A China operária nos anos 2000

Não me surpreendeu a repercussão nos comentários do Estadão.com sobre a capa de sexta do Caderno 2 para minha entrevista com Leslie T. Chang, ex-correspondente do Wall Street Journal em Pequim e autora do livro As Garotas da Fábrica. Os leitores se dividem entre quem acha o resultado da pesquisa manipulador e os que defendem que, ao contrário da jornalista, nenhum dos críticos entre os comentaristas esteve na China, não tendo portanto base para questioná-la.

De fato, ao pegar o título, eu esperava ler apenas denúncias sobre as péssimas condições de trabalho das operárias chinesas, já que a mulher ficou quatro anos só conversando com pessoas que trabalham nas fábricas e conhecendo Dongguan, cidade de 9 milhões de habitantes em que tudo gira em torno das indústrias (e que, pelas descrições dela, me lembrou uma coisa opressiva no estilo Brooklands, o subúrbio londrino descrito por J.G. Ballard em O Reino do Amanhã).

Há muito lá sobre isso, é claro. Se elas largam um emprego, ficam sem receber dois salários. Não têm direito a ver por dentro a fábrica onde vão trabalhar até serem contratadas. Não podem conversar durante o expediente, sob o risco de terem descontado parte do salário. Mas o livro segue rumo inesperado ao acompanhar bem de perto algumas dessas personagens. Não é fácil defender algo que já movimentou ativistas de direitos humanos (com resultados visíveis, segundo o livro), mas em alguns pontos Leslie Chang foi especialmente firme na nossa conversa: jornais tendem a procurar a manchete e generalizar; ainda não são as condições ideais de trabalho, mas as alternativas são muito piores; é o que eles querem e é o que lhes permite sair da linha da pobreza para uma nova classe média.

A crítica mais forte no Estadão.com, feita por um leitor protegido pelo codinome Clefonésio Astrogildo, com toda essa macheza opinativa que o anonimato permite, levanta pontos relevantes. Mas tudo o que questiona (incluindo o erro de avaliação do leitor) está descrito e muito bem explicado no livro. Ficou de fora da reportagem porque resumir  400 páginas em um pequeno texto com entrevista e ainda levantar novas questões também implica deixar muito de fora.

Enfim. A entrevista está abaixo. A quem quiser questionar a autora com propriedade, recomendo antes ler o livro, porque não posso fazer isso por ela. Mas é claro que comentários de quem assina embaixo são sempre bem-vindos.

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O olhar feminino sobre a vida operária na China

Livro ‘As Garotas da Fábrica’ investiga como as indústrias mudaram a rotina das jovens no país

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Uma sátira a um anúncio da Nike que corre na internet mostra uma menininha chinesa de laço no cabelo costurando um tênis. Acima, o slogan da marca: “Just do it” (apenas faça isso). A ilustração alude às denúncias feitas nas últimas décadas contra grandes empresas americanas, acusadas de contratar mão de obra escrava e infantil em países asiáticos. Por curiosidade, a maior fabricante de tênis da Nike, a empresa Yue Yuen, foi a única que aceitou abrir as portas para a jornalista Leslie T. Chang quando ela iniciou as pesquisas para o livro As Garotas da Fábrica (2008), que sai agora aqui pela Intrínseca.

Nos anos 90, operários chineses trabalhavam até mais de 24 horas seguidas e tinham só uma folga por mês. Depois que ativistas dos direitos humanos protestaram contra as condições nas fábricas, as marcas americanas passaram a pressionar fornecedores a melhorá-las. Não chega a ser o paraíso na Terra – a jornada hoje é de 11 horas, com folgas aos domingos, e operários dividem dormitórios com uma dezena de colegas -, mas, na cidade industrial de Dongguan, ao sul do país, muitos consideram Yue Yuen um bom lugar para trabalhar.

Leslie Chang, americana que trabalhou de 1998 a 2005 como correspondente do Wall Street Journal na terra de seus pais, quis contar essa história por um ângulo que os jornais não abordam, o de como a industrialização transformou a trajetória de mulheres que saem das aldeias em busca de projeção na vida. Escolheu a metrópole de Dongguan, que tem algo em torno de 9 milhões de habitantes e cuja origem é indissociável das centenas de fábricas que compõem seu cenário, e ali acompanhou operárias por quatro anos, tempo em que as viu prosperarem, abrirem negócios, fecharem negócios, casarem. Veja a seguir os principais trechos da entrevista que Leslie deu por telefone ao Estado, de Colorado (EUA), onde vive com o marido.

Pelo que você conta no livro, a vida nas fábricas chinesas é melhor hoje do que quando surgiram as primeiras denúncias sobre as condições de trabalho…

Sim. De forma gradual, os pagamentos e as condições vêm melhorando. Se você olha para dez anos atrás, com certeza era tudo pior. Mas acho que, desde o início, as pessoas tiveram uma concepção errada dos trabalhadores migrantes, imaginando-os como escravos, todos oprimidos. Quis fazer o livro para mostrar um retrato mais completo e complexo desse cenário, para saber como essas pessoas veem suas próprias vidas. E não sinto que se vejam como vítimas.

E quanto a casos de fábricas que escravizam trabalhadores?

Bem, há algumas coisas sobre isso. Em primeiro lugar, o jornalismo – e eu fui jornalista por um bom tempo – tende a focar em casos de abuso ou injustiça. Então, o retrato que emerge dos trabalhadores não é o espelho de como é a vida da grande maioria deles. Fui atrás não das manchetes, mas do cotidiano. Outra coisa é que, quando você diz que um trabalhador ganha US$ 100 por mês, isso parece muito pouco, algo quase escravizante. Mas, quando vê o custo de vida dos trabalhadores, percebe que US$ 100 dá para muita coisa. Eles podem fazer todas as refeições pelo mês inteiro por US$ 3 ou US$ 4 e mandar de US$ 60 a US$ 80 para casa todo mês, o que é mais do que os pais deles ganham num ano inteiro. A quantidade de dinheiro que para nós parece pouco para eles é a diferença entre estar na pobreza ou fazer parte da classe média. Um dos pontos do livro é comparar a vida das mulheres com a que levavam nas aldeias de onde saíram. Trabalhar na fábrica não é viver no paraíso, mas é o que elas querem.

É curioso que as mulheres sejam quem mais tem a ganhar com as fábricas, sendo mais contratadas que os homens, por causarem menos problemas.

Antes de começar a escrever, tive contato com a parte rural do país. Aquilo sim é opressivo para jovens mulheres. Não há oportunidades, é uma cultura muito tradicional, sexista. Imaginava que viver na cidade poderia ser positivo para meninas de 18 anos, mas não sabia até que ponto até conversar com elas e ouvir suas histórias. Conheci migrantes mais antigas, que foram para Dongguan no início dos anos 90, e em 10 ou 15 anos elas mudaram para uma classe mais alta. Têm cargos mais altos dentro das fábricas, compraram apartamentos e carros, casaram-se, tiveram filhos. Se você vê só casos isolados, como fazem os jornais, não nota isso.


Sua descrição de Dongguan é a de uma cidade opressiva. Vendo imagens no Google, nem parece tão mal assim…

(Risos) Sim, sim. Quando comecei a escrever sobre a cidade, eu a achava opressiva, difícil, áspera. Ficava cansada só de estar lá. À medida que fui conhecendo as garotas e passando tempo com elas, Dongguan começou a ganhar vida para mim. Comecei a vê-la pelos olhos delas, com os restaurantes e parques que elas frequentavam, e aquilo se tornou um lugar mais humano.

Em que ponto decidiu incluir a história de seus antepassados, também migrantes, no livro?

Nasci e cresci nos EUA, e nunca tinha investigado nada sobre meus antepassados. Quando comecei a pesquisa, pedi licença no jornal e consegui tempo para visitar a aldeia da minha família, onde conheci parentes. Comecei a comparar as vidas deles com as das novas migrantes, e vi na história de meus avós e bisavós paralelos interessantes com as dessas garotas, no sentido de deixar tudo para trás em busca de uma vida melhor.

Alguma autoridade ou fábrica dificultou suas pesquisas?

Não muito. Queria escrever um capítulo sobre a vida dentro da fábrica, então entrei em contato com várias delas, e só Yue Yuen liberou e me deu acesso total a suas instalações. Acabei não tentando entrar em outras. O que acontecia com frequência era ouvir de garotas o pedido de que não as acompanhasse, para não lhes causar problemas.

Nesses dez anos em que viveu na China, o boom econômico foi muito perceptível?

Muito. Você vai a um restaurante e, quando volta, meses depois, toda a vizinhança foi derrubada para a construção de prédios. As cidades mudam mês a mês, e também a vida das pessoas. Em 1998, o governo anunciou um programa para incentivar a compra de apartamentos. Na época, meus amigos jornalistas e eu achávamos que isso não ocorreria, mas cinco anos depois todos tinham seus apartamentos. A mesma coisa com carros. A impressão que tenho é que eles estão se tornando modernos na economia, mas preservam ideias tradicionais. Mesmo as garotas das fábricas. Elas são livres, vivem com namorados, mas, ao mesmo tempo, querem casar cedo e ter filhos. E acham que têm que dar dinheiro aos pais porque devem a eles a educação recebida.

Mas há a questão da corrupção em todos os níveis, de que você trata no livro.

Acho que o mais difícil para os migrantes é viver nessa sociedade corrupta não só politicamente, mas também no nível pessoal, na qual todo mundo mente o tempo todo. Saí de Dongguan com a impressão de que essa é a pior coisa para a sociedade chinesa e o sistema político. Os maiores problemas não têm a ver com condições fabris, mas com a falta de saúde moral.

TRECHO

“Quando se encontrava uma garota de fábrica,…

…a primeira coisa era saber as referências. De que ano você é?, perguntava uma à outra, como se não estivesse falando de um ser humano, mas de fabricação de carros. Quanto por mês? Incluindo quarto e refeições?Quanto pelas horas extras? Podia então perguntar de que província era. Mas nunca perguntava o nome.

Ter uma amiga de verdade dentro da fábrica não era fácil. Dormiam 12 garotas em um quarto, e naquele ambiente claustrofóbico do dormitório era melhor guardar segredo. Algumas entravam para a fábrica com carteiras de identidade emprestadas e nunca diziam a ninguém os verdadeiros nomes. Outras só conversavam com colegas de sua província de origem, mas isso tinha lá seus riscos: o disse me disse percorria célere o caminho da fábrica até a aldeia, e, quando elas voltavam para casa, as tias e as avós sabiam quanto tinham ganhado, quanto tinham economizado e se saíam com rapazes.”

QUEM É

LESLIE T. CHANG
ESCRITORA

Filha de chineses que migraram para os Estados Unidos, Leslie Thonghe Chang formou-se em história e literatura americana pela Universidade de Harvard. Mudou-se para a China, em 1998, para trabalhar como correspondente do Wall Street Journal em Peguim, função que ocupou até 2005. De 2004 a 2007, fez as pesquisas para As Garotas da Fábrica (2008), seu primeiro livro. Vive hoje nos EUA.

Lógica humana

Chegou às livrarias nesta semana a melhor graphic novel que li neste ano, Logicomix.  Escrevi sobre ela no Sabático de hoje, no Estadão.

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O lado humano da busca lógica

A partir da biografia do pensador inglês Bertrand Russel, Logicomix, elogiada graphic novel grega que acaba de chegar ao Brasil, traduz em aventura visual os intrincados fundamentos da matemática

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Foi a matemática que salvou Bertrand Russell (1872-1970) de seus arroubos suicidas juvenis. A noção que o filósofo e matemático inglês tinha desse fato, que ele tornaria público tempos depois na autobiografia Greek Exercises, ajuda a entender por que, dentre os tantos gênios da ciência exata no século passado, foi ele o escolhido para protagonizar a graphic novel Logicomix, recém-lançada pela WMF Martins Fontes.

Publicada na Grécia em 2008, Logicomix pode ser definida numa sinopse mais apressada como uma trama sobre a busca pelos fundamentos lógicos da matemática. Mas, fosse apenas uma espécie de manual para iniciantes, não teria arrebatado público ao ponto de liderar a lista de HQs mais vendidas do New York Times por semanas a fio e, ao mesmo tempo, arrancado elogios derramados da crítica internacional. “Queríamos uma história sobre as pessoas e as paixões que moveram suas ideias”, diz o roteirista Apostolos Doxiadis, em conversa por telefone com o Estado, de Atenas. A proposta aumentou a complexidade da narrativa, cuja elaboração exigiu dois anos de discussões e outros cinco para roteiro e arte, com uma equipe que incluía o especialista em lógica Christos H. Papadimitriou e os desenhistas Alecos Papadatos e Annie Di Donna.

Um lógico ciente de suas fraquezas era o personagem ideal para humanizar essa história. Descendente de nobres, Russell foi, além de filósofo e matemático, ativista político, ícone do pacifismo e galanteador incorrigível (casou-se quatro vezes, teve três filhos e apaixonou-se pela mulher de seu mais duradouro parceiro intelectual, Alfred North Whitehead). “Ele era muitos. Mudou várias vezes de ponto de vista, de filosofia, de posição política. Quando alguém fala sobre Russell, a questão é sobre qual está falando, qual idade, qual mentalidade, qual teoria. A única coisa que permaneceu por toda a vida foi a insatisfação com o que não podia explicar”, analisa Doxiadis. Por esse aspecto, Logicomix engloba vários Russells, já que o segue da segunda metade da década de 1870 até 1939. E se dá o direito de alguma “liberdade quadrinística”, inclusive nas participações de nomes célebres como Kurt Gödel, Gottfried Leibniz e Ludwig Wittgenstein.

Wittgenstein, intenso

Não menos intrincada é a forma da narrativa. Como uma matrioska, a boneca russa que contém outras similares dentro de si, ela se constrói em camadas, na definição de Doxiadis. A exterior tem como personagens os autores da HQ, envolvidos na tentativa de esclarecer para eles mesmos o que será tratado nas páginas a seguir. Eles apresentam os fatos da segunda camada, na qual Russell chega a uma universidade americana, em 4 de setembro de 1939 – logo depois de o Reino Unido entrar na 2ª Guerra -, convidado a palestrar sobre a lógica nas questões humanas. É abordado na entrada por manifestantes, que clamam por seu apoio pela não-participação dos EUA no conflito, e os convence a entrar no auditório para ouvi-lo.

Na palestra, Russell passa a narrar a terceira camada, cronológica, que começa no dia em que ele, criança, vai morar com os avós e se vê num ambiente de regras rigorosas e ardor religioso. É nesse cenário que trava o primeiro contato com a matemática. Logo percebe uma insatisfação com aquela “mágica” que agora o fascina – a existência de fatos aceitos sem provas, como o axioma “através de um ponto exterior a uma reta só é possível passar uma reta paralela a ela”. “De que vale uma demonstração que se baseia em algo não demonstrado?”, questiona o garoto ao professor na graphic novel. A imagem o perseguirá pelo resto da vida: “A matemática era como o cosmos da mitologia indiana: sua aparente solidez na verdade dependia dos caprichos dos animais que o carregavam. A matemática se erguia sobre bases instáveis.”

Loucura. É irônico que, no sentido emocional, tenha sido também sobre bases instáveis que se construiu o pensamento da época. A estranha relação entre lógica e insanidade é outro tema central da HQ, que desfia exemplos. A loucura acometeu o russo Georg Cantor (1845-1918), “o homem que provou da árvore do conhecimento do infinito”, e o alemão Gottlob Frege (1848- 1925), autor dos Fundamentos da Aritmética; já o austríaco Gödel (1906-1978) morreu de fome, paranoico com a ideia de ser envenenado. Russell não perdeu a razão, mas temeu isso toda a vida. Dois de seus tios eram loucos e um filho sofria de esquizofrenia, assim como uma neta, que se suicidou. “A alta incidência de doenças mentais entre os fundadores da lógica foi algo sobre o que escreveu (o filósofo e matemático ítalo-americano) Gian-Carlo Rota. Faz sentido se pensarmos que a lógica leva a extremos”, analisa Doxiadis.

O jovem Bertrand Russell se colocava no limiar entre a filosofia e a matemática. Era seguidor do alemão David Hilbert (1862- 1943), que pregava a rigorosa exatidão da demonstração na matemática. O outro extremo tinha como maior nome o francês Henri Poincaré (1854-1912), defensor da importância da intuição. Mas, por curiosidade, a maior contribuição do inglês para a discussão enfraqueceu o lado que ele defendia. Foi em 1901, quando lhe ocorreu a questão que viria a ser exemplificada mais ou menos desta forma: os homens de uma cidade são obrigados por lei a fazer a barba todo dia. Eles podem fazer a própria barba ou recorrer ao único barbeiro local, cuja atribuição é barbear só aqueles que não fazem a própria barba. Assim sendo, quem faz a barba do barbeiro?

Russell descobrindo o paradoxo do barbeiro

Parece um simples jogo de palavras, mas, para a busca da base lógica na matemática, foi um baque. A ponto de, dois anos depois, Frege ter incluído um adendo no seu segundo Fundamentos da Aritmética: “Poucas coisas podem ser mais desastrosas para um autor de textos científicos do que ter um dos pilares de sua empreitada abalado depois de concluir sua obra. Vi-me nessa situação ao receber uma carta do sr. Bertrand Russell, justamente quando o processo de publicação deste volume estava quase concluído.” Russell e Whitehead passariam duas décadas tentando resolver isso em estudos que resultariam nos três volumes do Principia Mathematica. Não foram bem-sucedidos, mas plantaram as bases que inspiraram Gödel e Wittgenstein, entre outros, e foram fundamentais à ciência da computação.

Ficção. Formado em matemática na Universidade de Columbia, Doxiadis experimenta a intersecção com a ficção desde 1992, quando publicou o best-seller Tio Petros e a Conjectura de Goldbach (Editora 34). “Estou acostumado a me dirigir a pessoas que não entendem de matemática. Acredito que os leitores dos meus dois livros, em geral, gostam de literatura, e não de obras de ciência popular. Mas não vejo sentido em tornar as coisas difíceis para o leitor, em fazê-lo trabalhar para entender o que está lendo.” Sempre hábil com as palavras, o autor fica vários segundos em silêncio ao ser questionado sobre por que resolveu contar a história numa HQ. Por fim, argumenta: “Eu nunca poderia escrever um romance histórico. Isso exigiria enormes descrições, e elas me entediam. Tenho mais interesse por ideias, diálogos, ações e paixões. Numa graphic novel, você deixa a arte fazer a descrição.”

Contos nanicos

Texto meu publicado no Caderno 2 de hoje.

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Um livro atarracado, só com contos nanicos

Veronica Stigger explora humor e concisão em ‘Os Anões’

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

À primeira vista, parece ter 400 páginas o novo título de contos de Veronica Stigger, mas é a espessura que engana. São apenas 61, em papel cartonado, grosso, o que dá ao pequeno volume aspecto atarracado. A proposta, nas palavras da escritora e crítica de arte gaúcha, é que o formato “reitere o caráter anão do livro”.

Não poucos detalhes corroboram essa característica em Os Anões, que sai agora pela Cosac Naify. A começar pela epígrafe, pinçada de texto do poeta Carlos Drummond de Andrade sobre “um continho bobo, anão, contente da vida”. Daí em diante, intercalam-se microcontos de três linhas, textinhos em forma de anúncio e minirroteiros para curtas-metragens. A narrativa de proporções mais ambiciosas tem somente seis páginas.

Seria algum tipo de obsessão com gente de baixa estatura? De fato, a origem de tudo está na frase “Ele tinha a altura de um pigmeu, e ela batia na cintura dele”, que um dia ocorreu à autora como ideia para abrir um texto e ficou guardada, sem conclusão. A sentença surge agora no início do conto-título, o primeiro da obra – e também o único a abordar anões propriamente ditos, o que faz entender que a pequenez que atrai Veronica não tem relação com a altura de ninguém.

“O que me interessava era trabalhar variações de gêneros, como já havia feito no Gran Cabaret Demenzial (2007), que tem textos em forma de legendas, de palestras, de peça de teatro”, afirma a escritora.

Essa não é a única semelhança entre os títulos. Como naquele, aparece aqui o interesse pelo imprevisível e pelo absurdo – o que levará, por exemplo, a dupla baixinha do conto inicial a causar comoção na fila de uma confeitaria por permanecer “em cima do banquinho a perguntar sobre doces e a pedir provinhas” sem pressa nenhuma (o resto não se pode contar, sob risco de tirar o impacto do conto anão).

A concisão, ela avalia, foi peça essencial para trabalhar o absurdo nos novos textos. “A maneira de narrar serve a ressaltar o que quero na história. Para o conto O Teleférico, fiz várias versões, sempre cortando um pouco, até chegar ao ritmo perfeito para destacar o sentido”, conta, referindo-se a um dos textos mais longos do volume, de três páginas.

A obra será lançada amanhã junto a outra de fato destinada a pessoas miúdas. Trata-se de Dora e o Sol (34), estreia de Veronica na literatura infantil, em parceria com Fernando Vilela, baseada na história real de uma vira-lata que vive com a mãe da autora.

Depois da Mafalda

Ao longo dos últimos anos, muitos jornalistas se referiram ao laconismo de Quino durante entrevistas como fruto de enorme timidez. Não sei se acreditaram nisso de fato ou se definiram dessa maneira para justificar a ausência de respostas extensas, daquelas que dá gosto de ler, com histórias e digressões no meio, como costumam ser as entrevistas com grandes cartunistas.

Conversei com ele por telefone duas semanas atrás e a sensação foi diferente. Não é timidez o que o leva a falar pouco. Enquanto forem feitas perguntas, ele responderá, mas de tempos em tempos se perceberá aquela nota de enfado no fundo da voz. Como Quino cria cartuns há quase cinco décadas sobre o mesmo assunto, as mazelas do mundo, também não pode evitar que as perguntas feitas ao longo dessas décadas se repitam com frequência considerável. Deixei de lado aquelas que muitos fazem embora existam respostas à exaustão na internet (por que parou de desenhar Mafalda; se não voltará a desenhá-la; qual é o lance com a sopa; o que Mafalda pensaria do mundo hoje etc.), mas a questão não é essa.

Ele não gosta de dar entrevistas e não se esforça mais do que a educação exige. As respostas não surpreendem porque isso não interessa a ele. Muito menos agora, com o glaucoma que o impede de trabalhar – a quem perguntar, dirá que é pausa criativa. Talvez fosse mais honesto com ele próprio fazer como Bill Watterson, não falar. O que ele faz de melhor independe de palavras. Faladas, pelo menos.

Enfim, meu texto sobre os três lançamentos dele pela Martins Fontes no Brasil, publicado no Caderno 2 da última quinta, está aquiQue Presente Inapresentável, o mais recente deles, de 2004 (de onde saiu a imagem acima), é o meu preferido. A Mafalda funciona melhor em pequenas doses, então o Dez Anos com Mafalda chega a cansar. Mas, por falar em entrevistas, a melhor que já li com ele está na abertura desse volume. Foi feita em 1987 e inclui respostas elaboradas como ele nunca mais deu — tem inclusive a confissão de que chegou a decalcar imagens dos personagens das tiras porque tinha dificuldade em fazê-los sempre parecidos.

No Sabático de 24/4

Cuba, substantivo feminino

Vida de Celia Sánchez, companheira de Fidel, é mote para ‘Nunca Fui Primeira-Dama’, de Wendy Guerra, autora que estará na Flip

RAQUEL COZER

Crédito: havana-cultura.com/Divulgação


Isso de a torneira abrir e a água sair está longe da realidade do cubano, escreve Wendy Guerra a certa altura de Nunca Fui Primeira-Dama, seu primeiro romance a ganhar tradução para o português. Como vive em Cuba desde que nasceu, afora uma temporada na Europa, a incerteza rotineira já não incomoda. Mas Wendy é de 1970 e cresceu sem ligação emocional com o momento histórico da Revolução de 1959, então há outras realidades que não consegue assimilar. Não vê sentido em deixar de lado projetos pessoais para integrar um ideal coletivo, como fez a geração de seus pais. Não quer ser mártir nem manter silêncio. Mas é nessa terra em que a água e a liberdade de expressão sempre faltam que pensa em passar o resto da vida. “Já não tenho família, e Cuba é minha única família neste mundo. Compreende?”, ela argumenta.

Wendy é formada em cinema pelo Instituto Superior de Arte de Havana e tem três livros de poesia publicados em Cuba. Seus dois romances, Todos Se Van (2006) e Nunca Fui Primeira-Dama (2008), tiveram edições em países como a Espanha e a França, mas não na terra natal, onde raras cópias correm em impressões piratas. Ambos partem de fragmentos de diários e memórias, numa autoficção protagonizada por jovens de nomes e histórias similares à sua. No primeiro, Nieve Guerra se vê numa sociedade “em hibernação” que todos, de um jeito ou outro, acabam deixando para trás. Em Nunca Fui Primeira-Dama, que chega às livrarias segunda-feira, a personagem Nadia Guerra busca vestígios de mulheres que fizeram parte da história da ilha: Albis Torres, mãe de Wendy (e, no romance, mãe de Nadia), e Celia Sánchez, companheira de Fidel Castro dos tempos pré-revolucionários até 1980, quando morreu de câncer no pulmão.

[…]

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A íntegra do texto está aqui.

Once upon a time

Quando conversei por telefone com o crítico americano Greil Marcus, autor do Like a Rolling Stones: Bob Dylan na Encruzilhada, quis saber como foi escrever 260 páginas sobre uma música sem conseguir falar com o criador dela. Marcus entrevistou pessoas que participaram do momento e pesquisou tudo sobre o assunto, mas era inevitável que alguma dúvida não tivesse sido esclarecida.

A resposta que ele me deu:

Pedi ao agente dele, com quem havia trabalhado em anos anteriores, para falar com Bob Dylan apenas sobre as circunstâncias da sessão de gravação. Não estava interessado no que a música significava, no que as pessoas pensavam sobre ela, nem no que ele próprio pensava sobre ela. E o agente disse: “Bem, ele de fato não se lembra bem de como foi, então não quer falar sobre isso”. E foi engraçado quando, no mesmo ano, o livro dele [Crônicas – Vol. 1] saiu, e, é claro, ele parecia se lembrar de tudo, com todos os detalhes, uma enorme memória para rostos, nomes, a maneira como as pessoas falavam… Ele se lembrava de tudo, mas guardava as memórias só para ele.

Tempos depois, eu estava sentado com esse agente e ele tinha um original do Crônicas sobre a mesa. Entrei em pânico e pedi para olhar. Pensei: “Bob vai falar de ‘Like a Rolling Stone’, e qualquer coisa que ele fale eu tenho de levar em conta”. Meu livro estava finalizado, mas ainda não publicado. Eu podia mudar e adicionar material, mas NÃO QUERIA ter de fazer isso, não queria voltar e repensar o que já tinha feito. Mas pensei: “Se ele diz que essa música foi dada a ele por um marciano, ou encontrada em uma mina de ouro, o que quer que ele diga eu tenho de confrontar”. Então folheei o livro, pulando páginas, e logo me dei conta de que a música nunca é mencionada ali. Porque é só sobre a época em que ele era desconhecido. Foi um alívio enorme.

Enquanto ainda não existe um Crônicas – Volume 2 para sabermos a versão de Bob Dylan sobre a música, vale ler o livro do Greil Marcus. Escrevi sobre ele ontem no Caderno 2 + Música. Segue o texto abaixo, também. A foto linda que acompanha foi um achado do Júlio Maria, ex-editor de Variedades do JT e que agora está mandando bem na edição do C2 + Música.

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O caminho de Like a Rolling Stone no pop

Livro em que o crítico norte-americano Greil Marcus disseca a música mais famosa de Bob Dylan sai no País

Raquel Cozer

Pela sexta vez naquela tarde, os músicos liderados por Bob Dylan tentaram levar Like a Rolling Stone a cabo. Tirando o cantor, ninguém fazia ideia do que viria a seguir; ele mesmo tinha lá suas dúvidas. Em 16 de junho de 1965, segundo dia de gravações no estúdio da Columbia, em Nova York, conseguiram enfim passar da segunda estrofe. Seis minutos e seis segundos depois, estava concluída a faixa que viria a abrir Highway 61 Revisited.

Quando, passadas quatro décadas, o americano Greil Marcus ouviu na íntegra as fitas daquelas duas sessões, encontrou a resposta para a dúvida que o havia levado a escrever Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada: por que a música que rompeu as convenções artísticas da época ainda soa como nova. “É como um filme de suspense, como se você nunca tivesse visto antes”, avalia o autor, crítico de rock desde 1969 e o primeiro editor de resenhas da Rolling Stone, falando por telefone ao Estado. “Há essa incerteza, essa energia confusa. Ao ouvir aquilo, entendi. Os músicos não sabiam nem quantas estrofes ela tinha.”

A transcrição das sessões aparece ao fim do volume, que chega nos próximos dias às livrarias do País. As fitas foram um prêmio (e tanto) de consolação do agente de Dylan para Marcus, que tentava tirar do cantor algo sobre as circunstâncias da gravação. Tinha prometido não fazer nenhuma daquelas odiáveis perguntas, não questionaria o que a música significava nem o que Dylan pensava dela, mas não adiantara.

Mais que a biografia da canção, Marcus assina uma longa obra crítica. Há digressões sobre a sequência de acordes, o teor da letra, a originalidade da abertura. Leitores menos afeitos a detalhes técnicos verão curiosidades em especial a partir da segunda parte do livro, que detalha o momento da criação e o impacto dos primeiros resultados inclusive sobre Dylan. Há, por exemplo, o testemunho de um fã que o viu saindo do Manchester Free Trade Hall, em Londres, após o histórico show em que um grito de “Judas!” ecoou no público antes do início de Like a Rolling Stone – ao subir ao palco com banda e guitarra elétrica, Dylan “traía” o conceito de folk. “Ele parecia alguém que fora atropelado por um carro. Alguém absolutamente em choque”, diz o fã.

Marcus ainda consegue arrancar de Bob Johnston, o produtor que substituiu Tom Winston nas gravações para o Highway 61 Revisited após as sessões de Like a Rolling Stone, uma confissão de que houve a mão dele na versão final da faixa. Embora Johnston tenha exigido o nome de Winston nos créditos, ele admite ao crítico que pode ter “mixado a coisa”. A relutância em falar faz sentido – morto, Winston não tem como dar sua versão.

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De brinde, um dos momentos mais power de Like a Rolling Stone, 33 anos depois, naquela que – até onde sei – foi a única vez em que Dylan e Stones interpretaram a música juntos (corrijam-me se estiver errada), aqui mesmo em Terras Brasilis.