição político-ideológica do escritor,não teria preconceito nenhum em lê-lo. Cito, por exemplo, Mario Vargas Llosa. Mesmo sendo ele um defensor ferrenho da globalização e do neoliberalismo.

  5. Imaginar um Hitler com talento para deixar uma grande obra literária ou de outro gênero é uma ideia apropriada para meditar e argumentar. Acho que as paixões humanas têm uma força cegante poderosa. Não conseguimos – falo da maioria absoluta dos homens — olhar isentamente o trabalho de arte de alguém que odiamos, ou a respeito do qual temos até apenas reservas. Um maravilhoiso livro de poesias de Adolf Hitler seria considerado fraco ou repulsivo pelo comum dos homens. Não foi assim com Borges, quando ele ainda não era consagrado no exterior da Argentina? O cara elogiou os milicos que tomaram o poder lá, e a partir daí grandes intelectuais argentinos, chilenos e brasileiros passaram a desprezar o obra de Borges, não apenas suas declarações sobre os milicos. O exemplo imaginário de um Hitler serve, mas o exemplo concreto de Borges é ainda mais forte.

  6. a)
    Mudando de “arte”, da literatura para o cinema: Eu não conheço bem a biografia dela (e, portanto, não sei como ela justificou ou se justificou suas ligações políticas), mas a obra da cineasta Leni Riefenstahl é “indiscutível”(http://en.wikipedia.org/wiki/Leni_Riefenstahl).

    Seria uma situação equivalente..? Não quero ser polêmico, apenas gostaria de saber… Não sei se ela chegou a rever ou repensar verdadeiramente suas crenças.

    b)
    Alguns anos atrás, lembro de ter ouvido no rádio a história absurda de um escritor da Europa Oriental que teria cometido assassinatos para realizar sua obra. Não sei se é lenda. Mas encontrei uma fonte intrigante aqui: http://www.speculum.art.br/novo/?p=1168

  7. A lembrança ao Vargas Llosa feita pelo Calixto é realmente oportuna. Llosa tem uma posição política da qual discordo totalmente, e achei sua conferência proferida em Porto Alegre por ocasião do Fronteiras do Pensamento de uma deselegância animalesca quando se referia a Michel Foucault descaracterizando a obra com argumentos baixos ad hominem. Mas nada disso mudará meu juízo sobre o valor da OBRA literária de Llosa – obra que vi já ser descaracterizada em críticas rasteiras por motivos ideológicos, principalmente quando comparada com a de García Márquez, que, para o resenhista em questão, claramente estava do lado “apropriado” do espectro político.

  8. Fui surpreendido com a sua questão levantada no final do texto, na minha opnião caso Hitler tivesse levado a sério este lance de ser escritor, suas obras seriam como o famoso “O Apanhador no Campo de Centeio”, que é sobretudo devida à polêmica envolvendo Mark Chapman, o assassino de John Lennon, que quando capturado pela polícia, carregava este livro consigo. Quando questionado sobre o porquê de ele ter assassinado o ex-Beatle, Chapman respondeu “Leia O Apanhador no Campo de Centeio e você descobrirá porque o fiz. Esse livro é meu argumento”. Outro fato curioso é que o atirador que tentou matar R.Reagan, afirmou a mesma coisa, ou seja, que teria tirado do livro a inspiração para matar o presidente Reagan. Por isso, O Apanhador acabou se tornando o livro mais vezes banido da Literatura, porem até mesmo muita gente o criticando, ele ainda continua a vender e muito, talvez devido a curiosidade de muitos, pois não é um livro empolgante e na minha opnião, longe dos bons.

  9. Olá,

    1 – Não é justo, mas a pergunta não traz sentido. Apreciação estética não é uma forma de justiça, já que não há um controle ético sobre ela. A idéia medieval de que o belo é verdadeiro e divino não é verdadeira. A Beleza pode provocar algo terrível, disto os gregos, que já sabiam de tudo, já sabiam. Helena causa uma guerra. Na peça As Troianas ela é julgada moralmente como causa da guerra. É por isso que a discussão Caçadas de Pedrinho está sem foco: combate ao racismo é uma questão de ética, não literatura. O parecer do censor na verdade quer dizer que nossos professores, nossas salas de aula são incapazes de lidar com a questão ética. E isto invade uma aula que deveria lidar com a apreciação estética.

    2 – Nós fazemos esta separação. Hitler é claro, era medíocre. Até do ponto de vista filosófico. Mas outros grandes artistas “escapuliram”, não vamos nos esquecer que Virgilio escreveu a Eneida para louvar Augusto, um ditador e a sua ditadura. Que a Capela Sistina é uma obra que diz quão grandiosa e poderosa Roma era. Que livros como a Bíblia e o Alcorão carregam ideologias religiosas e ainda assim podem ser lidos e são lidos pela questão estética. O problema é um só, Beleza não é democrática. A qualidade artística não é para todos.

    • Oi, João. No caso do Lobato, não era censor, tratava-se de um parecer. O debate começou errado daí. Sobre a coisa das aulas, a questão é que, na prática, falando com crianças pequenas e pensando na realidade da escola pública brasileira… Isso é bem diferente de uma discussão de ética e estética no plano das ideias. Sobre fazer essa separação, eu acho que faço, sim, até pelo exemplo que dou do Polanski. Mas vi no Facebook comentários de gente que não faz por convicção. Cada qual com a sua. Gracias pela visita, beijo

    • Só gostaria de esclarecer algo, sei que o parecer não foi uma proibição. Ele apenas pediu para que fosse avaliado e que talvez fosse incluso notas explicatórias. Mas é uma censura, a pobre palavra anda sendo mal-vista por conta dos abusos militares, mas o parecer impõe uma delimitação de uso, apreciando seus valores. E esta censura não é abuso, isto sim é um erro do debate, só por ser um autor clássico, ele não pode ser avaliado? (E no fim, o governo não costuma adquirir livros clássificados como racistas, se não fosse um famoso, a discussão não ocorreria).

      Concordo que na prática a questão com educação básica é complicada e que a situação brasileira é longe de ser exemplar. Mas o engraçado é que situação similar ocorreu nos Estados Unidos com o Mark Twain, um outro sistema de ensino, com um autor menos dúbio que Monteiro Lobato, e o resultado foi similar. (Apesar da emenda ter sido pior que o soneto, já que trocaram a ofensa racial pela ofensa ainda maior, que é a escravidão).

      O prazer foi meu, se você quiser, visite o nosso site, temos colunas lá. Será um prazer.

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