A coluna Babel de 28/5

[Publicada no Sabático.]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

Giorgio Vasari, 500 anos depois

Duas trabalhosas traduções e dois eventos com nomes internacionais suprirão histórica lacuna da obra do italiano Giorgio Vasari (1511-1574) no Brasil. O pai da historiografia de arte nunca teve suas biografias de artistas na íntegra por aqui. Em setembro, a Editora Unicamp publica Vida de Michelangelo Buonarroti (1568), vertida por Luiz Marques, num trabalho de mais de 20 anos – das 800 páginas, mais de 600 são de comentários. Marques organiza para 23/9, na Unicamp, e o período de 26 a 28/9, na Biblioteca Nacional, no Rio, evento sobre Vasari, com a presença de Massimo Firpo, da Universidade de Turim; Silvia Ginzburg, da Universidade de Roma; e outros. Ainda em setembro sai, pela WMF Martins Fontes, o volume que engloba a biografia de Michelangelo, Vidas dos Mais Excelentes Arquitetos, Pintores e Escultores Italianos (conhecido como As Vidas dos Artistas). Também comentado, teve a primeira edição, de 1550, vertida por Ivone Benedetti.

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O Juízo Final, de Michelangelo, objeto de biografia de 1568 que sai pela Editora Unicamp

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PREMIAÇÃO
Sem chance

Nenhum autor da Rocco ficou entre os 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom, anunciados esta semana. Não poderia ser diferente: a editora se esqueceu de fazer as inscrições. Restou à casa pedir desculpas a todos os autores que publicou em 2010, nomes como Adriana Lisboa (Azul-Corvo), André de Leones (Como Desaparecer Completamente), Patrícia Melo (Ladrão de Cadáveres) e Silviano Santiago (Anônimos).

MEMÓRIAS
Reflexões de Joan Didion

Previsto para novembro nos EUA, o novo livro da escritora e jornalista americana Joan Didion, Blue Nights, sai em 2012 por aqui pela Nova Fronteira. A obra dá continuidade à narrativa autobiográfica de O Ano do Pensamento Mágico, que deu à autora o National Book Award ao relatar os dias que se seguiram à morte do marido e durante os quais a filha, Quintana, estava hospitalizada em estado grave. Quintana morreu pouco depois do lançamento do livro, em 2005, e Blue Nights promove uma reflexão de Didion sobre seu papel como mãe.

BEST-SELLER
Os cadeados vêm aí

Nas grades da Pont des Arts, em Paris, e de outras pontes europeias, cadeados deixados por apaixonados integram a paisagem faz alguns anos – são uma espécie de amarra simbólica para casais. Agora, há um risco de cenário parecido surgir sobre o Tietê: o romance que popularizou essa moda na Europa, Sou Louco Por Você, do italiano Federico Moccia, sai no mês que vem pela Planeta.

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A mania até teve seus primeiros sinais antes do livro de Moccia, de 2006, mas apenas na ponte Mílvia, em Roma, onde os protagonistas do romance deixaram sua tranca romântica, a euforia fez com que um poste tombasse de tanto cadeado pendurado.

HISTÓRIA-1
Últimas palavras

A Revista de História publica em junho entrevista concedida por Vitorino Magalhães Godinho pouco antes de morrer, em abril. Aos 92, o célebre historiador português falou a Alberto da Costa e Silva e Tiago dos Reis Miranda, entre outras coisas, sobre a Europa atual: “A estupidez mais absurda é a dos dirigentes da União Europeia, e que leva a que se aplique a países com tradições tão diferentes na economia, nos costumes, na língua, em tudo, as mesmas receitas econômicas, aprendidas num manual americano.”

HISTÓRIA-2
Filão rentável

A Novo Século estreia em outubro o selo Caravelas, voltado somente a romances históricos, filão que garante sucessos de vendas a editoras como a Record. Cinco títulos já foram adquiridos, incluindo The Bronze Horseman, de Paullina Simons (que será adaptado para o cinema por Andy Tenant, diretor de Hitch), e To Defy a King, de Eluzabeth Chadwick, vencedor do prêmio RNA de melhor romance histórico de 2011.

QUADRINHOS
Menina inédita

Terá duas histórias inéditas a edição 12 Canções – Mix Tape da Menina Infinito (imagem), de Fabio Lyra, programada pela Leya/BarbaNegra para agosto. Completam o volume tramas lançadas entre 2003 e 2006 pela extinta Mosh e por outras publicações.

ROMANCE
Na estrada, na web

A gaúcha Carol Bensimon percorre seu Estado natal. Os últimos dias ela passou em São Marcos, cidade de 20 mil habitantes, na casa de uma leitora que conheceu pela internet. O motivo é o livro que escreve, uma espécie de Thelma & Louise latino, ou, como prefere, “um road novel no Sul”.

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Será o segundo romance de Carol, sem data prevista. Do primeiro, Sinuca Embaixo d”Água, ela lê trechos na edição do Leituras Sabáticas que entra no ar hoje em estadão.com.br/e/s2.

Duas trabalhosas traduções e dois eventos com nomes internacionais suprirão histórica lacuna da obra do italiano Giorgio Vasari (1511-1574) no Brasil. O pai da historiografia de arte nunca teve suas biografias de artistas na íntegra por aqui. Em setembro, a Editora Unicamp publica Vida de Michelangelo Buonarroti (1568), vertida por Luiz Marques, num trabalho de mais de 20 anos – das 800 páginas, mais de 600 são de comentários. Marques organiza para 23/9, na Unicamp, e o período de 26 a 28/9, na Biblioteca Nacional, no Rio, evento sobre Vasari, com a presença de Massimo Firpo, da Universidade de Turim; Silvia Ginzburg, da Universidade de Roma; e outros. Ainda em setembro sai, pela WMF Martins Fontes, o volume que engloba a biografia de Michelangelo, Vidas dos Mais Excelentes Arquitetos, Pintores e Escultores Italianos (conhecido como As Vidas dos Artistas). Também comentado, teve a primeira edição, de 1550, vertida por Ivone Benedetti.

Sérgio Sant'Anna: "Se você ficar tímido, não sai livro nenhum"

[Publicado no Sabático de 28/5]


Prestes a completar 70 anos, Sérgio Sant’Anna, um dos ficcionistas mais inventivos em atividade no País, lança romance centrado no sexo e diz que um escritor precisa ter coragem

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Foto Fabio Motta/AE

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Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Foi o filho quem deu o aval. “Nihil obstat”, decretou o também escritor André Sant”Anna por e-mail ao pai, Sérgio Sant”Anna, após ler os originais de O Livro de Praga – Narrativas de Amor e Arte. O termo em latim para “nada impede”, empregado pela Igreja Católica para aprovar pelo aspecto moral obras em via de publicação, acalmou o veterano. Ele andava inquieto, ciente que estava da abordagem, por assim dizer, pouco canônica de seu novo trabalho. “É um livro sui generis… Não é muito dentro dos padrões. talvez pelo excesso de sexualidade”, ponderou Sérgio Sant”Anna na última terça, ao receber o Sabático em seu apartamento em Laranjeiras, no Rio. “Ou talvez porque se esperava de mim um romance, e eu fiz na forma de narrativas interligadas. A intranquilidade bateu.”

Entre os mais inventivos ficcionistas em atividade no País, Sérgio foi um dos primeiros nomes em que o produtor Rodrigo Teixeira pensou ao elaborar o projeto Amores Expressos, que financiou a viagem de 20 autores brasileiros a várias partes do mundo em 2007, para que a partir disso escrevessem histórias de amor. É também o mais experiente da turma – completa, em outubro, 70 anos -, mas sua criação a partir da estada de um mês na capital da República Checa respira um certo ar de molecagem: o personagem central, Antônio Fernandes, é um escritor enviado a Praga por um produtor chamado Roberto Martins, dentro de um projeto que mandou autores a várias partes do mundo. “Admiro Bernardo Carvalho, que conseguiu elaborar um protagonista russo (para o romance “O Filho da Mãe”, também integrante do “Amores Expressos”). Não me senti em condição de criar um checo”, diz o autor, que fala hoje sobre o livro no Festival da Mantiqueira, em São Francisco Xavier (SP).

O que se seguiu foi uma mistura de busca por verossimilhança e interesse em correr riscos. Como seu personagem era um escritor brasileiro vivendo por apenas um mês no exterior, uma experiência relatada em episódios levemente interligados, o autor avaliou que uma história de amor romântico soaria descabida. Já uma trama de experiências sexuais, imaginou, faria sentido. Ainda que se tratasse de experiências um tanto fora do padrão, como um êxtase transcendental com a estátua de uma santa na rua (a santa, chamada Francisca, ele inventou, para ninguém em Praga ficar ofendido) ou a dança de uma mulher nua com suspeitos textos pornográficos atribuídos a Kafka (também devidamente imaginados pelo autor) espalhados em tatuagens fluorescentes pelo corpo.

O erotismo não é novidade na prosa de Sérgio Sant”Anna, mas ele mesmo se surpreendeu, conforme diz, com a forma “bastante espontânea” como o sexo se tornou central em O Livro de Praga – a ponto de imaginar que seria mais honesto se o subtítulo fosse Narrativas de Sexo e Arte, em vez de Narrativas de Amor e Arte. “De certa forma, eu chutei o balde, mesmo. Quando vi que o livro tinha uma sexualidade muito grande, pensei: “Vou em frente, não quero nem saber””, diz. Trata-se da mesma atitude que orienta sua literatura desde a juventude – mais precisamente, desde as temporadas que passou, de 1968 a 1971, na França e nos Estados Unidos, e que, na opinião dele, foram as responsáveis por revolucionar sua escrita: “Tem que ter coragem. Uma das coisas que acho que tem que existir no escritor é coragem. Se der errado, deu, mas, se ficar tímido demais, não sai livro nenhum.”

Cinema. O autor tem consciência de que a disposição para a coragem exige preparo para reações das mais diversas. Em geral muito bem recebido pela crítica especializada, diz ter se assustado, desta vez, com “um silêncio” por parte da editora. Dentro da Companhia das Letras, extraoficialmente, as opiniões se dividem – há quem seja fã e ache que o livro dará o que falar, há quem não tenha grande expectativa. “O livro é polêmico, e isso é ótimo. Existe uma curiosidade muito grande em relação a ele”, diz Rodrigo Teixeira. O produtor tem os direitos para o cinema de todos os livros do Amores Expressos e admite que o de Sérgio Sant”Anna parece dos mais difíceis de filmar. “É uma história que, se alguém conseguir adaptar e fizer bem feito, renderá algo sensacional. Se alguém quiser me procurar com sugestões, estou disponível.”

Enquanto essa pessoa não aparece, Teixeira trabalha na pré-produção de um longa baseado na novela O Gorila, de Sant”Anna. As filmagens começam em outubro, com José Eduardo Belmonte na direção e Otávio Muller, Mariana Ximenes e Maria Manoella no elenco. Ronaldo D”Oxum e André Sirangelo são os responsáveis por roteirizar a história do homem que desenvolve estranha relação com as mulheres para quem passa trotes, em diálogos que ficam em algum lugar entre a indecência e a autoajuda.

Sérgio Sant’Anna tem tantas narrativas com direitos comprados para o cinema que nem sabe enumerar direito. “No Brasil, todo mundo assina contrato, mas os filmes só saem se rola incentivo pela lei”, diz. Ele costuma acompanhar apenas de longe as adaptações, para nem correr o risco de querer dar ideias. Gostou de Um Crime Delicado (2005), de Beto Brant, e Um Romance de Geração (2008), de David França Mendes. Não esconde que achou Bossa Nova (2000), filme de Bruno Barreto feito a partir do conto A Senhorita Simpson, um bocado esquisito. “A questão é só que não tem nada a ver comigo. O Bruno usou os nomes dos personagens, mas fez um filme de Bruno Barreto. Não sei o que vai na cabeça dele, de comprar os direitos de uma história e fazer outra.”

Prêmios. No teatro, o escritor ficou encantado com a recente adaptação de Felipe Rocha para Um Conto Nefando?, em cartaz no Teatro Sérgio Porto, no Rio. Assim como O Gorila, esse conto faz parte de O Voo da Madrugada (2003), o livro anterior de Sant”Anna, que arrebatou elogios da crítica e lhe rendeu um segundo lugar no Prêmio Portugal Telecom e o quarto Jabuti, “esse prêmio que todo mundo já ganhou”, para sua coleção. O intervalo de oito anos entre um lançamento e outro, sobre o qual parece nem ter se dado conta (“É de 2003? Faz tanto tempo assim?”), resultou em parte do convite para o Amores Expressos. Ao focar na viagem para Praga, deixou para trás um volume quase pronto de contos, que agora já lhe parecem defasados.

O fato é que Sérgio Sant”Anna já não se cobra escrever com tanta regularidade. Diz andar sempre com um caderninho, anotando ideias que lhe ocorrem para depois passar para o computador, mas sem a ânsia para publicar que viveu em outros tempos. Ele nunca foi um best-seller como o irmão, Ivan Sant”Anna, nem tem interesse nisso. “O Ivan é muito bom no que se propõe a fazer, que é bem distante do que eu faço”, resume. O livro mais vendido de Sérgio, O Monstro, de 1994, está na casa dos 15 mil exemplares, acompanhado de perto por A Senhorita Simpson, de 1989 (os de Ivan chegam às centenas de milhares), mas o conjunto da obra lhe garante segurança – e nessa conta entram prêmios polpudos, como o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, que lhe agraciou com R$ 120 mil em 2008.

O carioca só não aceita bem a ideia de estar beirando os 70 anos. “Acho inacreditável. Acho um absurdo”, diz, num tom entre o indignado e o divertido, e o humor parece lhe roubar uns bons anos da aparência. “Ninguém acha que vai chegar a uma idade dessas. Você sabe disso. Quando a gente tem 15 anos, não acha que vai chegar aos 30, acha que 30 é velho pra burro. Isso me chateia.” Há anos morando no mesmo apartamento na zona sul do Rio, lamenta também a distância dos filhos – André mora em São Paulo, e Paula, em Ubatuba – e, em especial, da filha de Paula, Maria, de 6 anos, que aparece em tantas fotos quanto pode em porta-retratos pela sala.

A literatura feita hoje no Brasil, inclusive por muitos admiradores dele, Sérgio acompanha de perto. E acha que não passam de fofocas os debates literários acerca da qualidade da produção das gerações posteriores à sua: “É como sempre foi. Uns escrevem bem, outros nem tanto.” Entre as suas prioridades de leitura está Pornopopeia, de Reinaldo Moraes. Já teria lido o romance, não fosse uma recente arrumação em casa. “Minha namorada resolveu organizar meus livros e agora não encontro de jeito nenhum. Acho que vou ter de comprar outro…”, conforma-se.

Estojo vintage

Infelizmente, só tem para maclovers, e ainda estou imune a esse vírus. Dá pra comprar aqui, se você estiver disposto a desembolsar US$ 80. Vi no Design You Trust.

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As Divinas Comédias de Dante

[Capa do Caderno 2 de 24/5]

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Sandro Botticelli esboçou em pergaminho o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Séculos depois, foi a vez de William Blake e Gustave Doré. Nas leituras de Robert Schumann e Gioacchino Rossini, os cenário dantescos viraram música, e a tecnologia tratou de transformar tudo em videogame – isso só para ficar em alguns exemplos.

Sete séculos depois de sua criação, A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), segue “um monumento à inspiração”, como afirma ao Estado o designer americano Seymour Chwast. A mais recente prova disso são as duas graphic novels que chegam agora às livrarias brasileiras, tão diferentes entre si como podem ser as mais radicais variações do mesmo tema.

A Divina Comédia de Dante é assinada pelo próprio Chwast, celebrado designer de produtos e peças publicitárias, que estreia no formato HQ com a edição que acaba de sair pelo selo Quadrinhos na Cia. Já A Divina Comédia em Quadrinhos é brasileira, feita a partir de traduções de Jorge Wanderley (1938-1999), Henriqueta Lisboa (1901-1935) e Haroldo de Campos (1929-2003), num roteiro elaborado pelo quadrinista italiano radicado no Brasil Piero Bagnariol e por seu pai, Giuseppe, e que chega às livrarias nos próximos dias pela Peirópolis.

Como não se sabe a data exata em que Dante escreveu o livro – as três partes foram criadas entre 1304 e 1321 -, não há, portanto, uma efeméride que explique as duas investidas simultâneas. “Foi coincidência. Soube da versão americana quando a minha já estava bem avançada”, diz Piero.

Participante ativo da política de sua Florença natal, onde ocupou cargos públicos, Dante escreveu sua obra-prima enquanto vagava pela Itália, em exílio, após ser acusado de corrupção. Nos 14.233 versos dos 100 cantos de sua A Divina Comédia, o turbulento cenário que testemunhava aparece com frequência, na forma de críticas ao envolvimento do papa na política e aos escândalos que se seguiram. A obra é uma leitura do tempo em que vivia, e as duas adaptações em HQ buscaram ressaltar esse aspecto.

A Divina Comédia de Seymour Chwast tem um quê do Poema em Quadrinhos de Dino Buzzati (artista italiano que Chwast diz desconhecer), uma saga de eras passadas reconstruída com olhar pop. No traço do americano, todo em preto e branco, Dante aparece como um detetive de histórias noir dos anos 30, de chapéu, capa e cachimbo, sendo conduzido profundezas adentro por um Virgílio de chapéu coco, gravata-borboleta e bengala.

A entrada para o Inferno é sinalizada com um letreiro cintilante, que lembra um bordel ou cassino, e dali por diante Dante e Virgílio seguem por escadas e corredores, como num prédio antigo. Da mesma forma, as disputas florentinas por poder sugerem duelos da máfia. “É o estilo que combina com o espírito da minha arte. E desenhar togas não me interessava”, diz o designer, sobre a releitura.

Referências dos séculos 20 e 21 são menos claras na versão cheia de cores imaginada por Bagnariol, mas aparecem. Como na obra de Dante, que permite vários níveis de leitura, o quadrinista incluiu “símbolos e gestos não visíveis a um olhar superficial”. Na passagem do Inferno com o rio onde estão condenados a ficar tiranos, Hitler e Stalin podem ser vistos mergulhados na água, em segundo plano.

Piero e seu pai também precisaram criar um enredo paralelo, colocando a história de Dante como pano de fundo. Foi uma alternativa encontrada para suprir “buracos” nas traduções escolhidas – Henriqueta Lisboa realizou a tradução de metade dos 33 cantos do Purgatório, enquanto Haroldo de Campos o fez em apenas seis dos 33 cantos do Paraíso.

Essa opção garantiu certa graça à narrativa, uma adaptação bem mais densa e fiel ao original que a de Chwast. A certa altura, por exemplo, um dos interlocutores de Dante suspira, com a cabeça apoiada sobre as mãos, ao ouvir sobre mais um desfalecimento do autor durante o percurso: “Será que ele vai continuar a desmaiar assim o tempo todo?”.

Com inspirações declaradas em histórias como Little Nemo, de Windsor McCay, e Krazy Kat, de George Herriman, Seymour Chwast não se incomoda com críticas quanto ao esvaziamento do conteúdo da obra, que em seu traço foi resumido dos três livros originais a apenas 127 páginas: “Por sorte, uma imagem vale por mil palavras”, conclui.

SEYMOUR CHWAST
Designer norte-americano

“O livro é um monumento à inspiração”

Por que adaptar um livro que já inspirou tantos artistas?
Esse livro é o monumento de um grande poeta à inspiração. Quando comecei minha adaptação, só conhecia as versões de Gustave Doré e William Blake

É sua HQ de estreia, e você evitou o formato clássico de sequência de quadros…
Quadros uniformes são estáticos e entediantes. Copiei o estilo dos melhores quadrinistas, tornando as páginas dinâmicas e animadas. Desenhei cada cena como se fosse o todo.

Por que imaginou Dante como um personagem de história noir?
É o estilo que combina com o espírito da minha arte. E desenhar togas não me interessava…

Qual foi a parte mais difícil e a mais interessante de ilustrar?
O Purgatório foi difícil pela variedade de situações com a ação à beira da montanha. A mais interessante foi o Inferno, naturalmente, porque as punições e os personagens são gráficos e prazerosos.

Não é mais difícil impactar com um Inferno em preto e branco?
Doré fez a versão dele em preto e branco, e ela é boa o suficiente para mim. Cores tornariam os desenhos menos gráficos e mais decorativos.

PIERO BAGNARIOL
Quadrinista italiano radicado no Brasil

“É quase a pedra fundamental do idioma”

Por que resolveu adaptar a Divina Comédia?
A editora me convidou a adaptar um clássico da literatura italiana, e a escolha foi meio natural. A Comédia é quase a pedra fundamental do idioma.

O quanto você já conhecia do livro e como foram as pesquisas?
Tinha lido na escola, mas meu pai, Giuseppe, conhece bem a obra e me ajudou no roteiro. Tivemos ainda consultoria da Maria Teresa Arrigoni, especialista na obra dantesca.

Como foi adaptar a partir de trechos já traduzidos?
Jorge Wanderley tinha traduzido todo o inferno, mas Henriqueta Lisboa e Haroldo de Campos tinham vertido só partes do Purgatório e do Paraíso, respectivamente. Partimos do original em italiano, e os trechos que não tínhamos, adaptamos num enredo que retrata um pouco a vida de Dante e serve de pano de fundo.

Que parte foi mais difícil e mais interessante adaptar?
O Purgatório tem a cena de uma procissão. uma alegoria da história da igreja, que foi bem difícil traduzir graficamente. O mais interessante foi a mudança de estilo de um reino para o outro: grotesco no Inferno, elegíaco no Purgatório e sublime no Paraíso

A coluna Babel de 21/5

A nota de abertura eu precisei antecipar em post ontem, depois que o Sabático já tinha ido para a gráfica, porque… bem, deixa pra lá. Mas o resto taí, tal qual na edição impressa.

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BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

NEGÓCIOS
Crescimento acelerado

À margem do eixo Rio-São Paulo, a Novo Conceito, de Ribeirão Preto, conquista com rapidez espaço entre as grandes do País. Em 2010, vendeu 1,9 milhão de livros, um crescimento de 800% na comparação com 2009. Nos primeiros quatro meses deste ano, a editora já cresceu 1.192,38% em relação ao mesmo período de 2010.

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Criada em 2004 como selo de técnicos e médicos, a editora de Fernando e Mila Baracchini investiu em “literatura de fácil leitura” em 2008, com Noites de Tormenta, de Nicholas Sparks. Tem hoje seis livros (quatro de Sparks) entre os mais vendidos do Publishnews, junto à Leya e atrás só da Sextante, Record, Santillana, Ediouro e Intrínseca. Se gosta dos livros que lança? “Gosto, acredita?”, diz Fernando, e aposta que a coluna apreciará o próximo: A Janela de Overton, de Glenn Beck, “na linha do Código Da Vinci”.

CONGRESSO
Gabo por aqui?

Após garantir nomes do calibre de Werner Herzog e Enrique Vila-Matas no 3.º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural Cult/Sesc, que terminou ontem em São Paulo, a editora Daysi Bregantini promete trazer, em 2012, convidado para organizador de evento nenhum pôr defeito: Gabriel García Márquez. Ela fez acordo com a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, fundada pelo escritor, e diz que Gabo vem.

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A ideia surgiu em conversa com Hector Feliciano, professor da FNPI, que participou do congresso e edita a obra jornalística de Gabo. A parceria deve render um intercâmbio de oficinas de jornalismo entre Brasil e Colômbia. Outro convidado deste ano, Julián Gorodischer, jornalista do Clarín, também quer levar o congresso à Argentina.

HOMENAGEM
A escolha de Augusto

Um tributo planejado pela Flip teve de ficar de fora da programação: convidado a uma mesa literária, Augusto de Campos recusou. “Não sou amigo de festas literárias e homenagens”, disse à coluna. “Compreendo que, no ano dos meus 80 anos, queiram alguns manifestar apreço pelo meu trabalho. Sou grato aos que tomaram essa iniciativa. Procuro, no entanto, reduzir ao mínimo a minha participação nesse tipo de eventos.”

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O poeta está, diz, “assoberbado de solicitações” – mas segue confirmado para a Balada Literária, de 17 a 20 de novembro. “Marcelino (Freire, organizador do evento) anunciou o seu desejo de homenagear o meu trabalho desde o ano passado. É no fim do ano. Espero estar mais desocupado.” Que esteja: Marcelino já planeja, entre outras coisas, um “grande show” e um “corredor” com versos do poeta da Vila Madalena à Avenida Paulista.

ESPETÁCULO
Autores no palco

Aliás, Marcelino Freire, que em 2010 boicotou a Flip por achar a programação muito pouco literária, voltará a Paraty, desta vez como curador de parte da programação do Itaú Cultural. Ele é o organizador do AuTORES EM CENA, no qual escritores representarão seus próprios personagens. Lourenço Mutarelli será um dos participantes.

CINEMA
Milagres com Milagrário

Paulo Caldas, diretor de Baile Perfumado, está disposto a um desafio que surpreende José Eduardo Agualusa – quer filmar o mais recente romance do angolano, Milagrário Pessoal. Dois livros de Agualusa já passam por adaptações – Nação Crioula, por Andrucha Waddington, e O Vendedor de Passados, por Lula Buarque de Hollanda –, mas a questão é que Milagrário trata basicamente… de palavras. “Me parece algo dificílimo, mas ele teve ideias muito boas”, diz o escritor.

NOVO SELO
Onda infantil


A Alfaguara, braço literário da Objetiva, prepara o lançamento do selo Alfaguara Infantil, que terá obras de Roberto Torero e Ronaldo Correia de Brito, entre outros. A entrada no segmento infantojuvenil se dará no próximo semestre, com Jabuti Sabido e Macaco Metido e A Maravilhosa Ponte de Meu Irmão (imagem, por Raul Gastão), de Ana Maria Machado.

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A criação do selo infantil segue uma tendência entre casas brasileiras, com vista às polpudas compras de livros pelo governo. Desde dezembro, Iluminuras, Paz e Terra, Cia dos Livros e Babel anunciaram os seus.

Massi sai da presidência da Cosac; Charles reassume

O professor de literatura da USP e poeta Augusto Massi, que desde 2001 comandava a Cosac Naify, deixou a presidência da editora esta semana. Em seu lugar, reassume o cargo Charles Cosac, fundador da casa, que a dirigiu até convidar Massi a integrar sua equipe. Charles sempre atribuiu ao editor a virada da Cosac. Até 2003, ela vivia no vermelho, problema superado após reformulações de Massi – que, com isso, ajudou a colocá-la entre as principais editoras do País. No mês passado, Massi anunciou a amigos que entraria em período sabático para cuidar de projetos pessoais. Ele deve seguir colaborando com a Cosac, que completa 15 anos em 2012.

Como funcionam os livros

Do DeMotivation, via Boing Boing.

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Update, alguns minutos depois…

Do Eduardo Nasi, no Twitter, após ver este post: “Ou ao contrário, né? (i.e. Imagina a Grace Kelly lendo Trainspotting)”. Tá certíssimo.

Instituto de neologismos

Li esses dias o Milagrário Pessoal, o romance mais recente do angolano José Eduardo Agualusa, lançado faz uns meses. É uma viagem, em vários sentidos, pela história do português (o idioma, bem entendido). O estopim são as agruras de uma linguista que, responsável por dicionarizar neologismos, descobre que alguém está criando numa rapidez incrível centenas de palavras – todas elas de repente imprescindíveis, um caos para a languidez com que a língua costuma evoluir.

Daí esbarrei nesse cartum do gênio Tom Gauld, que costuma publicar seus trabalhos aos sábados no The Guardian Review, e achei que tinha tudo a ver.

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Lima Barreto fora do cânone

O Sabático deste fim de semana incluiu um especial pelos 130 anos de nascimento de Lima Barreto (completados na sexta, dia 13), e a mim coube um estudo de 1998 do inglês Robert Oakley, enfim publicado no Brasil, pela editora Unesp, após ampla revisão. Vez por outra a gente ouve falar de estudos sobre Machado ou Clarice por pesquisadores de outros países, daí fiquei curiosa em saber o quanto se conhece de Lima Barreto na Inglaterra. A resposta, abaixo, no meu texto publicado na edição de ontem.

(A imagem eu peguei do Blog dos Quadrinhos; é da adaptação de Clara dos Anjos que o Marcelo Lelis está preparando para o selo Quadrinhos na Cia)

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Estudo inglês chega ao Brasil
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RAQUEL COZER

“Os estudos barretianos no Reino Unido sou eu”, sintetiza o britânico Robert Oakley, professor aposentado de português e espanhol da Universidade de Birmingham. Tradutor de Fernão Lopes para o inglês e estudioso de longa data da produção brasileira no século 20, ele teve um de seus mais destacados trabalhos, The Case of Lima Barreto and Realism in the Brazilian Belle Époque, lançado em 1998 pela nova-iorquina Edwin Mellen Press – e, de lá para cá, seu objeto de estudo não despertou muito mais interesse entre leitores de língua inglesa.

“Os textos de Lima Barreto são virtualmente desconhecidos por aqui, apesar de uma tradução muito boa de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicada uns 25 anos atrás. A literatura brasileira é ensinada em universidades britânicas, mas Barreto não figura entre o limitado cânone de ‘grandes obras’ dessa produção estudada no Reino Unido”, diz Oakley ao Sabático por e-mail, de Londres. Ele próprio só tomou conhecimento da qualidade literária do autor ao terminar de ler Machado de Assis e se questionar sobre o que teria acontecido na literatura brasileira pós-Machado – questão que pôde começar a responder após adquirir, num sebo carioca, os 17 volumes das Obras Completas de Lima Barreto.

Treze anos depois da edição em inglês, The Case of Lima Barreto… ganha tradução pela Unesp, “bem revisada e atualizada”, como ressalta o pesquisador, sob o título Lima Barreto e o Destino da Literatura. O nome da edição brasileira refere-se a um dos últimos trabalhos de Lima Barreto publicados em vida, em fins de 1921, no periódico carioca Revista Souza Cruz. Intitulado O Destino da Literatura, o texto foi elaborado como teor de uma palestra que ele ministraria em meados daquele ano em São José do Rio Preto – o futuro do pretérito cabe aqui porque, no dia da conferência, o tímido escritor, que nunca havia falado a um grande público antes, desapareceu e foi localizado bem mais tarde num botequim, completamente embriagado.

Esse texto, que Lima Barreto produziu com base especialmente em ideias de Tolstoi (no ensaio O Que É a Arte) e Jean-Marie Guyau, serve como linha condutora do estudo de Oakley. A partir dele, o britânico analisa o percurso do processo criativo do ficcionista, tomando como referência também suas pouco investigadas leituras – entre as quais se destacam ainda Thomas Carlyle, Johann Gottlieb Fichte e Anatole France.

Essa costura entre influências e produção ficcional permite compreender a concepção de literatura do autor de Clara dos Anjos, para quem a beleza estética depende da “substância” da obra – em outras palavras, para Barreto a importância da literatura reside não na forma, mas no conteúdo. O destino da literatura, segundo seus preceitos, seria uma missão quase divina, de penetrar o sentido da vida e promover a solidariedade humana.

É fato destacado entre os críticos da obra barretiana que o autor nem sempre foi capaz de seguir à risca suas intenções literárias. Entre as teses que Oakley defende está a de que, apesar do compromisso inicial de Recordações do Escrivão Isaías Caminha com a criação do “negrismo” na literatura brasileira, essa cruzada foi relegada a segundo plano por muito tempo, enquanto questões como a fragmentação e a alienação do País chamavam mais a atenção do escritor. Do mesmo modo, apesar de uma “teimosa coerência”, como define Oakley, na atitude de Lima ao longo dos anos, a análise de sua produção – em especial das três versões de Clara dos Anjos, de 1904, 1919 e 1921-22 – permite entender como seu engajamento literário sofreu transformações no decorrer da vida.

A coluna Babel de 14/5

[Publicada no Sabático]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

EVENTO
Filba, a Flip portenha, celebra o Brasil com seis nomes

Os escritores Adriana Lisboa, João Gilberto Noll, Joca Reiners Terron, Santiago Nazarian e Vilma Areas, além do músico Moreno Veloso, estão confirmados para o 3.º Festival Internacional de Literatura em Buenos Aires (Filba), que homenageará o Brasil, de 10 a 18 de setembro. Após celebrar o chileno Roberto Bolaño, em 2008, e a literatura uruguaia, em 2010, o Filba volta-se à produção brasileira, com dezenas de palestras e leituras gratuitas previstas. “A intenção é dialogar sobre relações, influências e vozes das literaturas argentina e brasileira. Notamos esse laço se fortalecendo e queremos fazer parte”, diz Pablo Braun, diretor da Fundación Filba e do festival, que em anos anteriores teve Arnaldo Antunes e Milton Hatoum entre os convidados. A nova edição contará com 25 estrangeiros, incluindo o sul-africano J. M. Coetzee e o holandês Cees Nooteboom, e cerca de 50 argentinos, com a meta de atrair 15 mil pessoas.

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INFANTIL-1
Resgate de Catullo


O Lenhador, poema do primeiro livro de Catullo da Paixão Cearense (1866-1946), indisponível desde os anos 50, sai pela Peirópolis em junho, ilustrado por Manu Maltez (imagem). Trata-se do único poema de Catullo para crianças, escrito em linguagem sertaneja. A organização ficou a cargo de Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, e a apresentação é de Manoel de Barros.

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Autor de Luar do Sertão e um dos músicos mais famosos do Brasil à sua época, Catullo tinha mais de 50 anos quando passou a publicar poesia. Sua obra inteira está fora de catálogo há mais de três décadas por “desinteresse” das editoras, diz Chico dos Bonecos. “Mário de Andrade o chamava de “o maior criador de imagens da poesia brasileira”, mas a maioria nem sabe que ele existiu.”

INFANTIL-2
Autoajuda para crianças

A Thomas Nelson americana prepara para novembro versão infantil de O Céu É de Verdade, de Todd Burpo e Lynn Vicent. A obra adulta lidera há 17 semanas a lista de não ficção do New York Times, com 2 milhões de cópias vendidas, e trata de um garoto que diz ter subido ao céu e visto familiares mortos durante uma cirurgia. O original adulto já saiu pela Thomas Nelson brasileira, que também lançará a edição infantil.

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O burburinho em torno do livro deve só aumentar. Esta semana, a Sony anunciou a compra dos direitos para cinema. Um dos produtores, Joe Roth, que também produziu Alice no País das Maravilhas, disse que a história o fez lembrar de O Sexto Sentido.

TEATRO
Pirandello inédito

Três peças de Luigi Pirandello (1867-1936) inéditas em livro no Brasil saem a partir do mês que vem pelo selo Tordesilhas. Assim É (Se lhe Parece), com tradução de Sérgio N. Melo, é a primeira, seguida de Esta Noite se Improvisa e O Homem com Uma Flor na Boca.

PALESTRA
Método para americano ver

A estreia em romance de Marcelo Ferroni, editor da Alfaguara, rende bons frutos. O autor embarca dia 24 para palestra na Universidade da Califórnia (Ucla) sobre Método Prático da Guerrilha (Companhia das Letras). O livro ainda está em avaliação por editoras americanas, mas já foi comprado pela Alfaguara espanhola, pela portuguesa Dom Quixote e pela italiana Mondadori.

CINEMA
Meditações de Lynch

Cineastas brasileiros estão sendo convidados pela Gryphus a enviarem perguntas para David Lynch, para entrevista a ser incluída em nova edição de Em Águas Profundas, prevista para setembro. O livro de 2008, sobre cinema, meditação e criatividade, vendeu mais de 15 mil cópias por aqui e terá agora texto inédito sobre tecnologia digital.

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Diretores que quiserem se inspirar em produções recentes de Lynch antes de elaborar as questões podem espiar o vídeo que ele pôs na web dias atrás para divulgar sua marca de café, David Lynch Signature Cup, no qual bate papo com a cabeça de uma Barbie.  Está disponível em bit.ly/dalynch (e abaixo)

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FANTÁSTICO-1
Bruxas na Bienal

Professora de história, detentora de prêmios como Fullbright e Guggenheim e autora de estudo sobre a Londres elizabetana e a revolução científica, Deborah Harkness foi encontrar o sucesso na literatura fantástica. Best-seller com A Descoberta das Bruxas, recém-lançado pela Rocco (com 30 mil cópias), ela confirmou presença na Bienal do Livro Rio, em setembro.

FANTÁSTICO-2
Entre brasileiros e portugueses

O rentável segmento do terror e da literatura fantástica, aliás, estimulou a Leya Portugal/Gailivro a lançar a série Mitos Urbanos, na qual autores brasileiros e portugueses revisitarão velhas histórias. Espíritos de Gelo, do brasileiro Raphael Draccon, e Senhora Vingança, do português Fernando Ribeiro, chegam neste mês às livrarias portuguesas.

The book is the table

E essa mesa de centro em forma de livro? Não sei se gosto do modelo, não, mas a parte em que você pode esconder a bagunça da sala dentro quando chegam visitas é útil…

Vi no Blue Bus. O designer é o Mitch Steinmetz.

Aliás, isso me lembra o incrível The Coffee Table Book of Coffee Tables, do Kramer, que não consigo acreditar que nenhuma editora tenha lançado de verdade. Tá, na Amazon até há um The Coffee Table Coffee Table Book, mas não um livro de mesa de centro que VIRA um livro de mesa de centro…

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O GIF* do dia, versão literária

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Daqui.

* GIF, se alguém não sabe, são essas imagens em movimento que têm grande chance de roubar dos dias da gente minutos que poderiam ser preciosos. Desculpe.

Por que livros velhos cheiram bem

Nenhum conhecimento literário me preparou para interpretar a estrutura acima, mas soube agora que ela diz muito sobre mim e, provavelmente, sobre você, se você é frequentador desta e de outras bibliotecas.

Essa coisa aí é a lignina, substância que dá rigidez e impermeabilidade às células vegetais. Trata-se de um polímero formado por unidades que têm estreita relação com a vanilina – o principal composto da baunilha.

Quando transformado em papel e estocado por longos períodos, esse polímero se quebra e… passa a cheirar bem. O que explica por que não há rinite capaz de impedir alguém de ser feliz num sebo.

Seria tal artifício “uma forma subliminar que a providência divina encontrou para atiçar nossa fome por conhecimento”? É esse o chute (de brincadeirinha, é claro) do cientista Luca Turin e da especialista em perfumes Tania Sanchez, que explicam todo o mecanismo com muito mais classe no livro Perfumes: The A-Z Guide, publicado lá fora faz uns anos.

E eu nem sabia que gostava assim de baunilha.

(Vi lá no Trabalho Sujo.)

A coluna Babel de 7/5

[Publicada no Sabático. Alguém me cobre depois um texto mais detalhado sobre as traduções do Joyce, porque a história é muito mais interessante do que coube na coluna]

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BABEL
Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

TRADUÇÃO
Domínio público, em 2012, trará várias edições de James Joyce

Em 2012, quando a obra de James Joyce (1882 -1941) cair em domínio público, editores do mundo todo estarão livres de um grande empecilho: o neto Stephen, conhecido por dificultar ao máximo iniciativas envolvendo o legado do avô. No Brasil, ao menos três casas programaram traduções. A Companhia das Letras tem pronta a tradução de Ulisses, por Caetano Galindo, que verterá ainda Retrato do Artista Quando Jovem e Dublinenses. A Iluminuras, com Exilados no catálogo, reeditará Pomas, Um Tostão Cada (ambos por Alípio Correia da Franca Neto), publicará o infantil O Gato e o Diabo (por Dirce Waltrick do Amarante) e terá os inéditos De Santos e Sábios, ensaios (com traduções de Dirce, Sergio Medeiros, Galindo e André Cechinel), e Stephen Herói (Alípio). Stephen Herói, fragmento da primeira versão de Retrato, foi pedida também pela Hedra a José Roberto O’Shea, que, além disso, revisará sua tradução de Dublinenses.

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Raridade. Um exemplar de Mr. and Mrs. Woodman, com 27 fotos feitas por Man Ray em 1947 e publicadas em ediçãolimitada e assinada de 1970, estará à venda por R$ 135 mil no estande da Fólio Livraria na SP-Arte, de 12 a 15/5, na Bienal.

DIREITOS
Vaivém de autores


Chuck Palahniuk, autor de Clube da Luta, passará a ser publicado pela Leya. Além de seu livro mais famoso, a editora pretende lançar até o fim do ano Sobrevivente e Dammed – este último inédito por aqui. Palahniuk pertencia à Rocco, que em 2010 publicou Snuff e mantém na programação um último título, o autobiográfico Mais Estranho Que a Ficção, a sair até o meio do ano.
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Já Elmore Leonard, também do catálogo da Rocco, terá seus dois próximos livros no Brasil pela Companhia das Letras. São eles Djibouti e Raylan – sequência de Fire in the Hole, que originou a série de TV Justified.
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Segundo a Rocco, foi opção da casa não adquirir os novos de Leonard, mas perder Palahniuk não estava nos planos. A editora diz querer manter a aposta nos jovens. Destaca ter no catálogo cinco nomes da mais recente lista de 20 autores com menos de 40 anos da New Yorker: os já editados Daniel Alarcón, Jonathan Safran Foer e Gary Steinghart (cujo História de Amor Supertriste sai em junho) e os inéditos Wells Tower (Tudo Destruído, Tudo Queimado, previsto para junho) e Sarah Shun-Lien Bynum (Ms. Hempel Chronicles, que sai até dezembro).
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QUADRINHOS 1
Tropailustrada

As histórias de milícias cariocas ficcionalizadas em Elite da Tropa 2, que a Nova Fronteira lançou em 2010 na esteira do filme Tropa de Elite 2, darão origem a graphic novels que a editora começa a pôr no mercado este ano. Três dos coautores do livro se revezarão nos roteiros: Luiz Eduardo Soares fará os dois iniciais, André Batista escreverá o terceiro e Rodrigo Pimentel fechará a série. A arte fica a cargo de Marcus Wagner.

QUADRINHOS 2
Bastidores argentinos


O argentino Juan Sasturain, jornalista, escritor, apresentador de TV e roteirista de HQs, confirmou presença nas Jornadas Internacionais de Quadrinhos, que ocorrem de 23 a 26 de agosto na USP. Editor de quadrinhos desde os anos 70, ele trabalhou em revistas como Humor, espécie de O Pasquim portenha, e criou a celebrada Fierro. Na USP, contará bastidores de sua atuação durante a ditadura e a abertura em seu país.

CONCURSO
Viagem literária


O tradicional Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, cujos vencedores serão anunciados na Jornada de Passo Fundo, em agosto, dará um agrado extra este ano: além do prêmio de R$ 5 mil, o vencedor ganha viagem de dez dias a Santiago de Compostela, podendo assistir a aulas na Universidade de Compostela. O segundo lugar, como nas edições anteriores, leva R$ 3 mil.

MEMÓRIAS
Encontro com Salinger


Contratada em 1996 pela agência literária de J.D. Salinger, Joanna Rakoff tinha a atribuição de enviar respostas padrão aos leitores que escreviam ao autor. A missão ganhou contornos inesperados quando ela passou a enviar cartas pessoais aos fãs. Os acontecimentos daquele ano, que acabaram a levando a conhecer pessoalmente o escritor, serão contados em My Salinger Year, que deve ficar pronto em 2012 e teve os direitos comprados pela Intrínseca.

Trecho da biografia No Direction Home, de Robert Shelton

Segue trecho inicial do décimo capítulo da biografia No Direction Home, sobre o qual escrevi no post abaixo. O texto de Robert Shelton foi feito a partir de entrevista concedida por Bob Dylan em 1966, durante voo no avião particular do cantor.
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Tenho uma coisa com a morte. Tenho uma coisa suicida, eu sei. Se as músicas são sonhadas, é como se minha voz viesse do sonho delas.
— Dylan, 1966

Judas!
— Keith Butler, ao interromper o show no Manchester Free Trade Hall, 1966. Originalmente atribuído a um espectador na plateia do Albert Hall, em 1998. Pesquisas depois revelaram que o fatídico show aconteceu no Free Trade Hall, em Manchester. John Cordwell também afirma ter proferido o famoso grito

Bob Dylan, vá para casa.
— Paris Jour, 1966

Era pouco depois da meia‑noite, numa noite de meados de março de 1966. No escuro, o aeroporto de Lincoln se fundia aos campos à sua volta. Dylan, cinco integrantes dos Hawks, dois  roadies  e um convidado estavam em dois carros que seguiam em direção ao aeroporto. Quando chegamos, as luzes da pista e da torre de controle foram acesas e mecânicos cercaram o bimotor Lockheed Lodestar, o avião particular de Dylan. O piloto e o copiloto passaram a cuidar dos procedimentos de voo. Denver era o próximo destino, depois a equipe voltaria a Nova York para trabalhar no estúdio, e então seguiria para a costa noroeste da América do Norte, Havaí, Austrália, Escandinávia, Irlanda, Inglaterra e França, e em seguida voltaria para os Estados Unidos. Esse seria o começo do fim de uma das muitas carreiras de Dylan.

Dylan entrou no refeitório escuro. Ele se serviu do café velho de uma cafeteira, então ficou à janela, ao lado de um mecânico vestido num macacão branco que perscrutava a noite. “Deve ser solitário por aqui”, Dylan disse ao mecânico. Ambos olhavam para a pista, não um para o outro. “Sim”, respondeu o mecânico, “mas é um emprego. Eu pego as horas que eles me oferecem.” “Eu sei como é isso, sei mesmo”, disse Dylan, enquanto ambos olhavam para a planura, e pouco depois seguiu para a pista. Ele acabava de fugir de 50 fãs no hotel, mas seis estavam agrupados ao redor do avião. “O show foi ótimo”, disse um dos fãs. “Gostamos muito, Bob”, disse outro. “Quando você vai voltar para cá?”. Dylan disse que não sabia, e acrescentou: “Muito obrigado, fico feliz que tenham gostado do show”.

Ele rabiscou o autógrafo algumas vezes. Um jovem tímido, com cerca de 17 anos, se aproximou. Ele usava óculos, uma camisa branca impecável e gravata. “Sr. Dylan”, ele disse com nervosismo, “também me interesso por poesia”. “Ah, é?”, respondeu Dylan. “Sim, senhor”, respondeu o rapaz. “Gostaria de saber se o senhor poderia dispor de alguns minutos, quando puder, para ler alguns dos meus poemas”. “Claro”, respondeu Bob. O jovem estendeu para Dylan um envelope grande tão cheio que mais parecia uma bola de futebol americano. “Isso tudo são poemas?”, perguntou Dylan. Orgulhoso, o rapaz respondeu: “Sim. Estou escrevendo mais desde que passei a estudar as suas canções”. “Bem,” disse Dylan, “obrigado. Vou tentar ler alguns hoje à noite. Seu endereço está no envelope? Vou escrever para dizer o que achei deles”. O rapaz incandesceu. “Isso é maravilhoso. Espero que goste.”

Dentro do avião, os músicos da banda já cochilavam, uma pilha de corpos afundados nos assentos. Bob provavelmente precisava mais de sono que qualquer um deles, mas estava desperto e parecia ansioso para usar os minutos até que o avião estivesse pronto para decolar. Literatura: “Rimbaud? Não consigo lê‑lo agora. Prefiro ler o que quero ultimamente. ‘Kaddish’ é a melhor coisa que já li. Todo o resto é falsidade. Nunca curti Pound ou Eliot. Shakespeare escrevia por encomenda. Ele não era um místico, apenas uma das arquirrainhas de tudo. Uma rainha delirante e um cérebro de anfetaminas cósmico”. Sobre a sua nova música: “Não houve nenhuma mudança. Nenhum instrumento mudará o amor, a morte, em nenhuma alma. Minha música é minha música. A música folk era fingimento. Eu nunca gravei uma canção folk. A minha ideia de uma canção folk é Jeannie Robertson ou Dock Boggs. Chamemo‑la de música histórico‑tradicional. Quero compor músicas agora. Até Bringing It All Back Home, compor era secundário. Eu ainda era um cantor. Então eu soube que precisava escrever canções. Não preciso consultar ninguém para saber que sou bom. Eu sei, eu sou honesto. Fazer com que aquelas pessoas da literatura, algumas daquelas pessoas da poesia sentassem com os meus discos, isso seria bom”. Sobre os direitos civis: “Olhe para o Sul. Os negros estão tomando o controle da cidade. Mas isso é bacana? Poder, tudo diz respeito a isso. Os negros ricos vão assumir o controle. Os jovens são apenas o pontapé inicial. Se eu fosse negro, não sei se desejaria frequentar a escola com os brancos”. As palavras jorravam. “É papo‑furado. Temo que seja tudo morte. Não quero me ver morrer. Prefiro me atirar de um penhasco em um carro do que fazer algo em que não acredito. Preciso superar a pressão […] Eu vi Chuck Berry no aeroporto de St. Louis. Dá para escutar Buddy Holly sozinho, mas Chuck Berry? É preciso estar na estrada.”

Os gerentes da turnê, Bill Avis e Victor Maimudes, conferiram os cintos de segurança de todos. Eu e Dylan estávamos sentados frente a frente. Em um joelho, ele tinha um envelope com uma prova do seu livro, Tarantula, que acabava de receber do editor para aprovação. No outro estava o envelope do fã. Eu sabia que ele provavelmente não abriria nenhum dos dois naquela noite. Mexi no meu gravador, amaldiçoando o ruído dos motores. Eu segurava o microfone a 30 centímetros de Dylan. Os olhos dele estavam semicerrados. Ele estava exausto, mas disse que não dormiria mesmo que eu não estivesse presente. Ele simplesmente tinha muito a fazer. “É preciso de muitos remédios para manter esse ritmo”, disse Dylan. “É muito duro, cara. Uma turnê como essa quase me matou. Está sendo assim desde outubro. Isso me enlouquece, de verdade. Nunca aconteceu nada parecido antes. Tem sido um período bem estranho, me derrubou mesmo. Vou reduzir o ritmo. No ano que vem, a turnê vai durar apenas um mês […] ou dois. Só estou fazendo isso, esse ano, porque quero que todos saibam o que estamos fazendo.” Dylan bebericou o chá, soprou uma nuvem de fumaça de cigarro acima da cabeça, ajeitou o colarinho e prosseguiu: “É absurdo que as pessoas fiquem sentadas sendo ofendidas pela própria insignificância, então elas precisam forçar que tudo mais entre no buraco com elas, e morrem tentando. Esse é o problema. Mas não estou mais envolvido com isso. Já disse isso para você mil vezes. Não sei se você acha que eu estou brincando, ou se você acha que é uma fachada. Eu simplesmente não dou a mínima — honestamente, não dou a mínima — para o que as pessoas falam de mim. Não dou a mínima ao que as pessoas pensam de mim. Não dou a mínima ao que as pessoas sabem a meu respeito. Não dou a mínima”.

“O palco é uma curtição agora. Não era antes, porque eu sabia que o que estava fazendo era simplesmente vazio demais. Eram embaixadores mortos que vinham me assistir, aplaudiam e diziam: ‘Oh, que legal, eu gostaria de conhecê‑lo e tomar um coquetel. Talvez eu traga o meu filho, Joseph, comigo. Joseph gostava muito de bater palmas. ‘Você gostou do programa, não gostou, Joseph?’. E Joseph, é claro, dizia: ‘Ah, sim, pai. Sim, eu gostei — ah, eebaaaa!’ E então eles perguntam: ‘Posso levar Isabella?’. E então, quando você menos espera, está rodeado por cinco ou seis crianças com garrafas de Coca ou ginger ale nas mãos e você é confrontado por algum embaixador que enfiou a mão no seu bolso tentando sacudi‑lo e cumprimentá‑lo. Eu não permitirei que ninguém  entre nos bastidores, nem mesmo para me cumprimentar. Não me cumprimentem. Eu simplesmente não dou a mínima.”

O ritmo do discurso e a vitalidade dos pensamentos passaram a inflamar Dylan. Seus olhos estavam despertos quando ele prosseguiu: “Você não pode me perguntar como eu durmo. Você não pode me perguntar como eu faço, não pode perguntar o que eu acredito que estou fazendo aqui. Fora isso, nos entenderemos muito bem. Pergunte qualquer coisa que eu respondo. Agora temos algo muito claro em relação ao livro. Direi a Albert que chegamos a um acordo em relação ao livro. Darei a você o quanto puder do meu tempo. Eu chego ao ponto muito fácil quando o assunto são coisas que quero que sejam feitas, mas você pode me enrolar. Você pode fazer o que quiser, sem maiores dificuldades. Mas nunca vou te perdoar se fizer isso, cara. Não será uma biografia porque eu ainda não morri. Será uma coisa atemporal, certo?”

“Ninguém me conhece. O que as pessoas sabem de verdade? Que o nome do meu pai é Zimmerman e que a família da minha mãe é de classe média? Não vou sair por aí dizendo às pessoas que isso é mentira. Não vou encobrir nada que disse antes. Não voltarei a falar sobre nada, qualquer declaração ou qualquer coisa que eu tenha feito. Não vou deixar de assumir responsabilidade por nada que tenha feito desde que nasci. Desisti de dizer às pessoas que elas estão enganadas quanto ao que pensam sobre qualquer coisa, sobre mim ou o mundo, ou o que quer que seja. Eu não dou a mínima. Você pode escrever qualquer coisa que quiser escrever.

“Mas você não vai editar esse livro, vai? Eles vão editá‑lo? Isso está no seu contrato? Porque é uma armadilha se não estiver no contrato. Não importa o quanto você for objetivo quando escrever os seus lances, não importa o que você escreva, eles podem torcer tudo acrescentando as próprias palavras. Agora, você não vai dizer ‘autorizada por Bob Dylan’. Eu escreverei isso na capa. Escreverei quatro frases na capa e assinarei o meu nome, algo como: ‘Bob Shelton levantou a minha bola no New York Times há cinco anos. Ele é um cara legal e eu gosto dele. E ele escreveu este livro, que, por sinal, não é’ — apenas para garantir que venda em Nebraska e no Wyoming — ‘não é berrante’.” Satisfeito com um endosso tão absurdo, Dylan sorriu.

“Não há nada que ninguém possa expor a meu respeito. Todos acham que há muito a desmascarar, 1 milhão de miudezas, como a mudança do nome ou o que quer que seja. Isso não me importa. O único tempo em que importou foi quando as pessoas surgiam com coisas como, ‘você teve catapora’. Ou ‘a sua cueca fica suja quando você está com os pés no chão’. Entendeu? Isso me incomodou. Não estou falando de coisas musicais. Estou falando das pessoas, as pessoas para quem elas foram escritas. Obviamente, há pessoas que gostam de ler esse tipo de merda. E as pessoas podem dizer: ‘Ah, eu não acredito’ ou ‘isso não me importa’. Mas as cutucou, sabe?”.

Remexendo‑se no assento sem parar, Dylan estava acordando, irritado com os fantasmas que o assombraram, irritado com a fome do público. Ele parecia querer se explicar. Era incomum que ele explicasse qualquer coisa, porque, de qualquer forma, ninguém parecia entender. Ele tentou um novo começo. “Penso em tudo que eu faço como a minha escrita. Chamar de qualquer coisa que não escrita seria uma desvalorização. Mas não há uma pessoa no mundo que a leve mais a sério do que eu. Eu sei que isso não vai me ajudar nem um pouco a entrar no céu. Não vai me deixar de fora da fornalha ardente. Não vai estender a minha vida e não vai me deixar mais feliz.”

“O que você acha que o deixará feliz?”, eu perguntei. “Eu sou feliz, sabe, sou feliz por ser capaz de descobrir as coisas. Não preciso ser feliz. Felicidade é uma palavra barata. Há alguns tipos de felicidade que são muito, muito esnobes. Admitamos, eu não sou o tipo de cara que corta uma orelha se não conseguir fazer alguma coisa. Eu cometeria suicídio. Daria um tiro na cabeça se as coisas ficassem ruins. Saltaria de uma janela. Eu com certeza não cortaria a minha orelha, cara, eu daria um tiro na cabeça. Posso pensar na morte abertamente, sabe. Não é algo a se temer. Não é sagrado. A morte não é nada sagrada. Vi tanta gente morrer.” Perguntei: “A vida é sagrada?” “A vida também não é sagrada”, respondeu Dylan. “Olhe para todos os espíritos que na verdade controlam a atmosfera, que não vivem, mas ainda assim atraem a você, as ideias, ou tipo jogos no sistema solar. Ou olhe para a farsa formada por política, economia e guerra.”

Era outra variação de um velho tema de Dylan: a batalha entre o desespero interno e a esperança externa. “Ficou fácil para mim fazer tudo, você não faz ideia, cara, tudo sob o meu comando. Agora sou capaz de ganhar dinheiro fazendo absolutamente qualquer coisa. Mas não quero esse tipo de dinheiro. Não sou um milionário, em termos de tudo que tenho. Mas está bem perto. No ano que vem eu serei um milionário, mas isso não significa nada. Ser um milionário quer dizer que no próximo ano você pode perder tudo. Você precisa se dar conta de que eu nunca deixei de assumir qualquer responsabilidade. É difícil para qualquer pessoa que faça o que faça não ser forçada a deixar de assumir responsabilidade por certas coisas. Quero dizer, eu amo o que faço. E também ganho dinheiro com isso. Eu, eu canto coisas honestas, cara, consistentes. É tudo que eu faço. Eu não dou a mínima para o que qualquer pessoa diga. Ninguém que me elogie tem algum efeito sobre mim e ninguém que critique o que eu faço terá algum efeito sobre mim. Ninguém. Eu não leio nada a meu favor ou contra mim que possa vir a ter algum efeito sobre mim. Então, por isso, eu nunca leio de verdade o que as pessoas dizem a meu respeito. Eu simplesmente não tenho interesse.”

“Quando me dei conta de verdade de que tinha dinheiro que não podia ver, olhei em volta para ver o que alguns dos meus agentes estavam fazendo com ele. Antes de mais nada, eu adoro motoristas. Na última vez que voltei da Inglaterra, não comprei um chofer, mas certamente aluguei um. Isso não me incomoda. Eu preciso do dinheiro para empregar pessoas. As coisas andam de mãos dadas. Se eu não tivesse dinheiro, poderia ser invisível. Mas agora o dinheiro é necessário. Agora, ser invisível custa caro. Esse é o único motivo pelo qual eu preciso de dinheiro. Não preciso de dinheiro para comprar roupas ou coisa parecida.” Mais uma vez, a raiva aflorou. “Estou farto de fazer a pessoas repulsivas ganharem dinheiro à custa da minha alma. Quando perder os dentes amanhã, elas não vão comprar novos dentes para mim. Tem um monte de pessoas para quem posso dar dinheiro e o dinheiro que é meu de direito, esse eu quero. Não gosto de pessoas pequenas que fumam cigarros Tiparillo e têm os bolsos virados para fora o tempo todo e usam óculos e que um dia quiseram ser Grouxo Marx faturando todo o dinheiro às minhas custas. E elas são muitas. Todas do mundo da música.”

“Ah, se não é o produtor te enrolando é a bilheteria te enrolando. Tem sempre alguém causando problemas. Nem mesmo os números da gravadora são confiáveis. Eles nunca estão certos. Por um motivo ou outro, nunca estão certos. Ninguém é sincero com você porque ninguém quer que a informação seja divulgada. Você sabia que até determinado momento eu ganhava mais dinheiro com uma composição minha se ela estivesse em um disco de Carolyn Hester ou de quem quer que fosse e não se eu mesmo a gravasse? Esse é o contrato que eles me deram. Terrível. Terrível!”

Os lampejos de desespero amainaram. Dylan não perdia o senso de ridículo. “Eu não vou ser aceito, mas gostaria de ser aceito pela elite literária, que usa violetas nas virilhas e cuida para ter os nomes incluídos em todas as listas de estreias de filmes. Pelos que escrevem críticas musicais e críticas literárias e críticas de cinema e críticas de TV, e também sobre moda feminina e reuniões de pais e mestres, você sabe, tudo na mesma coluna. Eu gostaria de ser aceito pelas pessoas. Não há motivo para que não seja. Mas não acho que isso acontecerá um dia. E, apesar disso, os Beatles foram”. Ele queria o tipo de aceitação dos Beatles? “Não, não, não, eu não estou dizendo isso. Estou apenas dizendo que os Beatles conseguiram, certo? Em todas as formas musicais, seja Stravinsky ou Leopold Jake the Second, que toca no Five Spot, o Blak Muslim Twine ou o que quer que seja. Os Beatles são aceitos, e é preciso aceitá‑los pelo que eles fazem. Eles tocam canções como ‘Michelle’ e ‘Yesterday’. Há muita suavidade ali.” Quando disse que Joan Baez planejava gravar “Yesterday” no próximo álbum, Bob retorquiu: “É, é a coisa a se fazer, dizer aos adolescentes ‘eu curto os Beatles’ e cantar uma música como ‘Yesterday’ ou ‘Michelle’. Ah, por Deus, elas são um engodo, cara, essas canções. Se você for à Biblioteca do Congresso encontrará coisa muito melhor do que isso. Milhões de canções como ‘Michelle’ e ‘Yesterday’ foram lançadas pelas engrenagens da indústria fonográfica”.

Não há milhões de canções como as dele sendo compostas por ninguém, eu sugeri. “Não sei se concordo plenamente com isso, porque no final implica que ninguém mais é capaz de cantar as minhas canções a não ser eu. Tipo, vou precisar me retirar do negócio. Pelo amor de Deus, precisarei lançar 10 mil discos por ano, porque ninguém vai querer cantar as minhas composições”. Ele influenciava os jovens porque quebrava as regras? “Não é uma questão de quebrar as regras, você não entende? Eu não quebro regras, porque não vejo nenhuma para quebrar. Na minha opinião, não existem regras.”

Dylan parecia Lenny Bruce. Ele dedilhava um tema, com uma corda vocal, não um acorde de guitarra. As palavras fluíam como música. Ele entrava e saía da comunicação, como um músico de jazz entrando e saindo de uma linha melódica. Era “tudo música, nada mais nada menos”, música com as palavras, música com a irreverência, música verbal e simbólica. Ele estava completamente desperto agora, dedilhando uma melodia. De cores a poesia, Dylan improvisou: “O meu lance são as cores. Não preto e branco. Sempre foi as cores, seja nas roupas ou no que quer que seja. Cor. Agora, com algo assim o impulsionando, às vezes as coisas ficam bem vermelho sangue, entende? E às vezes muito pretas”.

“Você apenas precisa chegar lá. Quando digo ‘chegar lá’, não quero dizer um astro do folk rock. ‘Chegar lá’ quer dizer encontrar seu caminho. O caminho de todo mundo está aí, em algum lugar. As pessoas acreditam que devem seguir em frente vivendo o inferno na terra, mas eu não acredito nessa atitude. As únicas pessoas que acreditam que é preciso seguir em frente vivendo o inferno na terra, ou que a vida é uma tragédia, são as pessoas simplórias, de mente curta, que precisam encontrar desculpas para si mesmas. O caminho de todos está aí. Apesar de todos que nasceram e morreram, o mundo simplesmente seguiu em frente sem elas; quero dizer, veja Napoleão — mas nós seguimos em frente. Veja Harpo Marx — o mundo continuou a girar, não parou por um segundo. É triste, mas é verdade. John Kennedy. Certo?”

A diferença não estaria, eu perguntei, no que as pessoas fazem enquanto estão na Terra? “Você não percebe que elas não fizeram nada? Alguma pessoa fez algo, de verdade? Pense em qualquer pessoa que você acha que fez alguma coisa. Diga o nome de qualquer pessoa que você acredita ter feito alguma coisa.” “Shaw”, eu disse. “George Bernard Shaw”, Dylan repetiu lentamente, um nome de cada vez. “Quem ele ajudou?” “Ele ajudou muitas pessoas a usarem a cabeça”, eu respondi, e acrescentei: “Você ajudou muita gente a usar a cabeça e os ouvidos”. “Bem”, Dylan respondeu, “eu não acredito nisso, não acredito. É engraçado que as pessoas acreditem que eu tenha ajudado. Eu certamente não vou sair por aí dizendo que é isso o que faço. Durante algum tempo, li muita coisa que era escrita a meu respeito, talvez três, quatro atrás. Agora, não leio nada. Então não faço ideia do que as pessoas dizem a meu respeito. Não sei mesmo. Mas o que eu sei é que muita gente gosta de mim. Isso eu sei”.

A 12 mil metros de altitude, voando sobre as Grandes Pradarias, ele fazia malabarismo com os joelhos, como as bandejas de uma balança, a prova de Tarantula num joelho e os poemas do rapaz de Nebraska no outro. Um envelope subia e o outro descia, numa oscilação inconsciente de pesagem literária. Ele acreditava que Tarantula seria aceito pela elite literária do establishment, pelos poetas sérios? “Antes de mais nada”, ele disse, animado, “você precisa perceber que se for escrever para poetas e gente da literatura…”. Ele cortou a linha de pensamento. “Eu acredito que um poeta é qualquer pessoa que não se chamaria de poeta. Qualquer pessoa que pense em se considerar um poeta simplesmente não pode ser um poeta. Eles simplesmente se acomodaram na romantização dos seus ancestrais e no conhecimento histórico de fatos que nunca aconteceram. E gostam de pensar que estão um pouco acima disso tudo. Quando as pessoas começam a me chamar de poeta eu digo: ‘Ah, que bacana, que bacana ser chamado de poeta’. Mas vou dizer uma coisa, isso não me fez bem algum. Não me deixou nada mais feliz.”

“Ah, eu adoraria dizer que sou um poeta. Gostaria mesmo de pensar em mim mesmo como um poeta, mas não posso, por causa de todas essas pessoas odiosas que são chamadas de poetas.” Quem era poeta então? Allen Ginsberg? “Ele é um poeta”, Dylan disparou. “Ser poeta não implica necessariamente que se deva escrever palavras no papel. Entende o que eu estou dizendo? Um daqueles motoristas de caminhão que desce as escadas de um motel é poeta. Quer dizer, ele fala como um poeta, o que mais um poeta precisa fazer? Os poetas”, a voz dele ficou suspensa no ar em meio a formulações vagas, as ideias fluindo rápido demais para a língua. “Poetas, velhos, morte, decomposição, pessoas como Robert Frost poetizam com árvores e galhos, mas não é isso o que eu quero dizer. Allen Ginsberg é o único escritor que eu conheço. Eu não respeito tanto assim os outros escritores. Se eles realmente quiserem fazê‑lo, precisarão cantar. Eu não diria que sou um poeta pelos mesmos motivos que não diria que sou um ‘cantor de protesto’. Tudo que isso faria seria me inserir em uma categoria com um monte de pessoas que só me importunariam. Não quero estar na categoria delas. Não quero enganar ninguém. Dizer a qualquer um que eu sou um poeta seria enganar as pessoas. Isso me colocaria numa classe, cara, com pessoas como Carl Sandburg, T. S. Eliot, Stephen Spender e Rupert Brooke. Ei, dê nome aos bois — Edna St. Vincent Millay e Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe e Robert Lowell.”

“Conheço duas pessoas santas”, prosseguiu Dylan. “Conheço duas pessoas sagradas, e Allen Ginsberg é uma delas. A outra, por falta de um termo melhor, quero chamar simplesmente de ‘uma pessoa chamada Sara’. O que quero dizer com ‘sagrado’ é uma transposição de todos os limites do tempo e do valor. Ei, eu curto muita gente, eu amo muita gente, mas certamente não os considero poetas.” Dois outros escritores que ele admirava lhe ocorreram de súbito: “William Burroughs é um poeta. Eu gosto de todos os livros dele, e dos livros mais antigos de Jean Genet, mas estou falando de escritores deste país. As palestras de Genet são apenas perda de tempo, são maçantes. Mas se estamos falando em termos de escritores que eu acredito poderem ser chamados de poetas, então Allen é o melhor. O ‘Kaddish’ de Allen, não ‘Uivo’”.

“Allen não precisa cantar ‘Kaddish’, cara. Entende o que eu quero dizer? Ele pode simplesmente colocá‑lo no papel. Não consigo expor todos os meus sentimentos por ele porque são totais demais. Ele é a única pessoa que eu conheço que escreve, que apenas e totalmente escreve. Ele não precisa fazer nada, cara. Allen Ginsberg, ele é apenas sagrado, uma das duas pessoas que conheço que são sagradas.” E como Sara é sagrada? “Eu não quero incluí‑la neste livro. Quero mantê‑la fora disso, não quero chamá‑la de ‘garota’. Eu prefiro me referir a ela, se é que irei me referir a ela, não posso me referir a ela por qualquer outro nome — eu não quero parecer deslumbrado, sei que isso é muito brega, mas a única coisa na qual consigo pensar é, mais ou menos, ‘mulher madona’.”