Mudança

A Biblioteca de Raquel levou suas estantes para o portal do Estadão. Vai lá!

Geoff em Veneza e Varanasi

Geoff Dyer foi um dos primeiros escritores que entrevistei, ainda na Folha, por conta do lançamento de Ioga Para Quem Não Está Nem Aí (Companhia das Letras). Era início de 2007 e eu nem cobria literatura ainda. Escrevia lá minhas coisas sobre dança (!) música brasileira e internet, mas ambicionava mesmo era um espaço nas páginas de livros aos sábados (só que esses repórteres de literatura, vou contar uma coisa, não largam o osso. E, ok, falo por mim mesma agora). Até que um dia o Mag, editor dos melhores que tive e que chefiava a Ilustrada, disse que o Luiz Schwarcz tinha falado maravilhas do autor e me pediu para avaliar. A boa notícia era que o Luiz tava certo. O texto saiu (link para assinantes) e o resto é o resto.

Daí, na véspera desta última Flip, chegou por aqui Jeff em Veneza, Morte em Varanasi (Intrínseca), o novo do Dyer. Um ótimo livro num momento horrível. Consegui ler e falar com ele apenas nesta semana, depois da Bienal do Livro, e o texto saiu só hoje no Caderno 2, por conta do início da Bienal de Veneza, que é um dos temas abordados na história.

Foi engraçado voltar a falar com ele. Em 2007, sem muita experiência em falar com autores, morri de medo de fazer perguntas idiotas  (fiz várias). A curiosidade é que o protagonista de Jeff em Veneza é um jornalista que, a certa altura, levanta a teoria de que, quanto mais imbecis forem as perguntas, mais à vontade se sentirá o entrevistado e melhor será a conversa. Geoff Dyer é terrivelmente gentil, e a conversa que tive com ele nesta semana foi ainda mais bacana que a primeira, o que prova que sou cada vez mais capaz de fazer perguntas idiotas.

Segue abaixo o texto que saiu no Caderno 2 e, mais embaixo ainda, a íntegra da conversa que tivemos por telefone.

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Paixão e arte no verão veneziano

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

A ansiedade chega antes mesmo da Bienal de Veneza, com o receio de que haja festas melhores do que aquelas para as quais se foi convidado – o que não deixará dúvida quanto ao patamar de prazeres que o status de cada um garante. Nas festas, os escolhidos reclamarão das pequenas taças em que lhes servem drinques à vontade. Quando, enfim, chegarem aos pavilhões de arte, cheios de ressaca, todos carregarão sortimentos de sacolas oferecidas como brinde.

Seria de se esperar no meio artístico uma reação às ácidas descrições da Bienal de Veneza (e de obras de fato exibidas por lá) que aparecem em Jeff em Veneza, Morte em Varanasi (2009), mas o escritor Geoff Dyer diz ter se surpreendido. “Tanta gente achou que era uma sátira do mundo da arte”, conta o britânico ao Estado por telefone, de Londres, com a voz tranquila que mal denuncia a peremptoriedade das opiniões. “Era só a descrição da ideia que tenho de passar um bom tempo. Me assustei com as pessoas desse universo vendo isso como um retrato corrosivo. É claro que tenho opinião incrivelmente baixa sobre alguns artistas e seus trabalhos, mas a questão é que não há dúvida de que muitos vão a esses eventos por gostar do que é de graça. Eu mesmo adoro viajar sem pagar nada.”

Conhecido por confundir leitores com narrativas em que episódios fictícios respingam em descrições realísticas e incensado como um dos grandes escritores britânicos vivos, Dyer, de 52 anos, diz que seu livro mais recente é eminentemente fictício. Isso apesar de o protagonista se chamar Jeff (mesma pronúncia do prenome do autor, Geoff), de ter a mesma capacidade de extrair ironia dos detalhes e de a história ter sido pensada após viagens de Dyer a Veneza (foi a três Bienais, de 2003 a 2007) e Varanasi, na Índia.

Na trama, em 2003, Jeff Atman, jornalista quarentão, é enviado à cidade italiana pela revista Kuchlur com a pouco nobre tarefa de entrevistar Julia Berman, cujo maior feito na vida foi ter com o celebrado pintor Steven Morison uma filha, Niki, hoje cantora famosa. Já na primeira noite, o jornalista conhece e se apaixona pela galerista Laura Freeman, com quem viverá uma história, narrada em terceira pessoa, tão quente quanto Veneza naquele verão.

Na segunda parte do livro, Jeff é convidado pelo Telegraph a escrever uma reportagem em Varanasi. Aqui, o narrador fala em primeira pessoa e, apesar de semelhanças com o Jeff de Veneza, a todo momento resta a dúvida sobre como as histórias se conectam – Laura não é nem sequer mencionada. Enquanto no período veneziano o personagem vive uma passagem de êxtase, como num sonho, a temporada indiana promove uma transformação espiritual.

O livro é, como o nome sugere, uma homenagem à Morte em Veneza, de Thomas Mann, cuja ideia Geoff Dyer teve ao enfrentar o incrível calor da cidade na Bienal de 2003, à qual foi com a mulher, Rebecca (hoje assistente do magnata Charles Saatchi). “Não pude escrever o livro àquela altura porque estava terminando o meu sobre fotografia (The Ongoing Moment). Daí fui para Varanasi, e, assim que coloquei os pés lá, soube que complementaria a história”, conta.

Não chegam a ser duas novelas separadas, embora também seja complicado resumir o livro como romance – a difícil definição é característica da obra de Dyer, cujo Ioga Para Quem Não Está Nem Aí (Companhia das Letras), lançado por aqui em 2007, tem textos que ficam entre os contos e os relatos de viagem. “A maneira perfeita para descrever Jeff em Veneza, se não fosse tão pretensioso, seria como um díptico. São duas histórias distintas, mas a experiência que oferecem é única.”

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Há quem descreva Jeff em Veneza, Morte em Varanasi como romance, há quem descreva como duas novelas, embora separadas elas não funcionem tão bem. Como você descreve o livro?
A descrição perfeita, se não soasse tão pretensiosa, seria a de que o livro é um díptico. Sabe, como nas artes plásticas, quando você tem dois painéis que dependem um do outro? Acho que tende a ser um romance, embora as histórias sejam bem diferentes uma da outra. A experiência que oferece é unificada. Cada parte do livro depende totalmente da outra e, se uma é tirada, a outra colapsa, embora as conexões não apareçam tão claramente à primeira vista.

E como pensou em dividir essa homenagem a Morte em Veneza em duas partes tão distintas?
Bem, minha mulher e eu fomos à Bienal de 2003, estava estava incrivelmente quente, e ficamos lá um par de dias. Daí eu disse: ‘Vou escrever minha própria versão de Morte em Veneza, mas durante a Bienal’. Desde o começo, soube que seria um romance heterossexual, mas que remetesse ao que acontece no romance de Thomas Mann. Não pude começar o livro logo porque àquela altura estava escrevendo minha história da fotografia, e então fomos a Varanasi. Assim que chegamos e ficamos lá um par de horas, percebi que a parte em Veneza seria complementada por outra em Varanasi. Àquela altura não sabia como seria isso, a conexão foi ficando clara para mim aos poucos. Que é: a segunda parte seguindo a primeira cronologicamente, mudando da terceira pessoa para a primeira pessoa, mas sem que houvesse dúvida de que era a mesma pessoa. Tinha incluido até uma pequena explicação sobre o que acontece no romance com Laura. As partes não poderiam ser mais obviamente conectadas. Então um amigo disse que achava que as partes deveriam ser ainda mais bem conectadas. Tentei fazer isso, mas conclui que era muito melhor, em vez de resolver esse problema, aumentá-lo ainda mais, completamente. Em vez de aproximar as histórias, estava interessado em acabar com conexões óbvias, ao ponto de nunca ficar claro se a parte dois acontece depois da parte um, se os dois narradores são a mesma pessoa e o que acontece com Laura. Em vez de conexões estritas, o que tínhamos agora eram conexões quase invisíveis.

Eu tinha ficado na dúvida sobre o motivo de você mudar a pessoa da terceira para a primeira na narrativa. Se era para evitar explicações sobre se o personagem da segunda parte era mesmo Jeff. Ou se era porque, na primeira parte, a relação dele com o Veneza é mais superficial, enquanto, na segunda, a relação com Varanasi é algo tão pessoal e intenso…

Bem, acho que na primeira parte essa relação também é de certa maneira pessoal. Sobre ser superficial… Sim, claro, alguém pode dizer que a relação dele com Veneza é menos intensa que com Varanasi, mas, ao mesmo tempo, o que eu insisto sobre a parte um é que, acima de tudo, é uma história de amor. É sobre a experiência de se apaixonar, viver um momento que te deixa realmente feliz. E as impressões que ele tem sobre a mulher numa viagem como aquela. Foi realmente interessante construir as duas partes uma contra a outra.

Quando falei sobre superficial, na verdade, foi no sentido de que, na minha opinião, a viagem para Veneza não muda Jeff como pessoa, como acontece na segunda.
Hmmm, me desculpe, não quero discordar…

Você pode. Você deve!
(risos) Bem. Ele é o tipo de cara cínico, de saco cheio, enfastiado. E, quando ele conhece essa mulher, ele volta a ter apetite pela vida, é algo que o ilumina. A única coisa é que ele quer que algo mais aconteça, é como o inverso de um romance típico, no qual, você sabe, o marinheiro chega num porto, conhece uma mulher, eles se apaixonam e ele vai embora. Neste caso, ela é quem vem e vai, e ele fica pensando que eles poderiam viver juntos. Sim, a viagem especificamente não tem um efeito realmente profundo sobre ele, mas, no meio tempo, toda a felicidade, e, enfim, especialmente a coisa com a cocaína, tudo o deixa desesperado de certa maneira.

Mas será que o narrador entende Veneza como entende Varanasi na segunda parte?
É uma questão interessante, porque em Veneza as coisas acontecem… Há coisas que eu entendi sobre Veneza, mas que Jeff não entende. O ponto de vista dele é muito mais limitado que o meu. Posso dar um pequeno exemplo disso. Eu estava muito consciente de que Veneza não é apenas uma cidade real, física, mas uma que protagonizou tantos filmes e livros, que conhecemos parcialmente pelos olhos e pelas palavras das pessoas que estiveram lá antes. Então eu queria achar uma maneira de dar esse clima. Isso é o que acontece na cena em que ele vai ver os túmulos de Ezra Pound e Joseph Brodsky. Sobre a lápide de Brodsky, eles acham canetas e papel, uma coisa para quem vier depois e quiser escrever. A certa altura, Jeff diz que nunca leu Brodsky, mas que sabe que ele é “big deal”. Ok, sugere que ele não conhece nada de Brodsky, enquanto eu mesmo conheço muito bem Brodsky. Posso brincar com isso porque, no livro de Brodsky sobre Veneza, Watermark, ele diz: “No tipo de trabalho que eu faço, Ezra Pound é ‘big deal’”. Jeff, de uma maneira ignorante, ele não tem noção de que o que ele pensa sobre Brodsky é o que Brodsky pensava de Pound, enquanto eu sei disso. Então, de certa maneira, sua limitada maneira de ver as coisas me permite brincar um pouco com isso. Ao mesmo tempo, a consciência dele é muito menos limitada que a de alguém como John Self, o narrador de Money, do Martin Amis, ou Robert Angstrom, nos livros de Updike. Ele tem consciência, mas é muito mais limitado que eu.

Como é seu interesse por arte contemporânea? As Bienais de Veneza para as quais você foi, foi como jornalista?
Não. Minha mulher, em 2003 e 2005, era editora de revistas de decoração e arte. Agora ela trabalha por Charles Saatchi, o grande colecionador de arte em Londres. Em parte, me interesso pelo mundo da arte por meio do olhar da minha mulher, embora seja muito mais interessado em fotografia.

Existe alguma relação entre seu interesse pela fotografia e sua maneira de descrever imagens?
É difícil descrever em palavras o que já foi de certa maneira registrado em filmes e vídeos e  fotos, mas também há maneiras de… Quando estou lendo e escrevendo, gosto de visualizar o que está acontecendo, não gosto quando não fica claro quem está onde, essas coisas. Acho que já tendia a ter essa maneira de escrever antes de me interessar por fotografia, mas sempre tive uma fascinação pela maneira de como a narrativa pode conter imagens registradas numa fotografia.

Você é bem ácido no livro sobre as pessoas que vão às Bienais, sobre o quanto elas se interessam por brindes e reclamam das coisas que ganham. Como as pessoas do meio reagiram a isso?
Isso é curioso. Quando o livro saiu na Inglaterra, fiquei realmente surpreso porque tanta gente achou que era uma sátira do mundo da arte. Para mim, eu estava só descrevendo a ideia que eu tenho de passar um bom tempo. Não tive a intenção de fazer uma sátira, e acho que isso precisa ser intencional. Mas assustei com as pessoas desse universo vendo isso como se eu tivesse pintado um retrato corrosivo. E, claro, vivemos num tempo em que… Bem, é claro, eu tenho uma opinião incrivelmente baixa sobre alguns artistas e os trabalhos que eles fazem. E, sabe, não há dúvida de que muitas pessoas vão a essas viagens porque gostam de coisas gratuitas, junkets, festas. Coisas de que eu gosto. Gosto de viagens de graça e de festas também. Uma coisa importante é que vemos equivalentes disso no mundo literário, na Feira de Frankfurt ou nesses festivais internacionais… Eu gosto, quase todo mundo gosta de uma viagem de graça com pessoas que dividem o mesmo interesse.

No caso da literatura, você acha que esse tipo de festival traz alguma coisa de positivo?
Bem, literatura é sobre ler e escrever, arte é sobre fazer e olhar para isso. Mas a coisa social que envolve isso… Não sei se é tão importante, mas é importante passar um tempo legal. Nos diverte. E o crucial sobre Veneza, que esqueci de falar, é que, diferente de muitos outros festivais, ele acontece em Veneza, esse lugar mágico, essa inacreditável obra de arte, uma cidade fantástica de Calvino.

Você fala a certa altura dos africanos vendendo bolsas em Veneza, o que depois você descobriu ser uma instalação (de Fred Wilson, em 2003). O livro trata muito dessa coisa da dificuldade de separar as fronteiras do que é ou não é arte hoje em dia. Como você vê isso?
Uma das coisas que eu particularmente gosto na arte contemporária é quando ela usa tecnologia, o que permite às pessoas criar ambientes nos quais você imerge complentamente. Eu gosto, parece um mundo de sonho. Uma das experiências mais incríveis que tive nos últimos dez anos foi o festival Burning Man em Nevada, sobre o qual escrevi no Ioga Para Quem Não Está Nem Aí. Há arte em todo lugar, é impossível dizer onde ela acaba, e a experiência de estar no deserto por uma semana inteira… A coisa mais simples nesse tipo de ambiente toma proporções incríveis. Aquele é o exemplo mais extremo de como as obras de arte podem estar completamente integradas com a vida, com o dia a dia.

Na epígrafe da parte sobre Varanasi, você cita Borges. É curioso porque ele era esse escritor que viajava somente na leitura, enquanto sua maior característica é escrever sobre as coisas que você  aprende quando viaja. Você teria interesse, ou se sentiria capaz, de escrever sobre lugares que não conhece?
Hmmm, essa é outra boa questão. Você está certa sobre Borges. Para mim, é isso mesmo, eu escrevo sempre a partir de um senso de lugar. Se eu não tivesse ido a todos esses lugares, eu acharia muito difícil escrever sobre eles. Mas é claro que não são só os lugares em si que me interessam, são sempre as interações de sensibilidades, da minha com a do lugar.

Em Ioga Para Quem Não Está Nem Aí, você conta parte da história doidão de cogumelo. E isso volta a acontecer, com outras drogas, maconha, cocaína, nas duas partes de Jeff em Veneza, Morte em Varanasi. Acha que as drogas melhoram a capacidade de observação ou de escrita?
Há algumas coisas sobre isso. Estou absolutamente convencido de que usar drogas pode desenvolver sua  percepção de um lugar. Para mim sempre foi algo positivo, na experiência que tive. Outra coisa, quando ia escrever, a maconha, particularmente quando eu era mais jovem, era algo extramemente útil para a criatividade.  Obviamente muita coisa que você escreve quando está doidão depois você relê e não faz o menor sentido, mas isso não importa, porque depois, quando você está com os pés no chão, isso já serviu como uma especie de desinibidor criativo e já está no papel, o que você pode  trabalhar depois já com o olhar calmo, a mente de edição. Mas agora estou mais velho, estou numa fase em que as drogas já não fazem mais tanto parte da minha vida. Não porque eu tenha ficado careta ou esteja numa reabilitação, só não funciona mais para mim como método criativo.

Os escritores na história da Time

Muito se falou sobre Jonathan Franzen como o primeiro ficcionista em dez anos a merecer a capa da Time, mas só o site The Millions parou para fazer um restrospecto dos escritores a receberem destaque na revista e avaliar o que isso diz a respeito da cultura literária nos EUA (na verdade, como o site lembra, o próprio Franzen chegou a escrever para a Harper sobre como as escolhas da publicação, de James Joyce a Scott Turow, provam o declínio cultural da América).

O primeiro destaque literário da Time, Joseph Conrad (imagem acima), apareceu logo na sexta edição da revista, em abril de 1923, em reportagem sob o título A great novelist to visit the United States. Até o final dos anos 30, em 18 anos de revista, 37 capas foram dedicadas a autores, incluindo nomes como H.G. Wells, Gertrude Stein, James Joyce (duas vezes, por Ulysses e Finnegans Wake) e Ernest Hemingway. Ou seja, pelo menos duas vezes por ano escritores estamparam a capa da publicação.

Nos 20 anos seguintes, de 1940 a 1959, esse número caiu para 17, menos de uma capa por ano, com Eugene O’Neill e T. S. Eliot entre os destaques. A média se manteve nas duas décadas posteriores, consideradas entre 1960 e 1979.

Dali para a frente, só queda: de 1980 e 1999,  mais 20 anos, um autor a cada três anos mereceu capa (e aqui já estamos falando quase só de best-sellers, como John Irving e Michael Crichton).

E, nos dez anos de 2000 a 2009, apenas Stephen King, em sua segunda capa na revista – mas que, desta vez, na verdade, era sobre internet (imagem abaixo).

O que isso diz sobre a cultura dos Estados Unidos? A análise toda está aqui, com links para todas as reportagens de capa na história da Time, com imagens.

Estranho amor

Delícia de romance O Único Final Feliz Para Uma História de Amor É Um Acidente, do JP Cuenca, que sai pela coleção Amores Expressos e sobre o qual escrevi no Sabático deste último final de semana. O texto segue abaixo

As fotos com as quais ilustro este post eu roubei do próprio autor, do blog que ele assinou no tempo em que esteve em Tóquio pesquisando para o livro, em 2007.

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Estranho amor em terra estrangeira

João Paulo Cuenca, 32 anos, firma-se como um dos nomes de destaque de sua geração com romance de encomenda ambientado em Tóquio – onde viveu por um mês – que tenta escapar do ”olhar domesticado”

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

O Rio amanheceu algum tempo atrás com muros e postes tomados por lambe-lambes que, entre anúncios de shows e eventos afins, chamavam a atenção pela enigmática mensagem que exibiam: O Único Final Feliz Para Uma História de Amor É Um Acidente. Para a maior parte dos transeuntes a frase em tom de profecia não deve ter causado mais que estranhamento, mas era essa mesmo a intenção do escritor João Paulo Cuenca quando decidiu espalhá-la pela cidade. Para ele, o extenso título de seu terceiro romance carrega um sentido quase completo, como se fosse outra obra em si – característica que ele não quis desperdiçar. “Quem já sabia do livro me ligou ao ver os cartazes, mas fico imaginando quem não sabia do que se tratava. As pessoas reagem a essa frase, param para pensar. Quem lê o título já frui alguma coisa”, imagina o carioca, de 32 anos.

A sensação de estranhamento perpassa toda essa história, desde sua concepção. O livro resulta da participação do escritor no projeto Amores Expressos, que em 2007 mandou autores brasileiros a cidades estrangeiras que lhes inspirassem a escrever ficções sobre amor. A J.P. Cuenca coube atravessar meio globo rumo a Tóquio, onde passou o mês mais esquisito da vida, num estado de solidão que não era interrompido nem em pensamento. “Se você entende o que escuta, de alguma forma presta atenção. Mas, se não pode ler o que está escrito no outdoor ou no ônibus, não entende o que se fala, entra numa bolha de incomunicabilidade”, descreve. “Cheguei a ficar dias sem falar com ninguém. Tinha fluxos de pensamentos enormes.”

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As torrentes de raciocínio levaram a uma intrincada narrativa na qual a história de amor é central e de certa maneira periférica; sufocante nos detalhes íntimos e ao mesmo tempo superficial, artificial, fetichista. Ou seria mais justo dizer as histórias de amor, no plural: entre o jovem executivo Shunsuke Okuda e a garçonete romena Iulana Romiszowska; entre Iulana e a dançarina Kazumi, de proporções milagrosamente harmoniosas; entre a boneca erótica Yoshiko e o velho poeta Atsuo Okuda, pai de Shunsuke. E, em meio a tudo isso, câmeras que tudo veem: uma gigantesca rede de espionagem, o “submarino”, criada por nenhum motivo mais nobre que a obsessão do velho Okuda em seguir (e atrapalhar) cada passo da vida amorosa de Shunsuke.

Estranho o bastante? É ainda mais singular saber que uma das inspirações para tal rede de espionagem foi a decisão de Cuenca de seguir pessoas pelas ruas de Tóquio, “uma boa maneira de entender uma cidade”. Com isso, definiu detalhes da trajetória de gente como o velho Okuda e a garçonete romena – esbarrou por lá em várias moças do Leste Europeu, com suas cabeças louras e mais altas que o japonês médio, o que as fazia parecer “girafinhas” entre a multidão. “Em vários momentos tentei ser o submarino. Espionar, mesmo. É uma experiência louca, muito doente. Nos outros romances, foi um processo mais saudável.”

Outro exercício insalubre foi tentar se colocar, como narrador, na pele de um nativo japonês, Shunsuke. Admirador de Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, Cuenca não quis reproduzir a opção do filme de narrar do ponto de vista de um gaijin (estrangeiro). Concluiu que tal olhar seria “domesticado”, parecido demais com o dele próprio. “Busquei a zona de sombra. Esse narrador que construí é uma maluquice. Tenho medo de japoneses quererem me matar”, brinca. Acha graça agora, mas ficou de fato preocupado. A ponto de pedir para sua editora, a Companhia das Letras, verter para o inglês três capítulos para que pudesse enviar a um amigo japonês – que aprovou, assim como “um ou outro” nissei a quem mandou o romance por aqui.

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Estrangeiro mesmo acaba sendo o olhar de Shunsuke para a romena que ele ama sem entender (“Tocar em Iulana Romiszowska é como tocar num animal desconhecido”, reflete). Cuenca esforçou-se na arriscada tarefa de mimetizar o pensamento oriental sem estereotipá-lo, chegando a dormir num hotel cápsula, aquele com quartos de fibra de vidro pouco maiores que um caixão, e a conviver com os salarymen, assalariados que, após o expediente, enchem a cara em bares e boates. Sente que, com isso, o narrador se tornou mais “malandro” que os de seus romances anteriores, Corpo Presente, de 2003, e O Dia Mastroianni, de 2007.

Humanização. Um dia antes da conversa com o Estado, Cuenca enviou um email: “O caminho para terminar esse livro foi tão longo, em tantos sentidos, que acho que pela primeira vez como escritor tenho algo para dizer numa entrevista.” Por telefone, explicou melhor: os outros romances encerravam neles mesmo o que tinham a expressar; de O Único Final Feliz… ele não se cansa de extrair sentidos.

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Numa das passagens mais bonitas da história, Yoshiko, a boneca erótica fabricada para servir ao velho Okuda, descobre o ciúme (“sinto um foco de calor preciso dentro do meu corpo, como se alguém houvesse acendido um fósforo no meu peito”, tenta descrever, com o pouco de informação que tem sobre o mundo). Um sentido que o autor vê na boneca é o de representar a literatura em si. Ela nasce artificial – abre a narrativa descobrindo o mundo fora da caixa em que chegou à casa do sr. Okuda -, assim como é para Cuenca o ato de escrever. “Há formas de arte que se aproximam do impulso, do movimento natural. Pintar, dançar, até escrever poesia. Mas romance é artificialismo em estado puro. A atividade de escrever, sentado numa cadeira, tentando aprisionar em palavras aquela torrente de sensações. A linguagem é um inimigo.” Da mesma forma que o romance quando já passou do estágio da escrita e está no papel, Yoshiko se humaniza. Descobre o tempo, toma consciência da finitude, percebe o amor e quer aprisionar a sensação de infinito que ele oferece.

O produtor Rodrigo Teixeira, que financiou o Amores Expressos, tem os direitos dos livros da coleção para o cinema. O Único Final Feliz… é um prato cheio para qualquer plano de adaptação – nesse sentido, lembra Murakami -, mas Cuenca diz que a ideia nem lhe ocorreu durante a escrita. Se fosse para ser filmado, gostaria de vê-lo como animação realizada por algum escritório japonês. Isso ao menos ajudaria a resolver imagens nonsense, quase oníricas, como a do velho Okuda transformando-se no monstro Gyodai e destruindo parte da cidade… Gyodai? “Adoraria falar que descobri Tóquio pelos filmes do Ozu ou pelos livros do Mishima, mas não. Minha primeira imagem da cidade foi com a série Changeman”, esclarece o autor, que não resistiu à referência.

Intervalo profissional

Esta biblioteca ficará em recesso durante a Flip. Até domingo, postarei somente no blog do Estadão na Flip. Vê se vai lá. Mas é pra voltar pra cá no dia 9.

A coluna da semana

[publicada no Sabático de 31/7; disponível também no Estadão.com]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

CINEMA
Um modernista em 1.500 páginas, mas sem editora

Uma compilação de quase 3 mil crônicas escritas pelo crítico de cinema, poeta e ensaísta Guilherme de Almeida (1890-1969) está há quase uma década em busca de editora. Organizado ao longo de 20 anos pelo editor Frederico Ozanam Pessoa de Barros, hoje com 82 anos, o livro Cinematógrafos esbarra numa questão logística que já levou editoras interessadas a desistirem do investimento: o volume tem 1.500 páginas, e Barros, amigo e biógrafo de Almeida, não abre mão de publicá-lo na íntegra. Além dos textos que o modernista publicou no Estado de 1926 – quando foi convidado a assinar seção dedicada à crítica cinematográfica – até o início dos anos 40, o livro inclui fichas técnicas de todos os filmes sobre os quais escreveu. “Mais que crítico, foi o primeiro grande cronista de cinema do período. Seus textos registram aspectos da cultura de uma época em que ir ao cinema era quase como ir a uma festa”, diz Barros.

TRADUÇÃO
O primeiro romeno

O selo Amarilys, da Manole, prepara a tradução direta do romeno de O Retorno do Hooligan, romance em que Norman Manea relata sua primeira visita à Romênia após a queda do regime Ceausescu. O escritor, que vive em Nova York, relembra o fascínio pelo comunismo, a perseguição e a liberdade no exílio, junto a amigos como Philip Roth.

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Será a primeira tradução de Manea no País, a cargo da romena naturalizada brasileira Eugênia Flavian. E também a primeira direta do idioma a sair pela Manole – cujo fundador, Dinu Manole, nasceu na Romênia. A editora também tem os direitos de The Bunker, do autor, sobre o 11 de Setembro.

DIGITAL
Wylie e a tradução

A agência Wylie, que passará a publicar e-books de seus autores nos países de língua inglesa, é também a única grande que se recusa a vender direitos digitais de traduções num momento em que editores exigem cláusulas sobre publicação eletrônica.

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A Benvirá, por exemplo, não sabe se poderá lançar os e-books dos recém- negociados Tetralogia da Fertilidade, de Yukio Mishima, e Solo, de Rana Dasgupta. Incluiu cláusula para que seja a primeira opção caso a Wylie queira negociar os direitos. A Record, que publica Colum McCann e Azar Nafisi, da agência, avalia que terá de parar de negociar se a Wylie resistir na questão, a não ser que se comprometa a não vender direitos a outros ou explorá-los diretamente.

BOLSA
Um ano na Alemanha

Finalista do Prêmio SP de Literatura, que sai na segunda, Bernardo Carvalho não deve lançar outro romance tão cedo. O autor de O Filho da Mãe ganhou uma bolsa da instituição de intercâmbio Daad. A partir de março, passará um ano em Berlim como artista residente, seguindo passos de nomes como Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro.

CASA NOVA
Mudanças no catálogo

Após breve passagem pela Cosac Naify, Izabel Aleixo assume a direção editorial da Paz e Terra com a meta de garimpar obras de “maior apelo” e “dar uma reduzida” no catálogo de 1.200 títulos, organizando coleções. Para o selo Argumento, que em cinco anos teve só nove títulos, a meta é levar mais ficção contemporânea internacional e abrir portas para a nacional. Por 12 anos, na Nova Fronteira, Izabel lançou alguns dos maiores hits da década, como O Caçador de Pipas.

CINEMA
Chanel e Stravinski


A Larousse lança Coco Chanel e Igor Stravinski, do inglês Chris Greenhalgh. A obra aqui sai na esteira do filme homônimo, exibido no Festival de Cannes 2009 e que, protagonizado por Anna Mouglalis, retrata um caso entre a estilista e o compositor.

QUADRINHOS
Baleia multimídia

Um teaser de animação será criado pelo Estúdio Birdo para divulgar Cachalote, de Rafael Coutinho e Daniel Galera, lançada em junho pela Quadrinhos na Cia., com 800 exemplares vendidos até agora. O vídeo será lançado dia 4/9, quando a Choque Cultural abre mostra com originais e pôsteres da HQ.

A primeira vez (versão nacional)

Meses atrás, escrevi aqui no blog sobre a pesquisa de um autor americano, Jim C. Hines, sobre o caminho de um escritor até o primeiro livro publicado. Fiz a ressalva de que era um mercado bem específico –  Hines escreve livros de fantasia e a maior parte dos entrevistados também, e o critério que ele usou foi de primeiro livro publicado com adiantamento da editora – e me deu vontade de tentar algo do tipo por aqui. Focando em literatura e em grandes editoras, de alcance nacional, boa capacidade de distribuição e de divulgação.

Tá certo que não fui disciplinada desde os primeiros questionários que disparei por e-mail para autores, em maio, até o momento em que consegui voltar a pensar na pauta, agora no meio de julho, o que fez desta minha semana algo das mais caóticas.  Parecia simples, né, enviar e-mails, jogar tudo no Excell e fazer umas regras de três para as porcentagens. Mas daí, ao juntar todas as respostas, percebi que teria de abusar da boa vontade dos 60 que toparam participar (uns 6 ou 7 não responderam), refazer perguntas, mandar outras. Não é fácil ser Ibope.

Sim, é uma pesquisa informal (como aviso no texto, publicado no Sabático) que faria o povo das estatísticas ficar de cabelo em pé. Mas é sempre bom sair da rotina, tem lá sua graça. Com base no que os autores escreveram, dá uma dimensão: idade média de publicação do primeiro título de literatura, 34 anos; tempo entre o primeiro livro escrito, publicado ou não, até o livro publicado por uma grande editora, algo entre 5 e 6 anos (esse último dado não incluí na reportagem porque é mais complexo, já que muitos responderam só “menos de um ano” até a publicação, o que pode significar dois ou 11 meses).

A arte (do Rubens Paiva, ex-colega de Folha com quem voltei a trabalhar no Estadão), com os principais resultados, ficou incrível. O texto foi uma novela, fiquei tão preocupada em checar estatísticas (ok, “estatísticas”) que, ao reler a versão impressa que apareceu na redação e ver o que tinha escrito depois de tanto cortar e mudar, quase tive uma coisa. Consegui dizer um pouco melhor o que queria dizer ao fazer uns retoques pro on-line, que, afinal, é o que fica.

Mas as respostas, que não pude aproveitar na íntegra (pena, porque tinha muita coisa boa por ali), ainda me deram ideias para pautas futuras que podem ajudar a entender a árdua missão que é fazer literatura no País. Gracias a todos os autores que participaram, pela boa vontade.

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O incerto caminho até a publicação

Em enquete com 60 escritores, levantamos os dilemas enfrentados por autores em busca de editoras

Clique aqui para ver a arte em tamanho maior no PDF

Raquel Cozer – O Estado de S. Paulo

Anos atrás, o editor Paulo Roberto Pires presenciou uma inflamada discussão acerca do excesso de autores estreantes que as grandes editoras andariam colocando no mercado. Ele sabia que, a qualquer momento, um dos críticos poderia apontá-lo entre os culpados pelo que seria “falta de parcimônia” editorial. Como jornalista cultural, depois um dos organizadores da primeira Flip (2003) e, por fim, editor em duas das maiores casas publicadoras do País, a Planeta e a Ediouro, ele apresentou a um público mais abrangente alguns dos principais nomes da Geração 00, como João Paulo Cuenca, Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian.

Pires não considera isso negativo. “Se um escritor é bom ou ruim, o tempo é quem diz. Era preciso sacudir o mercado naquele momento em que era enorme a diferença entre o que se editava e o que se via de interessante na internet.” O fato é que atitudes como a dele ajudaram a estimular a aceitação a novos autores. “A internet alterou o perfil do lançamento de um estreante”, avalia Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco. “Está mais fácil ser autor agora do que quando quem badalava sua obra era visto com desconfiança, como se não tivesse a pátina correta de eruditismo. Hoje, ninguém vai criticar quem quer estar onde os leitores estão. As feiras literárias estão aí para provar.”

A exposição só não alterou o fato de que a publicação por uma grande editora marca, em geral, o momento em que tudo muda na trajetória de quem quer viver de literatura – ou se tornar uma pessoa jurídica, como diz Cristovão Tezza, que pôde parar de dar aulas e viver apenas em razão de seus livros desde que O Filho Eterno, publicado pela Record, abocanhou quase todos os prêmios literários de 2008. “É importante a recepção que o livro tem quando vem de uma grande. As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo”, diz Antonio Prata, que ingressou nesse olimpo literário em 2003, com As Pernas da Tia Corália, publicado pela Objetiva.

O Sabático resolveu saber dos próprios autores qual o impacto de uma grande editora em sua carreira, como foi o caminho até ela e como se sentem a respeito numa época em que, cada vez mais, surgem boas casas de pequeno ou médio porte no País – como a 34, a Iluminuras e a Ateliê Editorial, só para ficar em três exemplos. Numa espécie de pesquisa informal, enviamos pequenos questionários a quase 70 escritores de todas as idades, dos quais 60 aceitaram participar. As questões foram feitas em cima do primeiro título de literatura lançado com distribuição nacional e grande alcance de divulgação. E que, na maior parte dos casos, não foi o primeiro que tiveram editado – Lya Luft, por exemplo, escreveu o primeiro livro 13 anos antes de chegar à Record, onde virou best-seller com As Parceiras, em 1980; Ana Miranda escreveu dois de poesias por editoras pequenas e ficou 10 anos retrabalhando o mesmo romance até enviar os originais de Boca do Inferno para a Companhia das Letras – foram mais de 200 mil exemplares desde 1989.

É claro, o caminho é bem mais rápido para quem não se dedica a outros trabalhos antes, como Lya, ou não se debruça tanto tempo sobre a mesma obra, como Ana. As duas, que estrearam em grande editora com 40 e 37 anos, respectivamente, estão acima da média de idade que os participantes da enquete tinham quando chegaram lá, 34 anos. Quase um quarto dos escritores (23%) conseguiu fechar um contrato no mesmo ano em que terminou de escrever o primeiro livro – apostas em iniciantes, como no caso dos autores editados por Paulo Pires, ajudam a engrossar esse número; prêmios literários e publicações anteriores de contos em periódicos e antologias também.

Mas um número parecido (20%) esperou mais de uma década desde as primeiras tentativas literárias até receber um convite de uma grande editora. Caso de gente como Affonso Romano de Sant’Anna (que esperou 22 anos até, aos 38, ter Poesia sobre Poesia publicado pela Imago), Cristovão Tezza (17 anos tendo obras recusadas até Traposair pela Brasiliense) e Marcelo Mirisola (15 anos escrevendo livros até ser convidado pela Record a lançar Joana a Contragosto).

Mas Mirisola, assim como Marcelino Freire e outros escritores, já era conhecido quando teve o romance editado pela maior editora do País. O reconhecimento chegou com Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia, que a Estação Editorial, uma editora de médio porte, publicou em 1998. “No meu caso, não mudou nada”, diz o paulistano sobre o título que saiu pela Record. Tanto que, depois disso, voltou para uma editora média, a 34, e em breve terá um infantil (a quatro mãos com Furio Lonza) pela Barcarolla.

Indicações. Só quatro dos 60 autores (Mirisola, Ana Miranda, João Almino e Tiago Melo Andrade) disseram que recomendações feitas por outros escritores ou pessoas próximas não facilitam o caminho para um iniciante. Tirando um ou outro que preferiu não emitir opinião a respeito, a grande maioria respondeu ao Sabático que a indicação abre portas, sim – mas todos ressalvaram que apenas permite aos manuscritos uma mãozinha para chegar logo ao topo da pilha de originais. Vinte e um dos autores disseram que escreveram a convite – está certo que boa parte deles já era algo conhecida por textos em antologias, periódicos ou editoras pequenas. Outros 38 afirmaram que enviaram originais; desses, 24 conheciam o editor ou tiveram a tal recomendação; os 14 restantes afirmaram só ter oferecido os originais nas editoras. E uma única, dentre os 60, recorreu a um agente – Ana Maria Machado, publicada pela Francisco Alves, uma das grandes em 1983. “Nos EUA, é mais comum iniciantes contratarem agentes. Por aqui é raro o autor se arriscar a pagar um agente sem a certeza da publicação; isso só costuma acontecer quando eles já estão com carreira mais estabelecida”, diz a editora Izabel Aleixo.

Por curiosidade, metade dos 38 autores que foram bem-sucedidos após enviar originais preferiram fazê-lo para uma só editora – uma espécie de ética que as casas publicadoras não exigem e que pode acabar sendo um problema para quem aspira ser editado. Luciana Villas Boas, diretora editorial da Record, por exemplo, diz que não vê mais originais em papel não solicitados. “Não há como. Se vem um e-mail, a gente até se situa. Se achar que a carta está bem feita e que existe um mínimo de potencial, vai para leitura. Recebo uns 25 emails por mês, sem falar nos que recebem todos os outros editores, e uma quantidade absurda de papel que não serve para nada.”

Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco, diz que passam de 150 os originais que chegam por mês à editora. A Rocco não veta os que chegam em papel, mas exige que todos venham gravados em CD – se o autor quiser mandar a impressão em anexo, fica por conta dele. “E, vou te dizer uma coisa, 98% dos livros. logo nas primeiras páginas, senão na carta de apresentação, você vê que não é um livro de verdade. Não falo nem de regras gramaticais, e sim de um mínimo de estilo, de consciência literária”, diz Izabel Aleixo, ex-diretora editorial da Nova Fronteira, que acaba de assumir cargo na Paz e Terra. Isso faz com que bons livros se percam na montanha de aspirações literárias. E é aí que entra a recomendação. Não porque vá privilegiar alguém, mas porque permite a triagem.

Mas nem todos são adeptos da fidelidade. Elvira Vigna, ao terminar O Assassinato de Bebê Martê, abriu um catálogo do Snel (sindicato dos editores) e mandou uma cópia do romance a cada editora cujos nome reconheceu. Em menos de um mês, recebeu a resposta de uma das melhores do País, a Companhia das Letras. Nelson de Oliveira também mandou seus contos de estreia para cerca de 20 editoras, mas precisou esperar oito anos, ganhar um prêmio, o Casa de Las Americas, e ser recomendado por um dos jurados, Rubem Fonseca, para publicar pela mesma casa Naquela Época Tínhamos um Gato>. Hoje, voltou a publicar por pequenas editoras: “Não há mais muita diferença. Em geral, as pequenas se profissionalizaram.” Ignácio de Loyola Brandão, que mandou cópias de seu Depois do Sol para 13 editoras, recebeu cartas padrões de quase todas e uma que não esqueceu, da Civilização Brasileira: “O autor escreve como quem mija.” “Achei até que era elogio, mijar é um ato natural”, conta. Acabou sendo publicado logo pela Brasiliense – e o editor Caio Graco, lembra Ignácio, aceitou a obra sem nem fazer reparos de edição.

Autores falam sobre o primeiro livro

“Já na Ateliê (de médio porte), com o Angu de Sangue, em 2000, minha vida literária mudou. Fui bastante resenhado, divulgado. Não sou desses que ficam com a bunda na cadeira, reclamando de editor”

Marcelino Freire

“As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo. Se fica mais fácil? Creio que sim. Mas não acho que no Brasil publicar seja problema. Isso é fácil. Difícil é vender”

Antonio Prata

“Aprendi que as pessoas não querem palpite nem sugestões, querem endosso e apadrinhamento. Qualquer restrição ou dica, por mínima que seja, é vista como ofensa e se ganha um desafeto”

Ana Maria Machado

“A passagem da Revan (de pequeno porte) para a Nova Fronteira não significou nada. Meu desempenho de público até piorou. Tanto que a Nova Fronteira não quis um segundo livro meu”

Alberto Mussa

“Aquele era o meu livro, era o livro possível, e se o editor fosse mais invasivo a obra não seria tão autêntica. Prefiro caminhar com as minhas próprias pernas e aprender com os meus próprios erros”

Adriana Lisboa

“A gente também passa a fazer outros trabalhos: textos de prosa e ficção para jornais, orelhas de livros, palestras. Para isso, é imprescindível ser publicado por uma grande editora, é evidente”

Cintia Moscovich

“Editoras grandes ajudam sobretudo em distribuição e divulgação, mas é precipitado dizer que necessariamente trazem mais público. Nada impede que isso seja alcançado em publicação independente”

Daniel Galera

“Quem leu (o primeiro livro que escrevi) achou péssimo e tive de concordar antes de enviar a qualquer editora. Mas todo livro é o primeiro. Já tive livros recusados depois de publicar o primeiro”

Bernardo Carvalho

“(A indicação) facilita o acesso à editora, mas não garante a publicação. É lenda achar que, por conhecer o autor ou ser amigo de alguém de seu círculo, o editor vai publicar o livro”

Cristovão Tezza

O homem foge

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Mais velho e menos famoso por aqui que David Grossman e Amós Oz – os conterrâneos com quem divide o título de maior nome da literatura contemporânea israelense e com os quais aparece na foto acima – , Abraham “Bulli” Yehoshua, a.k.a. ierroxúa para nós que não falamos hebraico, quase não chamou atenção ao ser confirmado para a Flip deste ano.
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Mas tenho cá para mim que a mesa dele com a iraniana Azar Nafisi será das melhores desta edição. Porque ele tem opiniões fortes e irredutíveis, como na defesa que faz do sionismo, e ao mesmo tempo é um velhinho simpático e de oratória deliciosa. E ela, por sua vez, está entre as autoras mais interessantes que já entrevistei (para texto publicado no início do ano no Caderno 2). Conversei com o Yehoshua na semana passada para o texto abaixo, que saiu no último final de semana e eu não tinha conseguido parar para postar aqui até agora.
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(By the way, o título do post é uma referência ao A Mulher Foge, do David Grossman, pela semelhança na atitude de personagens centrais desse livro e de Fogo Amigo, do Yehoshua, que está saindo por aqui)
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[Publicado no Sabático de 18/7]
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Lamentos de uma crise milenar
RAQUEL COZER
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“Posso dizer que estou cansado disso, mas não tenho como escapar”, diz ao telefone o escritor israelense A.B.  Yehoshua quando questionado se, assim como Yirmiyáhu, personagem de seu romance Fogo Amigo, alguma vez pensou em fugir do peso da realidade de seu povo.  No que diz respeito à história de vida do autor, a interrogação é algo provocativa.  Sionista convicto, integrante da quinta geração de uma família de judeus sefarditas radicada em Jerusalém desde muito antes da criação do Estado de Israel, Yehoshua feriu os brios da comunidade judaica internacional ao afirmar, alguns anos atrás, que a completude da vivência em sua religião é possível apenas na Terra Prometida.  Em outros territórios, a possibilidade seria somente a de “brincar de judaísmo”.
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Mas, ao discorrer sobre o personagem que na trama de Fogo Amigo se esconde na África para esquecer o próprio passado, o escritor deixa claro que a motivação para uma fuga seria compreensível hoje mesmo para alguém que, como ele, incentiva a migração de judeus para Israel. “As emoções de Yirmiyáhu são colocadas de forma intensa, mas, a exemplo dele, estamos todos fatigados. É algo que sinto em mim e à minha volta; as pessoas estão exaustas da identidade judaica.  Estamos há milhares de anos em conflitos.  Vemos todas as guerras começarem e acabarem, menos a que se desenrola ao nosso redor”, diz o ficcionista e ensaísta ao Sabático de Haifa, onde vive com a mulher, a psicanalista Rivka, e leciona literatura.
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Aos 73 anos, Yehoshua não passa nada da austeridade que suas fortes opiniões sobre o sionismo poderiam fazer pensar.  Pede para ser chamado pelo prenome, Abraham, ao ser questionado sobre a pronúncia correta do nome com que assina (“ierroxúa”). “É um nome respeitável, que está na origem hebraica do nome de Jesus, mas difícil de pronunciar”, concede.  Um dos maiores e mais premiados ficcionistas israelenses da atualidade, ele agora se prepara para uma segunda temporada no Brasil – esteve há muitos anos no Rio e retornará ao País no mês que vem devido ao convite para participar da 8ª Festa Literária Internacional de Paraty.
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Diz ter enorme curiosidade sobre a cidade histórica fluminense, alimentada pelas “maravilhas” ouvidas de dois amigos que participaram de edições anteriores, os escritores Amós Oz e David Grossman. E ri com gosto ao ouvir a sugestão de tirar férias por tempo indefinido nesse lugar que os conterrâneos definiram como “paraíso” – ele se dará o direito de apenas uma esticada com a mulher até cidades litorâneas da Bahia. “Tenho meus filhos, meus netos e minhas responsabilidades em Israel. Mesmo que fugisse, não haveria a possibilidade de a minha mente escapar.  As pessoas me procuram o tempo todo, e, como escritor, eu me sinto na obrigação de criticar, de gritar, de explicar para o mundo o que acontece por aqui”, argumenta.  Propícia, portanto, a mesa da qual participará na festa literária com a iraniana Azar Nafisi (de Lendo Lolita em Teerã), que terá entre seus temas centrais a literatura como caminho possível para culturas em conflito.
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Engano. Fogo Amigo, o romance que sai agora pela Companhia das Letras, é o quinto do autor de A Mulher de Jerusalém (2008) a ser publicado no Brasil. Ao título segue o subtítulo Um Dueto, que Yehoshua define como a base de toda a história.  O duo seria uma espécie de diálogo inconsciente que se constrói ao longo das quase 400 páginas entre os personagens centrais, o engenheiro Amotz Yaári e sua mulher, Daniela, durante o feriado judaico de Hanucá.  Na semana de descanso, Yaári permanece em sua casa, em Tel-Aviv, enquanto Daniela parte para uma viagem de cinco dias à Tanzânia, na África, onde o cunhado (o Yirmiyáhu do parágrafo inicial) mora desde a morte do filho único, Eyáli. É essa morte a origem do “fogo amigo” que nomeia o romance.  Eyáli, assim como cerca de 15% dos soldados  israelenses convocados para a guerra (é a estatística oficial, informa Yehoshua), foi atingido por um colega do Exército.  Em outras palavras, morreu por engano.
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“Escrevendo o romance, fiquei impressionado ao saber como é comum a morte por fogo amigo.  No último conflito em Gaza, houve até mais do que isso.  De seis ou sete soldados israelenses mortos, metade morreu por disparos do próprio Exército.  Quando um jovem é atingido, todos sofrem, mas, se quem deu o disparo está do seu lado na guerra, a dor é redobrada.  Para os parentes, a morte perde qualquer sentido de heroísmo que pudesse consolá-los.”
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Paralelos. Ao construir duas histórias paralelas em pequenos capítulos que intercalam as vivências simultâneas de Yaári e de Daniela, Yehoshua quis deixar na mão do leitor a possibilidade de criar conexões, formulando o que ele define como um terceiro caminho possível dentro do espaço literário do romance.  Conhecido pela linguagem alegórica à qual recorre em seus textos, o vencedor de honrarias como o Brenner Prize (1983) e o National Jewish Book Award (1992) afirma ter elaborado até inconscientemente algumas das ligações entre as duas pontas desta narrativa.
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Um exemplo dessas conexões aparece logo nos primeiros capítulos.  Em Tel-Aviv, o engenheiro Yaári se vê às voltas com as reclamações de moradores de um moderno edifício cujo poço dos elevadores foi projetado por ele.  Por uma razão que desconhece, ventos que entram pelo poço soam para os usuários como assustadores lamentos, uma “fúria contida, que em certos andares muda de tom e transforma-se num pranto tristonho”.  Yaári envia uma especialista ao local, e esta diagnostica com facilidade a origem dos uivos, que estaria em rachaduras no poço.  Ao mesmo tempo, na Tanzânia, Daniela descobre o passado sangrento da sudanesa Sijin Kuang, que teve toda a família assassinada e acredita em espíritos.
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Aqui, um parêntese ajuda a entender a conexão: Yehoshua explica que a inspiração para o poço que grita saiu de uma experiência de seu passado recente, ao comprar um apartamento em Tel-Aviv. “Os elevadores faziam esse som triste.  Sabia que era uma questão estrutural, mas, ouvindo aquilo, me ocorria que os uivos eram resquícios das mortes de civis durante a Segunda Intifada (revolta de palestinos contra a política de ocupação israelense, que resultou em 5 mil mortes de 2000 a 2006)”, conta.  Em Fogo Amigo, argumenta, Yaári nunca fala em espíritos, mas sente-se compelido a resolver a questão mesmo depois que a especialista deixa claro que a responsabilidade não é dele, e sim dos  executores da obra.
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Mas é em Yirmiyáhu, justo o homem que deixa para trás tudo o que Yehoshua não deixaria, que as ideias de autor e personagem parecem mais se aproximar. A princípio reservado e avesso a todas as lembranças de sua terra natal, o cunhado de Daniela exterioriza os fantasmas que o assombram quando a vê carregando uma Bíblia – única leitura encontrada por ela no lugar que o marido de sua falecida irmã escolheu para viver. “Traduza uma página qualquer”, diz Yírmi sobre o livro de Jeremias, “um trecho qualquer, ao acaso, e a violência fica visível num instante.  Uma profecia de destruição, com muito prazer.  Tragédia e morte e canibalismo.” O Deus judaico, descreve o personagem, não age por justiça, mas por ciúme e poder.
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Trata-se de um ódio ancestral que, para A.B.  Yehoshua, nenhum israelita ou palestino poderá resolver. “Acredito que a paz está nas mãos das comunidades internacionais”, afirma o escritor. “Todos sabem a solução: a paz terá de ser imposta.  Estamos como crianças, batendo pés. É preciso que os pais digam: ‘Basta, vocês não terão dinheiro nem apoio se não fizerem da maneira que diremos que tem de ser feito’.”

Adivinhe quem vem para jantar

Pensei em milhares de coisas (ok, talvez dezenas. Ou talvez só unidades) para fazer na minha segunda-feira de folga e, meio que por comodidade, resolvi apenas ler. O dia inteiro, sem pressa, sem ter de ser no metrô ou antes de dormir, e nada sobre o que fosse escrever depois no jornal. Não consegui cumprir esta última meta; acabei passando boa parte da tarde mergulhada num autor que entrevistarei em breve. Ao menos não precisei correr mais do que gostaria com a leitura, o que incluí na minha cota de consolo, junto com o fato de fazê-lo numa mesa de calçada do Valadares, acompanhada pelo sol do fim da tarde e por alguma cerveja.

Sempre que ouço alguém reclamar da obrigação de trabalhar me seguro para não cair no insuportável discurso de que, se é para passar um terço da vida adulta fazendo algo que garantirá o divertimento e o sono tranquilo dos outros dois terços, não é mal passar esse primeiro terço em um trabalho do qual se goste, com o perdão do raciocínio que de tantos terços mais parece um rosário. Me seguro porque já repeti isso tantas vezes que daqui a pouco todos os amigos pararão de me chamar para participar do terço que corresponde ao divertimento deles.

Mas tenho de admitir que, no caso da literatura, a receita não funciona assim tão bem. É claro, é ótimo passar oito horas por dia pesquisando sobre livros, avaliando quais títulos valem ou não resenha e quais resenhistas podem escrever sobre, apurando notas sobre o mercado literário e entrevistando autores e editores. É uma delícia dedicar parte do dia a ler por obrigação sites de literatura de que gosto.

Mas há uma coisa que não há como fazer no horário de trabalho, e essa coisa é parar para ler um livro que renderá texto a ser publicado. Então o dia de trabalho para quem escreve sobre literatura não acaba no jornal. Ele continua no metrô, participa do jantar, vai junto pra cama e fica para tomar café da manhã, como um amante sem noção que não sabe a hora de ir embora. E também elege os títulos que você lerá.

Nenhuma ambição de ler as 800 e tantas páginas de 2666 antes da aposentadoria, por exemplo. Ou de aproveitar um feriado para acabar com aquela clássica lacuna nos conhecimentos de literatura clássica. Nos últimos tempos, o que me deixa satisfeita é descobrir que Roth e afins publicaram como romance a última novela que escreveram, já que só a concisão garante a leitura por prazer nas horas vagas. Só não me venham cobrar dessa gente livros mais extensos, por favor.

A coluna de 3/7

Na foto abaixo, o largo de São Bento visto do convento, em 1884, por Militão Augusto de Azevedo. Coluna publicada no Sabático de hoje, no Estadão.

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BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

PERFIL
Loyola mostra Ruth Cardoso “por trás da catedrática”

Ignácio de Loyola Brandão já entregou à Globo Livros os originais do perfil Ruth Cardoso: Fragmentos de Uma Vida, ao qual se dedicou no último ano e que deve sair em setembro, quando a socióloga, morta em 2008, completaria 80 anos. Foi Fernando Henrique Cardoso quem sugeriu o nome dele para a editora, ao lembrar que, em 1995, o escritor e colunista do Estado havia realizado para a revista Vogue uma extensa entrevista com Ruth, que até então se recusava a falar no papel de primeira-dama. Na ocasião, Loyola tirou dela até comentários sobre a relação com FHC (“Todos o consideravam o bonitão, mas confesso que nem era tanto. Tão magrinho”). Trechos dessa conversa estão no livro, assim como lembranças de dezenas de parentes e conhecidos (“Não era amiga dessas de contar no detalhe uma intimidade. Nunca deixava ultrapassar certos limites”, descreveu a amiga Regina Meyer ao escritor). Loyola define a obra como um “retrato alongado” da “mulher por trás da catedrática, da doutora, da primeira-dama, da feminista”.

SOCIOLOGIA
Ruptura na modernidade

O clássico contemporâneo Sociedade de Risco, de Ulrich Beck, terá em agosto a primeira edição nacional, com tradução de Sebastião Nascimento para a Editora 34. No livro, o alemão argumenta que vivemos momento de ruptura similar ao do fim da era feudal e no qual “a produção social de riqueza é acompanhada pela produção social de riscos”. A obra saiu na Alemanha em 1986, logo após o acidente nuclear de Chernobyl.

INFANTO-JUVENIL
Best-seller para novo público

A estreia de John Grisham no gênero infanto-juvenil levou-o neste mês ao topo dos mais vendidos nos EUA e já tem dona no Brasil – até o fim do ano, a Rocco lança o primeiro título da série Theodore Boone, sobre um expert em advocacia de 13 anos. Antes, em agosto, sai A Lei, mais recente thriller de tribunal adulto do autor de A Firma.

CINEMA
Feitos um para o outro

A Intrínseca adquiriu os direitos de One Day, romance de David Nicholls que será adaptado para o cinema pela finlandesa Lone Scherfig (diretora do premiado Educação), com Anne Hathaway (protagonista do Alice de Tim Burton) no papel central.

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A trama tem um quê de Harry e Sally: os protagonistas, Emma e Dexter, encontram-se pela primeira vez em 1988 e voltam a se esbarrar por duas décadas. O próprio escritor faz o roteiro do longa, previsto para 2011 – quando também sai o livro por aqui.

ICONOGRAFIA
Lembranças reeditadas

Carlos Augusto Calil, secretário municipal de Cultura de São Paulo, reedita o livro Memória Paulistana, cuja primeira edição, de 1975, ele organizou para a inauguração da sede do Museu da Imagem e do Som na avenida Europa. Com fotos do fim do século 19 até os anos 40, o álbum era o catálogo de uma mostra idealizada por Rudá de Andrade, então diretor do MIS. Inclui imagens de Militão Augusto de Azevedo e Valério Vieira “razoavelmente desconhecidas à época”, escreve Calil no prefácio à nova edição. Deve sair este ano pela Imprensa Oficial do Estado de SP.


FANTASIA
Outros rumos da Panini

Líder em quadrinhos no Brasil, com obras da Marvel e DC Comics, a Panini aposta no que chama de “livros literários” no momento em que grandes editoras investem nas HQs. A estreia acontece com Orcs – Guardiões do Relâmpago (“no melhor estilo Senhor dos Anéis”, informa a editora). Ainda neste ano, saem títulos como Demonkeeper – O Guardião do Caos (sobre fera “muito, muito perigosa”) e Bram Hambric (“que segue a linha Harry Potter”).

ENSAIO
De onde vem a criatividade

Um dos maiores pensadores do cyberespaço, o americano Steven Johnson tenta decifrar a origem da criatividade – e por que determinados ambientes parecem mais propícios ao surgimento de boas ideias – em Where the Good Ideas Come From: The Natural History of Inovation, que sai em outubro nos EUA. Por aqui, os direitos estão com a Zahar, que lançou em 2009 A Invenção do Ar.

A coluna de 26/6

No Estadão.com, aqui.

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BABEL

Livro de contos ajudará desabrigados do Nordeste

RAQUEL COZER –  raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carrero, Alberto Mussa e Marcelino Freire estão entre os 19 ficcionistas confirmados para a coletânea Tempo Bom, cuja renda será revertida aos moradores de Alagoas e Pernambuco que ficaram desabrigados com as chuvas dos últimos dias. O projeto foi idealizado na segunda-feira pelo escritor pernambucano Sidney Rocha e já tem editora, a paulistana Iluminuras; como os autores, ela abriu mão do porcentual nos lucros. Vários contos, inclusive inéditos, já foram enviados, e o livro está em produção. Falta a confirmação de dois ficcionistas. Rocha quer mandar o material para a gráfica na próxima quarta e pôr o livro (ainda sem preço definido) à venda nos primeiros dias de julho. “A ajuda financeira deve chegar o mais rápido possível aos locais necessitados. Será uma lição de eficiência, uma cruzada literária”, afirma. Por curiosidade, o escritor tem um conto num projeto similar que a Garimpo Editorial organiza – mas este, em prol do Rio e do Haiti, foi iniciado em março e não deve sair antes de agosto.

CINEMA
Long-seller juvenil

Pedro Bandeira acaba de assinar contrato para a adaptação de seu mais famoso livro juvenil, A Droga da Obediência. O longa será coproduzido pela REC Produtores (responsável por Cinema, Aspirinas e Urubus) e a Gullane (Carandiru). A obra, de 1984, teve mais de 1,5 milhão de cópias vendidas.

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Xuxa e o Mistério de Feiurinha, baseado em outro best-seller do autor, O Fantástico Mistério de Feiurinha, foi o segundo filme nacional mais visto de janeiro a maio de 2010 – perde apenas para Chico Xavier – e o melhor desempenho de Xuxa no cinema em anos.

QUADRINHOS 1
Contra o tempo

A Conrad corre para lançar a tempo da Flip a coletânea Meus Problemas com as Mulheres, de Robert Crumb, e, na Bienal, uma coletânea de histórias de Aline, mulher dele.

QUADRINHOS 2
Obra do canhoto

Uma versão em HQ para A Divina Comédia, de Dante, que sai em agosto nos EUA, teve direitos comprados pela Companhia das Letras. O responsável por ilustrar o Inferno, o Purgatório e o Paraíso do clássico foi Seymour Chwast, conhecido como “o designer canhoto” e estreante em graphic novels.

INTERNET
O Brasil na Biblioteca Mundial


É da Fundação Biblioteca Nacional o arquivo mais acessado na World Digital Library (wdl.org), projeto de digitalização de livros, manuscritos e acervos visuais e sonoros de bibliotecas de 55 países. Trata-se de um mapa da Espanha e de Portugal de 1810 (foto). Juntos, todos os documentos disponíveis tiveram 67 milhões de visualizações desde abril de 2009, quando o site entrou no ar.

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Nesta semana, Muniz Sodré, presidente da FBN, foi eleito membro do Conselho Executivo da WDL. Com os membros criadores – a Biblioteca do Congresso dos EUA e a Unesco – e conselheiros de mais quatro países, ajudará a definir os novos passos do projeto.

VENDAS
Memorial português

A morte de Saramago, dia 18, fez seus livros passarem a vender pelo menos dez vezes o que vendiam nas principais livrarias de São Paulo. A Saraiva, que havia comercializado 188 títulos do dia 13 ao 17, contabilizou 1.873 entre o 18 e o 22. Na Cultura, a venda foi 14 vezes a de antes de o autor morrer. A pedido de livreiros, a Companhia das Letras pôs no mercado mais 30 mil volumes.

NOVA EDIÇÃO
Francês nas prateleiras

Conhecido pelas adaptações que Robert Bresson fez de suas obras Diário de Um Pároco de Aldeia e Nova História de Mouchette, o francês Georges Bernanos (1888-1948) terá seu primeiro livro, Sob o Sol de Satã, de 1926 – que virou filme nas mãos de Maurice Pialat -, editado pela É Realizações. Considerado o mais original entre os autores católicos franceses do século 20, Bernanos andava esquecido no mercado nacional.

Colaborou Antonio Gonçalves Filho

Contos nanicos

Texto meu publicado no Caderno 2 de hoje.

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Um livro atarracado, só com contos nanicos

Veronica Stigger explora humor e concisão em ‘Os Anões’

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

À primeira vista, parece ter 400 páginas o novo título de contos de Veronica Stigger, mas é a espessura que engana. São apenas 61, em papel cartonado, grosso, o que dá ao pequeno volume aspecto atarracado. A proposta, nas palavras da escritora e crítica de arte gaúcha, é que o formato “reitere o caráter anão do livro”.

Não poucos detalhes corroboram essa característica em Os Anões, que sai agora pela Cosac Naify. A começar pela epígrafe, pinçada de texto do poeta Carlos Drummond de Andrade sobre “um continho bobo, anão, contente da vida”. Daí em diante, intercalam-se microcontos de três linhas, textinhos em forma de anúncio e minirroteiros para curtas-metragens. A narrativa de proporções mais ambiciosas tem somente seis páginas.

Seria algum tipo de obsessão com gente de baixa estatura? De fato, a origem de tudo está na frase “Ele tinha a altura de um pigmeu, e ela batia na cintura dele”, que um dia ocorreu à autora como ideia para abrir um texto e ficou guardada, sem conclusão. A sentença surge agora no início do conto-título, o primeiro da obra – e também o único a abordar anões propriamente ditos, o que faz entender que a pequenez que atrai Veronica não tem relação com a altura de ninguém.

“O que me interessava era trabalhar variações de gêneros, como já havia feito no Gran Cabaret Demenzial (2007), que tem textos em forma de legendas, de palestras, de peça de teatro”, afirma a escritora.

Essa não é a única semelhança entre os títulos. Como naquele, aparece aqui o interesse pelo imprevisível e pelo absurdo – o que levará, por exemplo, a dupla baixinha do conto inicial a causar comoção na fila de uma confeitaria por permanecer “em cima do banquinho a perguntar sobre doces e a pedir provinhas” sem pressa nenhuma (o resto não se pode contar, sob risco de tirar o impacto do conto anão).

A concisão, ela avalia, foi peça essencial para trabalhar o absurdo nos novos textos. “A maneira de narrar serve a ressaltar o que quero na história. Para o conto O Teleférico, fiz várias versões, sempre cortando um pouco, até chegar ao ritmo perfeito para destacar o sentido”, conta, referindo-se a um dos textos mais longos do volume, de três páginas.

A obra será lançada amanhã junto a outra de fato destinada a pessoas miúdas. Trata-se de Dora e o Sol (34), estreia de Veronica na literatura infantil, em parceria com Fernando Vilela, baseada na história real de uma vira-lata que vive com a mãe da autora.

A Babel de 19/6

Abaixo, a coluna de ontem do Sabático. Preciso dizer que foi mais caótico apurar com jogo do Brasil em meio de semana do que costuma ser com feriado…

Antes, para constar: além do Sabático regular ontem circulou o Sabático Especial Saramago, com reportagem de abertura do Toninho (cujas ótimas teorias sobre a obra do autor ficam para uma próxima); entrevista com o Harold Bloom, que o Bira conseguiu na sexta-feira mesmo; texto do Leonardo Boff sobre o ateísmo do (e um encontro com) Saramago; análise do Zanin sobre as adaptações para o cinema;  explicação da Lilia M. Schwarcz para a dialética do coco e texto meu sobre o caminho aberto pelo Memorial do Convento para as novas gerações em Portugal.

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BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

Obra holandesa de referência para as artes ganha tradução na íntegra

O clássico O Outono da Idade Média, de Johan Huizinga (1872-1945), terá em outubro sua primeira edição na íntegra em português, com tradução direta do holandês. A obra, de 1919, vem sendo trabalhada há seis anos pela Cosac Naify. A primeira tentativa de versão não deu certo, e só depois disso a editora localizou a tradutora Francis Janssen, filha de holandeses. “Huizinga misturava holandês antigo e moderno, então é difícil entender as nuances”, diz o editor Milton Ohata, que teve colaboração dos historiadores Evaldo Cabral de Melo e Tereza Aline de Queiroz nas leituras do texto. O livro, sobre a arte medieval, destaca-se por abordar a Idade Média como uma era completa em si, e não transitória entre a Antiguidade e o Renascimento. A edição brasileira baseia-se na holandesa de 1997, que restabeleceu o texto original e está fora de catálogo. A maioria das 20 traduções existentes, inclusive a de Portugal, foi feita a partir da versão abreviada inglesa.

EVENTO
Festa no Recife
A 2.ª FreePorto, festa literária criada no Recife como resposta à “prima rica” pernambucana Fliporto, aposta no nonsense para a edição que vai de 3 a 5/12. Após anunciar o Ano da Bulgária no Brasil e o Prêmio Nacional Pierre Menard de Cover Literário, ao qual concorrem os textos “menos originais possíveis”, o evento inicia em julho um jogo interativo que convidará leitores a desvendar um mistério relacionado ao tema do encontro, o conto O Casamento da Raposa.

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Entre os autores já confirmados para o evento estão Mario Prata, Antonio Prata, Nicolas Behr e Ronaldo Correia de Brito.

CINEMA
Policial rumo às telas
Ninguém se Move, policial de Denis Johnson que sai este mês pela Companhia das Letras, está sendo produzido para o cinema numa parceria entre a empresa brasileira RT Features, de Rodrigo Teixeira, e a produtora independente norte-americana This Is That, responsável por filmes como 21 Gramas (2003) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004).

AULAS
Capital em livro e vídeo
Um dos maiores especialistas do mundo em Karl Marx, o antropólogo David Harvey lançou há pouco o livro A Companion to Marx”s Capital, cujos direitos acabam de ser comprados pela Boitempo. A obra é uma compilação das aulas sobre o volume 1 de O Capital, que Harvey ministrou por 40 anos na City University de Nova York – e que, em 2008, já haviam ganhado versão em 13 vídeos, disponibilizados em davidharvey.org.

ORIGINAIS
Indiscrições na rede 1
Um autoidentificado “agente literário rabugento” criou um blog para destacar mensagens embaraçosas recebidas de autores inéditos. Fica em slushpilehell.tumblr.com (algo como “inferno de pilha de originais”) e inclui tentativas como “Olá. Você é um agente visionário que quer levar o estagnado mercado de ficção a novos patamares?”. A descrição do blog diz: “Relaxem, autores. SlushPile Hell nunca vai zombar de conceitos de livros nem transcrever amostras. Estes são só trechos isolados que vocês têm que admitir que são… Ah, não importa, vocês vão ficar chateados de qualquer jeito.”

BLOG
Indiscrições na rede 2
Em encontro com blogueiros na quarta-feira, em São Paulo, para divulgar e reunir opiniões sobre o blogdacompanhia.com.br, o editor Luiz Schwarcz ouviu a sugestão de que a página passasse a incluir textos de editores e autores com bastidores da criação de livros. “É preciso cuidado para não ferir a ética”, comentou, “mas já avisei a Maria Emilia (Bender, editora) de que ainda escrevo um post chamado Sexo, Drogas e Originais”.

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Blogueiro de primeira viagem, Schwarcz tem feito sucesso com textos como aquele em que conta como levou Rubem Fonseca para a Companhia. Chegou a tentar escrever um sobre como a editora deixou de comprar os direitos de Harry Potter, mas notou que não poderia fazer isso sem “ferir a ética”.

Era da desconfiança

Saiu no Sabático de ontem meu texto sobre Os Excluídos, da sino-americana Yiyun Li – uma dos 20 autores com menos de 40 que merecem atenção, segundo lista recente da New Yorker. O romance acaba de sair no Brasil pela Nova Fronteira.

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Vidas às margens de uma história

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Yiyun Li passou a infância orientada a nunca confiar em ninguém fora de casa. A recomendação, comum a crianças em qualquer lugar do mundo, era algo mais complexa na China do final dos anos 70. Com a morte do líder comunista Mao Tsé-tung (1893-1976), o país viveu uma breve fase de liberalização política, a Primavera de Pequim, para em seguida entrar num período nebuloso que culminaria com o massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Li, hoje com 37 anos, deixou a capital chinesa em 1996 para estudar nos Estados Unidos, mas os reflexos daqueles tempos – prova de que não era simples o que seus pais lhe pediam – permaneceram. “Só entendi totalmente depois que saí do país e me tornei escritora”, diz, por e-mail, ao Estado, a autora que acaba de ter publicado por aqui seu primeiro romance, Os Excluídos (2009), cuja trama se inscreve no ambiente de desconfiança e medo em que vivia a população de um vilarejo fictício em 1979. A história se desenvolve em torno da condenação à morte da personagem Gu Shan, de 28 anos, por ideias anticomunistas. Em 21 de março, quando começa o romance, os moradores são convocados à cerimônia pública na qual ela será exposta, ao som de hinos, antes da execução.

Poucos deles saberão que, antes de morrer, a jovem teve seus rins retirados para um transplante não autorizado e as cordas vocais cortadas para não se manifestar na cerimônia. Enquanto esses fatos se fazem revelar, a autora apresenta personagens como Tong, menino de 7 anos que aprende a delatar em troca de segurança; Nini, garota deficiente de 12 anos tratada como escrava na casa dos pais; Bashi, o idiota da vila, que desenterra o corpo de Shan e descobre que o cadáver foi violado; sr. e sra. Hua, casal de catadores que criou sete meninas abandonadas no lixo até elas lhe serem tiradas pelo governo. Logo o leitor se dará conta de que há muito pouco de inocência nessa história ? aos 14 anos, antes de se voltar contra o comunismo, Shan, então integrante da Guarda Vermelha de Mao, chutou durante um confronto a barriga da mãe grávida de Nini, causando a deformidade da menina.

O tom realista e duro da narrativa de Yiyun Li já tinha chamado a atenção da crítica internacional em sua estreia como escritora, em 2005, com o livro A Thousand Years of Good Prayers – na época, foi eleita pela revista literária Granta uma das melhores jovens autoras dos EUA. O volume recebeu prêmios como o PEN/Hemingway Award e o Guardian First Book Award, e dois de seus contos foram adaptados para o cinema por Wayne Wang em 2007, Mil Anos de Orações e A Princesa de Nebraska. Há poucos dias, Li foi listada pela prestigiosa revista New Yorker entre os 20 escritores de menos de 40 anos que merecem atenção – uma seleção que, em outros tempos, incluiu nomes como Martin Amis e Ian McEwan. Uma trajetória peculiar para uma jovem que, quando chegou aos EUA, com 24 anos, pretendia apenas se tornar imunologista – chegou a fazer o curso em Iowa, mas abandonou a especialização. Casada e mãe de dois filhos, ela hoje mora em Oakland, na Califórnia. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

Ao longo do romance, vários personagens tomam atitudes questionáveis para receber em troca algum benefício, como o rapaz que entrega as cartas da namorada às autoridades para conquistar um posto no Exército. Traições como essas, ou até crimes, eram comuns na China pós-Revolução Cultural?

Em momentos de turbulência política como os retratados no romance, ou mesmo como os 30 anos anteriores aos acontecimentos ali narrados, é comum as pessoas entrarem em pânico no que diz respeito à própria segurança. E, quando isso acontece, tendem a trair umas às outras sem pensar que poderiam fortalecer a própria sobrevivência se juntassem forças aos vizinhos ou amigos. Naquele momento, na China, muitas pessoas acreditavam que, quanto mais gente ao redor fosse derrubada, menor seria a punição que caberia a elas próprias. Com certeza não era a única maneira de reagir ao que acontecia ali, mas talvez tenha acontecido com mais frequência do que deveria acontecer. Não era algo inaceitável pela lógica daquele momento.

E como era confiar em alguém num ambiente como aquele? É possível dizer que as experiências daquele período ajudaram a definir as características da atual sociedade chinesa?

As pessoas, de fato, desconfiavam muito umas das outras naquele ambiente. A orientação que eu mesma recebia em casa era a de nunca confiar em ninguém que fosse de fora. Pensando como algo coletivo, é possível dizer que a sociedade tenha sido, de uma maneira ou de outra, moldada em parte pela desconfiança e por outros resultados emocionais de experiências políticas como aquela.

Você cresceu em Pequim, enquanto os acontecimentos do romance se passam em um vilarejo muito pequeno, fictício. E, no entanto, há ali um realismo social muito forte. A situação era similar nesses dois cenários? Como você, que tinha 7 anos naquela época, percebia a realidade desses “excluídos”?

No final dos anos 70, Pequim era muito parecida com uma pequena cidade de província. O realismo social a respeito do qual você fala é uma reprodução da minha vida e da minha geração crescendo. O que fiz foi apenas descrever vidas que me eram muito familiares. Agora, de fato, uma coisa que eu não conseguia entender direito era a realidade dos excluídos. Mas, como criança, quando você está confuso (e quando ninguém dá explicações nem ajuda a entender o mundo), você absorve os detalhes da realidade como uma esponja. Comecei a compreender tudo aquilo quando entrei na adolescência. Agora, entender totalmente… Isso só aconteceu depois que deixei o país e me tornei escritora.

O New York Times descreveu seu romance como “nada fácil ou agradável de ler”. Você concorda? Foi trabalhoso escrever uma história assim?

Não achei difícil escrever o romance, mas, na revisão, me dei conta de como a história é dura. Ainda assim, diria que “agradável” não é uma qualidade que eu me empenhe em alcançar. Minha resenha favorita foi a de um jornal local, que disse que o meu livro “não foi feito para os covardes”. Quando li isso, gargalhei.

Você foi para os Estados Unidos em 1996 para estudar imunologia e lançou o primeiro livro quase dez anos depois. Como aconteceu essa passagem da ciência para a literatura?

Comecei escrevendo um pouco quando ainda estudava imunologia, mas em 2000 desisti do curso. Trabalhei por algum tempo em um hospital e entrei num curso de escrita criativa em Iowa, e foi então que comecei a levar a sério a escrita. Acho que me ocorreu que nunca amei a ciência como amo a literatura. Queria ser escritora e fazer algo que eu amasse.

E é fácil para você escrever em inglês?

Nunca é fácil escrever, em idioma nenhum. Mas, pelo que posso avaliar, não é mais difícil para mim escrever em inglês do que qualquer outro nativo. Acho até mais fácil escrever em inglês do que em chinês. Aliás, para mim, a ideia de escrever um livro em chinês é praticamente impossível.

Escritores mais jovens são quase sempre comparados a outros como forma de referência. Lembro-me de ter lido uma frase em que você era comparada ao mesmo tempo com Saramago e Coetzee. Com quem de fato se identifica?

Ah, todas as comparações são bem-vindas para mim, porque sei que não sou tão boa quanto ninguém com quem sou comparada. Minha preferida é Tolstoi, Chekhov e George Orwell em uma única resenha. Foi uma grande honra, mas não quero ser comparada a Orwell, e sei que nunca seria tão boa quanto Tolstoi e Chekhov! William Trevor, o contista e romancista irlandês, é provavelmente a maior influência literária na minha carreira.

Por falar em idade, ficou surpresa em ver o seu nome entre os 20 autores com menos de 40 anos que merecem atenção, segundo a revista New Yorker?

O que me surpreendeu foi ser chamada de jovem! Eu não sou mais tão jovem assim, mas é reconfortante saber que escolhi uma profissão na qual a juventude dura um pouco mais do que na maior parte das outras profissões.

O que achou de ver os seus contos transformados em filmes por Wayne Wang?

Quando ele me falou que queria transformar meus contos em filme, disse a ele que seria impossível, porque minhas histórias são muito internas e muito silenciosas para o cinema. Fiquei feliz quando ele me provou que eu estava errada.

E há alguma chance de vermos Os Excluídos no cinema?

Não acho que o romance tenha chance de ser transformado em filme, pela óbvia razão de que é muito político e sombrio, e as autoridades na China não permitiriam que as filmagens fossem realizadas no país. Diferentemente dos contos que Wang adaptou, a história de Os Excluídos teria de ser filmada na China.

A coluna de 12/6

Na primeira imagem, os registros números 19, 20 e 21 do primeiro livro de registros da Fundação Biblioteca Nacional, em 1899: O Coruja, Casa de Pensão e O Cortiço, de Aluizio de Azevedo. No Estadão.com, a Babel tá aqui.

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BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

Biblioteca Nacional alcança a marca de meio milhão de obras registradas

No mês em que o direito autoral chega ao centro da discussão política no País – depois de amanhã, o Ministério da Cultura lança a consulta pública do Anteprojeto da Lei de Direitos Autorais -, a Fundação Biblioteca Nacional alcançará a marca de 500 mil obras intelectuais registradas. Isso deve ocorrer em até duas semanas, segundo o responsável técnico Jaury de Oliveira, do Escritório de Direitos Autorais. O dado curioso é que, no intervalo de quase cem anos entre o primeiro registro – o livro Lithographia e Chromolithographia, de León de Rennes, em 1899 – e 1995, só 90 mil obras foram registradas; as outras 410 mil o foram nos últimos 15 anos. “O aumento é progressivo. O tema ganhou relevo graças aos meios digitais”, diz Oliveira. Ele ressalta, porém, que parcela “surpreendente” das obras é “de gente simples, como agricultores e garis”. Em tempo: segundo o artigo 19 da lei 9.610/98, o registro de autoria em órgão público é facultativo.


LOJAS

Empréstimo de e-books

A Saraiva estreou na quarta, no http://www.saraiva.com.br, sua loja de e-books. A empresa entra nesse mercado dois meses depois da Livraria Cultura e aponta como diferencial a criação de aplicativo próprio para o usuário acessar os livros eletrônicos, o Saraiva Digital Reader. Sérgio Herz, diretor de operações da Cultura, diz que é “igualzinho” ao leitor da Adobe, usado por sua livraria.

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Em breve, a Saraiva deve disponibilizar um recurso para empréstimo de e-books. O dono do livro envia um link para um amigo baixá-lo, mas fica impossibilitado de lê-lo enquanto não for devolvido. Se precisar, pode “desemprestá-lo” com um clique. Herz afirma que a Cultura também tem tecnologia para isso, mas que ainda não oferece o serviço por considerá-lo burocrático.

DVD
Gullar por Gullar

O Instituto Moreira Salles lança, no segundo semestre, um DVD com Ferreira Gullar lendo a íntegra de seu Poema Sujo – obra de 1976 produzida no exílio, em Buenos Aires, e tida como sua obra-prima. A filmagem foi realizada em 2006 por João Moreira Salles e Walter Carvalho e sai por ocasião dos 80 anos que o poeta completa neste ano.

INFANTIL
A velha e a mosca

Vencedor do prêmio Opera Prima na última Feira de Bologna, There Was An Old Lady, de Jeremy Holmes, será lançado no Brasil pela Amarilys, após leilão entre seis editoras. Considerado uma “delícia tipográfica” pelo júri do evento – o próprio livro é o corpo da personagem central -, sai em outubro, como Tinha Uma Velhinha Que Comeu uma Mosca (foto).

CONTOS
Depois do Booker Prize

Quando levou o Booker Prize por O Tigre Branco, em 2008, o indiano Aravind Adiga chamou atenção por ser estreante na literatura. Seu mais recente livro, no entanto, foi escrito antes do romance. Trata-se de Entre os Assassinatos, que sai em novembro pela Nova Fronteira. São 12 contos interligados, situados entre 1984 e 1991, anos em que Indira e Rajiv Gandhi foram mortos.

TRADUÇÃO
Para estrangeiro ver

Tem muitas incorreções a recente tradução de Boleros em Havana, de Roberto Ampuero, lançada pelo selo Bonobo. Assinada por Viviane Vieira, inclui erros de português (como “mau-humorados”) e trechos sem sentido (como “terrível equívoco, pelo qual alguém deve estar pagando a pratos rotos” e “as intermináveis filhas dos que esperavam resignação por um pedaço de pão”).

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Contatada pela coluna, a Novo Século, detentora do selo, afirmou que já havia detectado problemas na tradução e que recolherá o livro antes de lançar uma nova edição. Quem tiver comprado o título pode falar com a editora pelo tel. (0 –11) 3699-7107.

Colaborou Roberto Muniz