Delícia de romance O Único Final Feliz Para Uma História de Amor É Um Acidente, do JP Cuenca, que sai pela coleção Amores Expressos e sobre o qual escrevi no Sabático deste último final de semana. O texto segue abaixo
As fotos com as quais ilustro este post eu roubei do próprio autor, do blog que ele assinou no tempo em que esteve em Tóquio pesquisando para o livro, em 2007.
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Estranho amor em terra estrangeira
João Paulo Cuenca, 32 anos, firma-se como um dos nomes de destaque de sua geração com romance de encomenda ambientado em Tóquio – onde viveu por um mês – que tenta escapar do ”olhar domesticado”
Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo
O Rio amanheceu algum tempo atrás com muros e postes tomados por lambe-lambes que, entre anúncios de shows e eventos afins, chamavam a atenção pela enigmática mensagem que exibiam: O Único Final Feliz Para Uma História de Amor É Um Acidente. Para a maior parte dos transeuntes a frase em tom de profecia não deve ter causado mais que estranhamento, mas era essa mesmo a intenção do escritor João Paulo Cuenca quando decidiu espalhá-la pela cidade. Para ele, o extenso título de seu terceiro romance carrega um sentido quase completo, como se fosse outra obra em si – característica que ele não quis desperdiçar. “Quem já sabia do livro me ligou ao ver os cartazes, mas fico imaginando quem não sabia do que se tratava. As pessoas reagem a essa frase, param para pensar. Quem lê o título já frui alguma coisa”, imagina o carioca, de 32 anos.
A sensação de estranhamento perpassa toda essa história, desde sua concepção. O livro resulta da participação do escritor no projeto Amores Expressos, que em 2007 mandou autores brasileiros a cidades estrangeiras que lhes inspirassem a escrever ficções sobre amor. A J.P. Cuenca coube atravessar meio globo rumo a Tóquio, onde passou o mês mais esquisito da vida, num estado de solidão que não era interrompido nem em pensamento. “Se você entende o que escuta, de alguma forma presta atenção. Mas, se não pode ler o que está escrito no outdoor ou no ônibus, não entende o que se fala, entra numa bolha de incomunicabilidade”, descreve. “Cheguei a ficar dias sem falar com ninguém. Tinha fluxos de pensamentos enormes.”
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As torrentes de raciocínio levaram a uma intrincada narrativa na qual a história de amor é central e de certa maneira periférica; sufocante nos detalhes íntimos e ao mesmo tempo superficial, artificial, fetichista. Ou seria mais justo dizer as histórias de amor, no plural: entre o jovem executivo Shunsuke Okuda e a garçonete romena Iulana Romiszowska; entre Iulana e a dançarina Kazumi, de proporções milagrosamente harmoniosas; entre a boneca erótica Yoshiko e o velho poeta Atsuo Okuda, pai de Shunsuke. E, em meio a tudo isso, câmeras que tudo veem: uma gigantesca rede de espionagem, o “submarino”, criada por nenhum motivo mais nobre que a obsessão do velho Okuda em seguir (e atrapalhar) cada passo da vida amorosa de Shunsuke.
Estranho o bastante? É ainda mais singular saber que uma das inspirações para tal rede de espionagem foi a decisão de Cuenca de seguir pessoas pelas ruas de Tóquio, “uma boa maneira de entender uma cidade”. Com isso, definiu detalhes da trajetória de gente como o velho Okuda e a garçonete romena – esbarrou por lá em várias moças do Leste Europeu, com suas cabeças louras e mais altas que o japonês médio, o que as fazia parecer “girafinhas” entre a multidão. “Em vários momentos tentei ser o submarino. Espionar, mesmo. É uma experiência louca, muito doente. Nos outros romances, foi um processo mais saudável.”
Outro exercício insalubre foi tentar se colocar, como narrador, na pele de um nativo japonês, Shunsuke. Admirador de Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, Cuenca não quis reproduzir a opção do filme de narrar do ponto de vista de um gaijin (estrangeiro). Concluiu que tal olhar seria “domesticado”, parecido demais com o dele próprio. “Busquei a zona de sombra. Esse narrador que construí é uma maluquice. Tenho medo de japoneses quererem me matar”, brinca. Acha graça agora, mas ficou de fato preocupado. A ponto de pedir para sua editora, a Companhia das Letras, verter para o inglês três capítulos para que pudesse enviar a um amigo japonês – que aprovou, assim como “um ou outro” nissei a quem mandou o romance por aqui.
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Estrangeiro mesmo acaba sendo o olhar de Shunsuke para a romena que ele ama sem entender (“Tocar em Iulana Romiszowska é como tocar num animal desconhecido”, reflete). Cuenca esforçou-se na arriscada tarefa de mimetizar o pensamento oriental sem estereotipá-lo, chegando a dormir num hotel cápsula, aquele com quartos de fibra de vidro pouco maiores que um caixão, e a conviver com os salarymen, assalariados que, após o expediente, enchem a cara em bares e boates. Sente que, com isso, o narrador se tornou mais “malandro” que os de seus romances anteriores, Corpo Presente, de 2003, e O Dia Mastroianni, de 2007.
Humanização. Um dia antes da conversa com o Estado, Cuenca enviou um email: “O caminho para terminar esse livro foi tão longo, em tantos sentidos, que acho que pela primeira vez como escritor tenho algo para dizer numa entrevista.” Por telefone, explicou melhor: os outros romances encerravam neles mesmo o que tinham a expressar; de O Único Final Feliz… ele não se cansa de extrair sentidos.
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Numa das passagens mais bonitas da história, Yoshiko, a boneca erótica fabricada para servir ao velho Okuda, descobre o ciúme (“sinto um foco de calor preciso dentro do meu corpo, como se alguém houvesse acendido um fósforo no meu peito”, tenta descrever, com o pouco de informação que tem sobre o mundo). Um sentido que o autor vê na boneca é o de representar a literatura em si. Ela nasce artificial – abre a narrativa descobrindo o mundo fora da caixa em que chegou à casa do sr. Okuda -, assim como é para Cuenca o ato de escrever. “Há formas de arte que se aproximam do impulso, do movimento natural. Pintar, dançar, até escrever poesia. Mas romance é artificialismo em estado puro. A atividade de escrever, sentado numa cadeira, tentando aprisionar em palavras aquela torrente de sensações. A linguagem é um inimigo.” Da mesma forma que o romance quando já passou do estágio da escrita e está no papel, Yoshiko se humaniza. Descobre o tempo, toma consciência da finitude, percebe o amor e quer aprisionar a sensação de infinito que ele oferece.
O produtor Rodrigo Teixeira, que financiou o Amores Expressos, tem os direitos dos livros da coleção para o cinema. O Único Final Feliz… é um prato cheio para qualquer plano de adaptação – nesse sentido, lembra Murakami -, mas Cuenca diz que a ideia nem lhe ocorreu durante a escrita. Se fosse para ser filmado, gostaria de vê-lo como animação realizada por algum escritório japonês. Isso ao menos ajudaria a resolver imagens nonsense, quase oníricas, como a do velho Okuda transformando-se no monstro Gyodai e destruindo parte da cidade… Gyodai? “Adoraria falar que descobri Tóquio pelos filmes do Ozu ou pelos livros do Mishima, mas não. Minha primeira imagem da cidade foi com a série Changeman”, esclarece o autor, que não resistiu à referência.
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