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Tenho uma coisa com a morte. Tenho uma coisa suicida, eu sei. Se as músicas são sonhadas, é como se minha voz viesse do sonho delas.
— Dylan, 1966
Judas!
— Keith Butler, ao interromper o show no Manchester Free Trade Hall, 1966. Originalmente atribuído a um espectador na plateia do Albert Hall, em 1998. Pesquisas depois revelaram que o fatídico show aconteceu no Free Trade Hall, em Manchester. John Cordwell também afirma ter proferido o famoso grito
Bob Dylan, vá para casa.
— Paris Jour, 1966
Era pouco depois da meia‑noite, numa noite de meados de março de 1966. No escuro, o aeroporto de Lincoln se fundia aos campos à sua volta. Dylan, cinco integrantes dos Hawks, dois roadies e um convidado estavam em dois carros que seguiam em direção ao aeroporto. Quando chegamos, as luzes da pista e da torre de controle foram acesas e mecânicos cercaram o bimotor Lockheed Lodestar, o avião particular de Dylan. O piloto e o copiloto passaram a cuidar dos procedimentos de voo. Denver era o próximo destino, depois a equipe voltaria a Nova York para trabalhar no estúdio, e então seguiria para a costa noroeste da América do Norte, Havaí, Austrália, Escandinávia, Irlanda, Inglaterra e França, e em seguida voltaria para os Estados Unidos. Esse seria o começo do fim de uma das muitas carreiras de Dylan.
Dylan entrou no refeitório escuro. Ele se serviu do café velho de uma cafeteira, então ficou à janela, ao lado de um mecânico vestido num macacão branco que perscrutava a noite. “Deve ser solitário por aqui”, Dylan disse ao mecânico. Ambos olhavam para a pista, não um para o outro. “Sim”, respondeu o mecânico, “mas é um emprego. Eu pego as horas que eles me oferecem.” “Eu sei como é isso, sei mesmo”, disse Dylan, enquanto ambos olhavam para a planura, e pouco depois seguiu para a pista. Ele acabava de fugir de 50 fãs no hotel, mas seis estavam agrupados ao redor do avião. “O show foi ótimo”, disse um dos fãs. “Gostamos muito, Bob”, disse outro. “Quando você vai voltar para cá?”. Dylan disse que não sabia, e acrescentou: “Muito obrigado, fico feliz que tenham gostado do show”.
Ele rabiscou o autógrafo algumas vezes. Um jovem tímido, com cerca de 17 anos, se aproximou. Ele usava óculos, uma camisa branca impecável e gravata. “Sr. Dylan”, ele disse com nervosismo, “também me interesso por poesia”. “Ah, é?”, respondeu Dylan. “Sim, senhor”, respondeu o rapaz. “Gostaria de saber se o senhor poderia dispor de alguns minutos, quando puder, para ler alguns dos meus poemas”. “Claro”, respondeu Bob. O jovem estendeu para Dylan um envelope grande tão cheio que mais parecia uma bola de futebol americano. “Isso tudo são poemas?”, perguntou Dylan. Orgulhoso, o rapaz respondeu: “Sim. Estou escrevendo mais desde que passei a estudar as suas canções”. “Bem,” disse Dylan, “obrigado. Vou tentar ler alguns hoje à noite. Seu endereço está no envelope? Vou escrever para dizer o que achei deles”. O rapaz incandesceu. “Isso é maravilhoso. Espero que goste.”
Dentro do avião, os músicos da banda já cochilavam, uma pilha de corpos afundados nos assentos. Bob provavelmente precisava mais de sono que qualquer um deles, mas estava desperto e parecia ansioso para usar os minutos até que o avião estivesse pronto para decolar. Literatura: “Rimbaud? Não consigo lê‑lo agora. Prefiro ler o que quero ultimamente. ‘Kaddish’ é a melhor coisa que já li. Todo o resto é falsidade. Nunca curti Pound ou Eliot. Shakespeare escrevia por encomenda. Ele não era um místico, apenas uma das arquirrainhas de tudo. Uma rainha delirante e um cérebro de anfetaminas cósmico”. Sobre a sua nova música: “Não houve nenhuma mudança. Nenhum instrumento mudará o amor, a morte, em nenhuma alma. Minha música é minha música. A música folk era fingimento. Eu nunca gravei uma canção folk. A minha ideia de uma canção folk é Jeannie Robertson ou Dock Boggs. Chamemo‑la de música histórico‑tradicional. Quero compor músicas agora. Até Bringing It All Back Home, compor era secundário. Eu ainda era um cantor. Então eu soube que precisava escrever canções. Não preciso consultar ninguém para saber que sou bom. Eu sei, eu sou honesto. Fazer com que aquelas pessoas da literatura, algumas daquelas pessoas da poesia sentassem com os meus discos, isso seria bom”. Sobre os direitos civis: “Olhe para o Sul. Os negros estão tomando o controle da cidade. Mas isso é bacana? Poder, tudo diz respeito a isso. Os negros ricos vão assumir o controle. Os jovens são apenas o pontapé inicial. Se eu fosse negro, não sei se desejaria frequentar a escola com os brancos”. As palavras jorravam. “É papo‑furado. Temo que seja tudo morte. Não quero me ver morrer. Prefiro me atirar de um penhasco em um carro do que fazer algo em que não acredito. Preciso superar a pressão […] Eu vi Chuck Berry no aeroporto de St. Louis. Dá para escutar Buddy Holly sozinho, mas Chuck Berry? É preciso estar na estrada.”
Os gerentes da turnê, Bill Avis e Victor Maimudes, conferiram os cintos de segurança de todos. Eu e Dylan estávamos sentados frente a frente. Em um joelho, ele tinha um envelope com uma prova do seu livro, Tarantula, que acabava de receber do editor para aprovação. No outro estava o envelope do fã. Eu sabia que ele provavelmente não abriria nenhum dos dois naquela noite. Mexi no meu gravador, amaldiçoando o ruído dos motores. Eu segurava o microfone a 30 centímetros de Dylan. Os olhos dele estavam semicerrados. Ele estava exausto, mas disse que não dormiria mesmo que eu não estivesse presente. Ele simplesmente tinha muito a fazer. “É preciso de muitos remédios para manter esse ritmo”, disse Dylan. “É muito duro, cara. Uma turnê como essa quase me matou. Está sendo assim desde outubro. Isso me enlouquece, de verdade. Nunca aconteceu nada parecido antes. Tem sido um período bem estranho, me derrubou mesmo. Vou reduzir o ritmo. No ano que vem, a turnê vai durar apenas um mês […] ou dois. Só estou fazendo isso, esse ano, porque quero que todos saibam o que estamos fazendo.” Dylan bebericou o chá, soprou uma nuvem de fumaça de cigarro acima da cabeça, ajeitou o colarinho e prosseguiu: “É absurdo que as pessoas fiquem sentadas sendo ofendidas pela própria insignificância, então elas precisam forçar que tudo mais entre no buraco com elas, e morrem tentando. Esse é o problema. Mas não estou mais envolvido com isso. Já disse isso para você mil vezes. Não sei se você acha que eu estou brincando, ou se você acha que é uma fachada. Eu simplesmente não dou a mínima — honestamente, não dou a mínima — para o que as pessoas falam de mim. Não dou a mínima ao que as pessoas pensam de mim. Não dou a mínima ao que as pessoas sabem a meu respeito. Não dou a mínima”.
“O palco é uma curtição agora. Não era antes, porque eu sabia que o que estava fazendo era simplesmente vazio demais. Eram embaixadores mortos que vinham me assistir, aplaudiam e diziam: ‘Oh, que legal, eu gostaria de conhecê‑lo e tomar um coquetel. Talvez eu traga o meu filho, Joseph, comigo. Joseph gostava muito de bater palmas. ‘Você gostou do programa, não gostou, Joseph?’. E Joseph, é claro, dizia: ‘Ah, sim, pai. Sim, eu gostei — ah, eebaaaa!’ E então eles perguntam: ‘Posso levar Isabella?’. E então, quando você menos espera, está rodeado por cinco ou seis crianças com garrafas de Coca ou ginger ale nas mãos e você é confrontado por algum embaixador que enfiou a mão no seu bolso tentando sacudi‑lo e cumprimentá‑lo. Eu não permitirei que ninguém entre nos bastidores, nem mesmo para me cumprimentar. Não me cumprimentem. Eu simplesmente não dou a mínima.”
O ritmo do discurso e a vitalidade dos pensamentos passaram a inflamar Dylan. Seus olhos estavam despertos quando ele prosseguiu: “Você não pode me perguntar como eu durmo. Você não pode me perguntar como eu faço, não pode perguntar o que eu acredito que estou fazendo aqui. Fora isso, nos entenderemos muito bem. Pergunte qualquer coisa que eu respondo. Agora temos algo muito claro em relação ao livro. Direi a Albert que chegamos a um acordo em relação ao livro. Darei a você o quanto puder do meu tempo. Eu chego ao ponto muito fácil quando o assunto são coisas que quero que sejam feitas, mas você pode me enrolar. Você pode fazer o que quiser, sem maiores dificuldades. Mas nunca vou te perdoar se fizer isso, cara. Não será uma biografia porque eu ainda não morri. Será uma coisa atemporal, certo?”
“Ninguém me conhece. O que as pessoas sabem de verdade? Que o nome do meu pai é Zimmerman e que a família da minha mãe é de classe média? Não vou sair por aí dizendo às pessoas que isso é mentira. Não vou encobrir nada que disse antes. Não voltarei a falar sobre nada, qualquer declaração ou qualquer coisa que eu tenha feito. Não vou deixar de assumir responsabilidade por nada que tenha feito desde que nasci. Desisti de dizer às pessoas que elas estão enganadas quanto ao que pensam sobre qualquer coisa, sobre mim ou o mundo, ou o que quer que seja. Eu não dou a mínima. Você pode escrever qualquer coisa que quiser escrever.
“Mas você não vai editar esse livro, vai? Eles vão editá‑lo? Isso está no seu contrato? Porque é uma armadilha se não estiver no contrato. Não importa o quanto você for objetivo quando escrever os seus lances, não importa o que você escreva, eles podem torcer tudo acrescentando as próprias palavras. Agora, você não vai dizer ‘autorizada por Bob Dylan’. Eu escreverei isso na capa. Escreverei quatro frases na capa e assinarei o meu nome, algo como: ‘Bob Shelton levantou a minha bola no New York Times há cinco anos. Ele é um cara legal e eu gosto dele. E ele escreveu este livro, que, por sinal, não é’ — apenas para garantir que venda em Nebraska e no Wyoming — ‘não é berrante’.” Satisfeito com um endosso tão absurdo, Dylan sorriu.
“Não há nada que ninguém possa expor a meu respeito. Todos acham que há muito a desmascarar, 1 milhão de miudezas, como a mudança do nome ou o que quer que seja. Isso não me importa. O único tempo em que importou foi quando as pessoas surgiam com coisas como, ‘você teve catapora’. Ou ‘a sua cueca fica suja quando você está com os pés no chão’. Entendeu? Isso me incomodou. Não estou falando de coisas musicais. Estou falando das pessoas, as pessoas para quem elas foram escritas. Obviamente, há pessoas que gostam de ler esse tipo de merda. E as pessoas podem dizer: ‘Ah, eu não acredito’ ou ‘isso não me importa’. Mas as cutucou, sabe?”.
Remexendo‑se no assento sem parar, Dylan estava acordando, irritado com os fantasmas que o assombraram, irritado com a fome do público. Ele parecia querer se explicar. Era incomum que ele explicasse qualquer coisa, porque, de qualquer forma, ninguém parecia entender. Ele tentou um novo começo. “Penso em tudo que eu faço como a minha escrita. Chamar de qualquer coisa que não escrita seria uma desvalorização. Mas não há uma pessoa no mundo que a leve mais a sério do que eu. Eu sei que isso não vai me ajudar nem um pouco a entrar no céu. Não vai me deixar de fora da fornalha ardente. Não vai estender a minha vida e não vai me deixar mais feliz.”
“O que você acha que o deixará feliz?”, eu perguntei. “Eu sou feliz, sabe, sou feliz por ser capaz de descobrir as coisas. Não preciso ser feliz. Felicidade é uma palavra barata. Há alguns tipos de felicidade que são muito, muito esnobes. Admitamos, eu não sou o tipo de cara que corta uma orelha se não conseguir fazer alguma coisa. Eu cometeria suicídio. Daria um tiro na cabeça se as coisas ficassem ruins. Saltaria de uma janela. Eu com certeza não cortaria a minha orelha, cara, eu daria um tiro na cabeça. Posso pensar na morte abertamente, sabe. Não é algo a se temer. Não é sagrado. A morte não é nada sagrada. Vi tanta gente morrer.” Perguntei: “A vida é sagrada?” “A vida também não é sagrada”, respondeu Dylan. “Olhe para todos os espíritos que na verdade controlam a atmosfera, que não vivem, mas ainda assim atraem a você, as ideias, ou tipo jogos no sistema solar. Ou olhe para a farsa formada por política, economia e guerra.”
Era outra variação de um velho tema de Dylan: a batalha entre o desespero interno e a esperança externa. “Ficou fácil para mim fazer tudo, você não faz ideia, cara, tudo sob o meu comando. Agora sou capaz de ganhar dinheiro fazendo absolutamente qualquer coisa. Mas não quero esse tipo de dinheiro. Não sou um milionário, em termos de tudo que tenho. Mas está bem perto. No ano que vem eu serei um milionário, mas isso não significa nada. Ser um milionário quer dizer que no próximo ano você pode perder tudo. Você precisa se dar conta de que eu nunca deixei de assumir qualquer responsabilidade. É difícil para qualquer pessoa que faça o que faça não ser forçada a deixar de assumir responsabilidade por certas coisas. Quero dizer, eu amo o que faço. E também ganho dinheiro com isso. Eu, eu canto coisas honestas, cara, consistentes. É tudo que eu faço. Eu não dou a mínima para o que qualquer pessoa diga. Ninguém que me elogie tem algum efeito sobre mim e ninguém que critique o que eu faço terá algum efeito sobre mim. Ninguém. Eu não leio nada a meu favor ou contra mim que possa vir a ter algum efeito sobre mim. Então, por isso, eu nunca leio de verdade o que as pessoas dizem a meu respeito. Eu simplesmente não tenho interesse.”
“Quando me dei conta de verdade de que tinha dinheiro que não podia ver, olhei em volta para ver o que alguns dos meus agentes estavam fazendo com ele. Antes de mais nada, eu adoro motoristas. Na última vez que voltei da Inglaterra, não comprei um chofer, mas certamente aluguei um. Isso não me incomoda. Eu preciso do dinheiro para empregar pessoas. As coisas andam de mãos dadas. Se eu não tivesse dinheiro, poderia ser invisível. Mas agora o dinheiro é necessário. Agora, ser invisível custa caro. Esse é o único motivo pelo qual eu preciso de dinheiro. Não preciso de dinheiro para comprar roupas ou coisa parecida.” Mais uma vez, a raiva aflorou. “Estou farto de fazer a pessoas repulsivas ganharem dinheiro à custa da minha alma. Quando perder os dentes amanhã, elas não vão comprar novos dentes para mim. Tem um monte de pessoas para quem posso dar dinheiro e o dinheiro que é meu de direito, esse eu quero. Não gosto de pessoas pequenas que fumam cigarros Tiparillo e têm os bolsos virados para fora o tempo todo e usam óculos e que um dia quiseram ser Grouxo Marx faturando todo o dinheiro às minhas custas. E elas são muitas. Todas do mundo da música.”
“Ah, se não é o produtor te enrolando é a bilheteria te enrolando. Tem sempre alguém causando problemas. Nem mesmo os números da gravadora são confiáveis. Eles nunca estão certos. Por um motivo ou outro, nunca estão certos. Ninguém é sincero com você porque ninguém quer que a informação seja divulgada. Você sabia que até determinado momento eu ganhava mais dinheiro com uma composição minha se ela estivesse em um disco de Carolyn Hester ou de quem quer que fosse e não se eu mesmo a gravasse? Esse é o contrato que eles me deram. Terrível. Terrível!”
Os lampejos de desespero amainaram. Dylan não perdia o senso de ridículo. “Eu não vou ser aceito, mas gostaria de ser aceito pela elite literária, que usa violetas nas virilhas e cuida para ter os nomes incluídos em todas as listas de estreias de filmes. Pelos que escrevem críticas musicais e críticas literárias e críticas de cinema e críticas de TV, e também sobre moda feminina e reuniões de pais e mestres, você sabe, tudo na mesma coluna. Eu gostaria de ser aceito pelas pessoas. Não há motivo para que não seja. Mas não acho que isso acontecerá um dia. E, apesar disso, os Beatles foram”. Ele queria o tipo de aceitação dos Beatles? “Não, não, não, eu não estou dizendo isso. Estou apenas dizendo que os Beatles conseguiram, certo? Em todas as formas musicais, seja Stravinsky ou Leopold Jake the Second, que toca no Five Spot, o Blak Muslim Twine ou o que quer que seja. Os Beatles são aceitos, e é preciso aceitá‑los pelo que eles fazem. Eles tocam canções como ‘Michelle’ e ‘Yesterday’. Há muita suavidade ali.” Quando disse que Joan Baez planejava gravar “Yesterday” no próximo álbum, Bob retorquiu: “É, é a coisa a se fazer, dizer aos adolescentes ‘eu curto os Beatles’ e cantar uma música como ‘Yesterday’ ou ‘Michelle’. Ah, por Deus, elas são um engodo, cara, essas canções. Se você for à Biblioteca do Congresso encontrará coisa muito melhor do que isso. Milhões de canções como ‘Michelle’ e ‘Yesterday’ foram lançadas pelas engrenagens da indústria fonográfica”.
Não há milhões de canções como as dele sendo compostas por ninguém, eu sugeri. “Não sei se concordo plenamente com isso, porque no final implica que ninguém mais é capaz de cantar as minhas canções a não ser eu. Tipo, vou precisar me retirar do negócio. Pelo amor de Deus, precisarei lançar 10 mil discos por ano, porque ninguém vai querer cantar as minhas composições”. Ele influenciava os jovens porque quebrava as regras? “Não é uma questão de quebrar as regras, você não entende? Eu não quebro regras, porque não vejo nenhuma para quebrar. Na minha opinião, não existem regras.”
Dylan parecia Lenny Bruce. Ele dedilhava um tema, com uma corda vocal, não um acorde de guitarra. As palavras fluíam como música. Ele entrava e saía da comunicação, como um músico de jazz entrando e saindo de uma linha melódica. Era “tudo música, nada mais nada menos”, música com as palavras, música com a irreverência, música verbal e simbólica. Ele estava completamente desperto agora, dedilhando uma melodia. De cores a poesia, Dylan improvisou: “O meu lance são as cores. Não preto e branco. Sempre foi as cores, seja nas roupas ou no que quer que seja. Cor. Agora, com algo assim o impulsionando, às vezes as coisas ficam bem vermelho sangue, entende? E às vezes muito pretas”.
“Você apenas precisa chegar lá. Quando digo ‘chegar lá’, não quero dizer um astro do folk rock. ‘Chegar lá’ quer dizer encontrar seu caminho. O caminho de todo mundo está aí, em algum lugar. As pessoas acreditam que devem seguir em frente vivendo o inferno na terra, mas eu não acredito nessa atitude. As únicas pessoas que acreditam que é preciso seguir em frente vivendo o inferno na terra, ou que a vida é uma tragédia, são as pessoas simplórias, de mente curta, que precisam encontrar desculpas para si mesmas. O caminho de todos está aí. Apesar de todos que nasceram e morreram, o mundo simplesmente seguiu em frente sem elas; quero dizer, veja Napoleão — mas nós seguimos em frente. Veja Harpo Marx — o mundo continuou a girar, não parou por um segundo. É triste, mas é verdade. John Kennedy. Certo?”
A diferença não estaria, eu perguntei, no que as pessoas fazem enquanto estão na Terra? “Você não percebe que elas não fizeram nada? Alguma pessoa fez algo, de verdade? Pense em qualquer pessoa que você acha que fez alguma coisa. Diga o nome de qualquer pessoa que você acredita ter feito alguma coisa.” “Shaw”, eu disse. “George Bernard Shaw”, Dylan repetiu lentamente, um nome de cada vez. “Quem ele ajudou?” “Ele ajudou muitas pessoas a usarem a cabeça”, eu respondi, e acrescentei: “Você ajudou muita gente a usar a cabeça e os ouvidos”. “Bem”, Dylan respondeu, “eu não acredito nisso, não acredito. É engraçado que as pessoas acreditem que eu tenha ajudado. Eu certamente não vou sair por aí dizendo que é isso o que faço. Durante algum tempo, li muita coisa que era escrita a meu respeito, talvez três, quatro atrás. Agora, não leio nada. Então não faço ideia do que as pessoas dizem a meu respeito. Não sei mesmo. Mas o que eu sei é que muita gente gosta de mim. Isso eu sei”.
A 12 mil metros de altitude, voando sobre as Grandes Pradarias, ele fazia malabarismo com os joelhos, como as bandejas de uma balança, a prova de Tarantula num joelho e os poemas do rapaz de Nebraska no outro. Um envelope subia e o outro descia, numa oscilação inconsciente de pesagem literária. Ele acreditava que Tarantula seria aceito pela elite literária do establishment, pelos poetas sérios? “Antes de mais nada”, ele disse, animado, “você precisa perceber que se for escrever para poetas e gente da literatura…”. Ele cortou a linha de pensamento. “Eu acredito que um poeta é qualquer pessoa que não se chamaria de poeta. Qualquer pessoa que pense em se considerar um poeta simplesmente não pode ser um poeta. Eles simplesmente se acomodaram na romantização dos seus ancestrais e no conhecimento histórico de fatos que nunca aconteceram. E gostam de pensar que estão um pouco acima disso tudo. Quando as pessoas começam a me chamar de poeta eu digo: ‘Ah, que bacana, que bacana ser chamado de poeta’. Mas vou dizer uma coisa, isso não me fez bem algum. Não me deixou nada mais feliz.”
“Ah, eu adoraria dizer que sou um poeta. Gostaria mesmo de pensar em mim mesmo como um poeta, mas não posso, por causa de todas essas pessoas odiosas que são chamadas de poetas.” Quem era poeta então? Allen Ginsberg? “Ele é um poeta”, Dylan disparou. “Ser poeta não implica necessariamente que se deva escrever palavras no papel. Entende o que eu estou dizendo? Um daqueles motoristas de caminhão que desce as escadas de um motel é poeta. Quer dizer, ele fala como um poeta, o que mais um poeta precisa fazer? Os poetas”, a voz dele ficou suspensa no ar em meio a formulações vagas, as ideias fluindo rápido demais para a língua. “Poetas, velhos, morte, decomposição, pessoas como Robert Frost poetizam com árvores e galhos, mas não é isso o que eu quero dizer. Allen Ginsberg é o único escritor que eu conheço. Eu não respeito tanto assim os outros escritores. Se eles realmente quiserem fazê‑lo, precisarão cantar. Eu não diria que sou um poeta pelos mesmos motivos que não diria que sou um ‘cantor de protesto’. Tudo que isso faria seria me inserir em uma categoria com um monte de pessoas que só me importunariam. Não quero estar na categoria delas. Não quero enganar ninguém. Dizer a qualquer um que eu sou um poeta seria enganar as pessoas. Isso me colocaria numa classe, cara, com pessoas como Carl Sandburg, T. S. Eliot, Stephen Spender e Rupert Brooke. Ei, dê nome aos bois — Edna St. Vincent Millay e Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe e Robert Lowell.”
“Conheço duas pessoas santas”, prosseguiu Dylan. “Conheço duas pessoas sagradas, e Allen Ginsberg é uma delas. A outra, por falta de um termo melhor, quero chamar simplesmente de ‘uma pessoa chamada Sara’. O que quero dizer com ‘sagrado’ é uma transposição de todos os limites do tempo e do valor. Ei, eu curto muita gente, eu amo muita gente, mas certamente não os considero poetas.” Dois outros escritores que ele admirava lhe ocorreram de súbito: “William Burroughs é um poeta. Eu gosto de todos os livros dele, e dos livros mais antigos de Jean Genet, mas estou falando de escritores deste país. As palestras de Genet são apenas perda de tempo, são maçantes. Mas se estamos falando em termos de escritores que eu acredito poderem ser chamados de poetas, então Allen é o melhor. O ‘Kaddish’ de Allen, não ‘Uivo’”.
“Allen não precisa cantar ‘Kaddish’, cara. Entende o que eu quero dizer? Ele pode simplesmente colocá‑lo no papel. Não consigo expor todos os meus sentimentos por ele porque são totais demais. Ele é a única pessoa que eu conheço que escreve, que apenas e totalmente escreve. Ele não precisa fazer nada, cara. Allen Ginsberg, ele é apenas sagrado, uma das duas pessoas que conheço que são sagradas.” E como Sara é sagrada? “Eu não quero incluí‑la neste livro. Quero mantê‑la fora disso, não quero chamá‑la de ‘garota’. Eu prefiro me referir a ela, se é que irei me referir a ela, não posso me referir a ela por qualquer outro nome — eu não quero parecer deslumbrado, sei que isso é muito brega, mas a única coisa na qual consigo pensar é, mais ou menos, ‘mulher madona’.”