A coluna Babel de 26/3… e um até logo

A coluna de hoje foi minha última antes das férias. Ficarei fora da Redação até dia 27 de abril – mas, antes disso, pode ser que volte por aqui, se tiver alguma história literária bacana da viagem… e se tiver vontade de escrever, é claro =)

Até a volta!

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[Publicada no Sabático]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

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FBN planeja biblioteca para empréstimo de e-books

A criação de uma biblioteca pública para empréstimo de livros digitais, nos moldes da desenvolvida pela New York Public Library, será uma das prioridades da Fundação Biblioteca Nacional na gestão de Galeno Amorim. Para pilotar isso, o presidente da FBN convidou Carlo Carrenho, sócio fundador do Publishnews, ao cargo de coordenador-geral de pesquisa e editoração. Carrenho cuidará ainda do programa do livro popular, que inclui a criação de pontos de vendas de títulos com preços abaixo de R$ 10. Como permitem acordos com o mercado, esses projetos podem evoluir apesar da possível redução nas verbas da FBN, decorrente do corte no orçamento do MinC.

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Nova livraria virtual

Está prevista para 28 de abril a estreia de uma loja virtual da Abril que, entre outras coisas, entrará com força na venda de livros digitais. A empresa fechou acordo esta semana com a distribuidora Xeriph para usar sua base de dados e vem negociando com editoras. Quem já viu o projeto diz que ele tem o design todo cor-de-rosa.

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Filosofia eletrônica

Os primeiros e-books nacionais de livros dos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels chegam ao mercado em abril. A Boitempo lançará nove títulos da Coleção Marx e Engels acrescidos de textos inéditos, como os primeiros estudos de Bruno Bauer (estes em A Questão Judaica). Simultaneamente, sai em papel o volume O 18 de Brumário de Luis Bonaparte.

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Brasil na Itália

Onze editoras brasileiras levarão um total de 921 títulos à Feira do Livro Infantil de Bolonha, na semana que vem. Em 2010, a participação nacional, organizada pela CBL e Apex-Brasil, rendeu aos expositores do País US$ 112 mil em direitos autorais.

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Histórias recontadas


Umberto Eco, Andrea Camilleri, A.B. Yehoshua, Jonathan Coe, Dave Eggers e cinco outros proeminentes ficcionistas contemporâneos contam para crianças suas histórias favoritas na coleção Save the Story, que a Record acaba de garantir após concorrido leilão.

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A editora pagou US$ 100 mil pela série idealizada pelo romancista Alessandro Baricco e que vem saindo pelo jornal italiano L”Espresso, com um ilustrador diferente por título. Cada autor escolheu o seu clássico: Eco, por exemplo, optou por Os Noivos (imagem acima), de Alessandro Manzoni, e Camilleri, O Nariz (imagem abaixo), de Nikolai Gogol.

ARTES
Obras roubadas

As memórias do perito do FBI que em 20 anos recuperou mais de US$ 200 milhões em antiguidades e imagens roubadas é contada em Impagável, que a Zahar lança em julho. Em parceria com o repórter John Shiffmann, Robert Wittman descreve como devolveu a museus obras de Rembrandt, Monet e Picasso, entre outros. O livro teve direitos comprados para o cinema ano passado.

SIMPÓSIO
Paraty de Julia Mann

Depois que a Flip acabar, Paraty receberá outro evento literário – menos badalado, é preciso dizer. De 26 a 28 de agosto, escritores, tradutores e professores de universidades nacionais e alemãs participarão de simpósio na Casa da Cultura sobre Julia Mann, Thomas Mann e as relações culturais entre Brasil e Alemanha. Brasileira, a mãe do autor viveu na cidade na infância.

ORIGINAIS
Colher de chá

Um alento para candidatos a escritores: a Grua inicia em maio sua 1.ª Temporada de Originais, comprometendo-se a avaliar todo livro recebido naquele mês. Haverá até conselho editorial para isso: Rodrigo Lacerda, João Anzanello Carrascoza e Carlos Eduardo de Magalhães, editor da Grua.

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“Nem casas pequenas consegue ler todos os originais. O autor terá certeza de ser lido,pode até falar mal da gente, se não for aprovado”, diz Magalhães. Não é concurso: podem ser eleitos vários livros – ou nenhum.

Qualquer semelhança…

Quem chamou minha atenção para essa semelhança entre as capas foi Marçal Aquino, com quem falei duas semanas atrás por conta do Leituras Sabáticas e de uma nota que saiu na Babel. “Essa coincidência sempre me estarreceu”, disse ele. “Cheguei a dar um exemplar para o Tomás Eloy certa vez; ele riu muito.”

Faroestes, do Marçal, é de setembro de 2001; Réquiem Por um País Perdido, do Tomás Eloy, de abril de 2003; e Entre BH e Texas, de Carlos Herculano Lopes, de 2004.

Ainda Marçal: “Falei para os escritores Luiz Roberto Guedes e Joca Terron, autores da ideia e da execução da capa, que acho a capa do Faroestes, sem favor nenhum, a melhor execução da ideia”. Concordo.

Pé de livro (favor não regar)

Tá na moda estante em forma de árvore, é?


Informações sobre cada uma das quatro estantes estão, respectivamente, aqui, aqui, aqui e aqui.

Entrevista com Rebecca Skloot

Segue a íntegra da entrevista com a Rebecca Skloot, autora de A Vida Imortal de Henrietta Lackslivro sobre o qual escrevi no Caderno 2. Rebecca se tornou tão assediada com o lançamento do livro nos países de língua inglesa que incluiu um FAQ (Frequently Asked Questions) em seu site, o que obviamente me tirou várias possibilidades de perguntas mais fáceis, mas vale dar uma olhada lá porque há questões interessantes e sobre as quais eu tinha dúvidas também.

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Seu livro inclui uma grande pesquisa biográfica e quase um estudo científico, são praticamente duas histórias paralelas que se cruzam. Como foi organizar isso?
Isso me tomou muito, muito, tempo. Esse foi definitivamente um dos grandes desafios desse livro, entender como deveria colocar aquele tanto de informações no papel de uma maneira que não ficasse confuso para as pessoas. Desde o começo sabia que precisava contar as duas histórias juntas, de modo que você pulasse no tempo entre essas duas pontas. Sentia que era importante que as pessoas aprendessem a parte científica ao mesmo tempo em que conhecessem o lado humano da história. Porque são histórias que podem ganhar peso diferente quando você conhece as duas ao mesmo tempo. A história das células têm mais significado quando você aprende sobre a família dela, e a história da família dela é diferente quando você aprende sobre as células. Usei fichas de arquivo em grandes paredes para planejar isso. Eu realmente queria que o livro fosse lido como ficção, na verdade. Então li muitos romances estruturados dessa forma para entender como fazer esses pulos no tempo sem fazer as pessoas se perderem.

Romances?
Sim, e filmes também, há muitos  filmes estruturados dessa forma, então tentei mimetizar isso, mas tratando de informação real.

Que tipo de romances?
Um dos que mais ajudaram foi Tomates Verdes Fritos, que também virou filme. O romance inclui histórias diferentes, uma atual sobre duas mulheres que estão se conhecendo e aprendem a história juntas, e uma história antiga e também.. são três narrativas acontecendo ao mesmo tempo. Isso realmente ajudou muito, e também Love Medicine, de Louise Erdrich, que usa muitos personagens e mudanças no tempo. E As Horas, de Michael Cunningham. E, entre os filmes, o que mais ajudou foi O Furacão, com Denzel Washington. Esse tem uma estrutura quase idêntica a do meu livro.  Quando vi o filme me dei conta de que a estrutura que queria no meu livro era muito similar. Uma das coisas que o filme fez que realmente funcionou foi variar no tempo muito rapidamente. E tomei, ao escrever, o cuidado de fazer os capítulos correrem rapidamente para você não perder o fio da meada de um capítulo para o outro.

Deve ter sido um trabalho e tanto falar de ciência tentando manter o tom literário.
Sim, isso foi algo que sempre achei muito importante. Humanizar a história é o que aprendemos ao contar histórias a crianças, ou a contar aos outros nossas histórias, ou a história de uma nação. Senti que usar o lado humano para contar isso era muito importante. Isso foi algo que quis fazer com esse livro, contar sobre a família de Henrietta e a ciência, sempre mantendo um viés que fosse interessante.

Que parte da pesquisa foi mais trabalhosa, a científica ou a biográfica?
O livro todo foi difícil de diferentes maneiras. Minha experiência com a família… Bem, demorou um ano e meio só para eu convencer Deborah a falar comigo, e ela se alternava entre confiar em mim e não confiar, e tudo isso por que passamos juntas… Foi tão difícil, incrivelmente frustrante em alguns momentos, mas também incrivelmente inspirador.  E muito desafiador.  Sobre a ciência… Bem, as células HeLa estão em todo lugar. E, se você vai a um bancos de dados científicos e digita  HeLa, é como digitar “e” no Google.  Milhares e milhares e milhares de ocorrências. É impressionante, gastei muito tempo para encontrar nisso o que era importante, o que não, o que deveria ser incluído e o que não era inovador. Dava para escrever três ou quatro livros só com as histórias das células. Narrar isso deu muito trabalho. E falar com cientistas, falei com vários para saber o que era importante.

Que descoberta foi mais surpreendente pra você?
Acho honestamente que a história da irmã de Deborah, Elsie, que morreu aos 15 numa instituição mental, na chamada “casa dos criolos doidos”. Quando Deborah e eu estivemos lá, não sabíamos o que encontrar. Eu sabia que ser uma pessoa negra no sul dos Estados Unidos nos anos 50  devia ser muito difícil. Ser uma criança negra numa instituição mental nos anos 50  era impensavelmente horrível.  E as coisas que encontramos e que descobrimos que vinham acontecendo com ela, as pesquisas que vinham fazendo nela, era tão pior que qualquer outra coisa que tivesse acontecido ao resto da família… Eu não esperava isso, mesmo. Foi chocante descobrir que ela também fez parte dessa história. Para mim foi a maior surpresa, mas também toda a história da família. É como uma bola de neve, você lê e, quanto mais sabe sobre eles, descobre uma história mais chocante que a outra.  As crianças eram usadas para estudos científicos sem consentimento, os prontuários médicos eram tornados públicos, tanta coisa era inacreditável que eu costumava brincar que, se eu tivesse escrito uma ficção, ninguém acreditaria, achariam que eu estava forçando a barra.

Você é  descendente de judeus que estiveram em Auschwitz. Isso influenciou no seu interesse por essa história?
Sim. Meus antepassados por parte de pais eram judeus na Europa Oriental que estiveram no Holocausto, e muitos deles morreram. Eu soube disso quando era muito nova, estava no segundo grau, e comecei a ler muito sobre a história dos judeus e do Holocausto e sobre as pesquisas feitas com judeus por nazistas, nos campos de concentração. Sabia tudo dessa história, e isso me tornou interessada na história de pesquisas científicas feitas em pessoas sem o seu consentimento. Acho que meu interesse inicial saiu daí. E houve ainda o meu pai. Quando eu tinha 16, ele ficou muito doente por causa de um vírus que causou danos cerebrais profundos, e ele acabou se envolvendo num estudo de remédios no qual era cobaia. Isso foi com conhecimento dele, mas era parte de um experimento. E eu o levava, ainda adolescente, ao hospital, quatro vezes por semana, enquanto ele tomava esses remédios experimentais, e acho que tudo isso aconteceu na mesma época em que soube das células, e acho que o fato de ter me interessado pelas células e começado a perguntar sobre elas foi parcialmente por causa do meu interesse nas pesquisas com judeus e por eu ser filha de um cobaia. Havia muitas emoções ligadas a isso, então, quando soube das células, minha primeira curiosidade foi: ela tinha filhos? Como eles se sentem em relação a isso? Porque eu era uma garota que vivia a experiência de ter o pai ligado a pesquisas científicas.

Como a comunidade científica reagiu a seu livro?
Eles ficaram muito felizes com as histórias. Muitos deles ficaram chocados, não sabiam nada sobre essa história, conheciam apenas as células HeLa. Todos tinham trabalhado com elas, mas a maioria disse:  “Usei essas células no meu laboratório todos os dias, estudei-as na faculdade, passei boa parte da minha vida científica com elas e nunca parei para pensar de onde elas tinham vindo”. Eles ficaram chocados, e isso fez alguns  pensarem diferente sobre essas células e sobre pesquisas científicas. Eles ficaram felizes em conhecer aquelas histórias, tanto em termos de saber a história quanto por fazê-los pensar sobre pesquisa sem consentimento, especialmente com pessoas negras, e o dilema que isso cria sobre como seguir em frente sabendo disso e como construir confiança das pessoas que vão ao médico e se voluntariam para pesquisas tão importantes. Eles foram muito abertos a isso.

E você acha que as pessoas deveriam ter direitos sobre células ou tecidos removidos de seus organismos? Parando para pensar, não fez nenhum mal para Henrietta o fato de uma amostra de suas células ser retirada.
Sim e não! A história, em certo sentido, é sobre isso. É uma história sobre o que pode acontecer quando as células de alguém são usadas sem consentimento. Sim, fisicamente, não prejudicou Henrietta ter suas células usadas, mas, como você define, “fazer mal” é a questão. Isso não fez mal a ela, mas fez a seus filhos. E, quanto mais sabemos sobre DNA, quanto mais informação temos, quanto mais nos damos conta de quanto há a aprender sobre isso… Não acho que seja meu papel como jornalista dizer o que penso sobre isso, mas tenho falado com muita gente a respeito, em eventos ao longo do último ano, milhares de pessoas. E as respostas que ouço, em geral, é que as pessoas entendem que as pesquisas são importantes, querem que os cientistas as façam, mas não querem que seja feita sem consentimento, querem ser questionadas. Há um estudo recente que olha para as atitudes das pessoas em relação a isso, e os resultados foram que essencialmente 4% das pessoas disseram que, se fossem questionadas por cientistas se suas células ou seus tecidos poderiam ser usados, elas diriam não. Mas, se os cientistas não perguntassem, então o percentual de pessoas que não gostaria de ter seus tecidos usados sobe para quase 80%. Ou seja, 80% das pessoas disseram que não queriam que suas células fossem usadas sem conhecimento, e 4% que não queriam mesmo com consentimento. A diferença é enorme. As pessoas querem saber, e é uma questão de confiança. As pessoas sabem que as pesquisas são importantes e querem participar, mas não querem saber disso só depois de algo ter acontecido com uma parte de seu corpo, especialmente quando essa parte é comercializada e muitas pessoas terão acesso.

O curioso no caso da Henrietta é que o que prejudicou seus filhos não foi o fato de as células serem retiradas, mas o fato de a identidade dela ter sido revelada.
Sim e não, mais uma vez. Você está certa. Se a identidade não fosse revelada… Mas, mais uma vez, depende da definição de prejudicar. Algumas pessoas acham que só de retirar a célula sem a permissão deles é prejudicial a eles. E, no caso dos filhos de Henrietta, cientistas também fizeram pesquisas com o sangue deles sem consentimento, então a história deles é ainda mais complicada. É verdade que o máximo que se faz hoje em dia, em geral, é proteger a identidade da pessoa de quem foram retiradas as células para não prejudicá-la. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que com as atuais pesquisas de DNA você pode olhar a amostra de um anônimo e saber de onde ela vem. Não existe amostra totalmente anônima hoje em dia. É uma questão realmente complicada.

Cientistas ainda não sabem exatamente por que as células de Henrietta não morrem, embora tenham uma ideia, certo?
Sim, sabe-se que ela teve HPV, o vírus que causou o câncer cervical, e que ela teve sífilis, o que pode ter feito as células começarem a crescer mais rapidamente. Esses fatores podem ter causado esse crescimento progressivo das células, mas há alguma coisa a mais sobre as células dela que as faz crescerem como elas crescem. Porque a mesma coisa não aconteceu com células de outras pessoas com HPV e sífilis.

E a história está sendo filmada?

Sim, está sendo transformada em filme por Oprah Winfrey e Alan Ball para a HBO e sou uma consultora de roteiro, assim como membros da família de Henrietta, então eles também estão trabalhando com eles também. Neste momento, eles estão trabalhando com o roteiro.

Bibliotecas pós-terremoto no Japão

Vi no Bibliotecários Sem Fronteira, que encontrou esse link com imagens postadas por usuários.

A eterna presença de Henrietta

Quando falei pro meu editor que queria escrever sobre A Vida Imortal de Henrietta Lacks, que sai agora pela Companhia das Letras, ele perguntou se não era caso de publicar o texto no caderno Vida em vez do Caderno 2. Defendi que não: embora envolva aspectos científicos, o livro é um misto disso com uma detalhada biografia da família da personagem título e um olhar detido sobre questões sociais e raciais no século 20, em especial nos EUA. E, como explica a autora, é todo construído para ser lido como ficção, embora todas as informações ali contidas sejam verdadeiras (aqui é bom esclarecer que o resultado dessa ambição dela é muito bom, porque, não raro, tentativas de escrever não ficção como ficção são temerárias…).

Mais tarde, quando voltar da coletiva do Prêmio Jabuti, publico aqui a íntegra da conversa. Por enquanto, segue o texto que saiu hoje no Caderno 2.

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Livro resgata caso da mulher que, sem saber, deu origem à linhagem celular mais usada em pesquisas científicas

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Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

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Depois de morrer, Henrietta Lacks percorreu o mundo e alterou os rumos da humanidade. Essa poderia ser, de forma bem resumida, a descrição da história real narrada em A Vida Imortal de Henrietta Lacks, livro de estreia de Rebecca Skloot. E, se causa estranheza, isso não chega perto da sensação que o leitor tem ao atravessar as cerca de 450 páginas resultantes de mais de dez anos de pesquisas da jornalista científica norte-americana.

Considerado um dos dez melhores títulos de 2010 por veículos como o New York Times, o Independent e mais algumas dezenas de publicações, a obra que sai agora pela Companhia das Letras destrincha a história por trás das primeiras células humanas mantidas vivas por cientistas fora do organismo, e que assim se mantêm há 60 anos – mais precisamente, as primeiras células imortais da história.

São as chamadas células HeLa (lê-se “rilá”), linhagem celular mais usada em pesquisas no mundo, conhecidíssimas entre pesquisadores da área biológica. O que ocorreu a Rebecca Skloot ainda na adolescência, ao ouvir falar pela primeira vez nessas células, foi um “detalhe” ao qual quase ninguém parecia dar muita atenção: por trás daquele objeto de infindáveis investigações houve uma vida que merecia ser reconhecida.

Essa vida, ouviu Rebecca do professor que lhe contou a história no colégio, foi a de Henrietta Lacks, uma ex-lavradora de tabaco no sul dos EUA, descendente de escravos, que morrera com câncer em 1951. “Naquela mesma época”, conta a autora em entrevista por telefone ao Estado, “meu pai foi infectado por um vírus que lhe causou danos cerebrais e aceitou ser cobaia de uma pesquisa científica. Então, quando eu soube da existência de Henrietta Lacks, minha primeira curiosidade foi: ela teve filhos? Como eles se sentem em relação a tudo isso?”

O que ela descobriu foi que Henrietta nunca soube que haviam retirado uma amostra de suas células enquanto estava internada na enfermaria para “pessoas de cor” do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland – e que, quando sua identidade veio à tona, décadas depois, seus filhos teriam suas vidas invadidas por interesses científicos e jornalísticos.

Câncer. Aos 30 anos, mãe de cinco filhos, Henrietta chegara ao hospital alegando sentir um caroço na altura do útero, uma dor que escondia do marido e das crianças. Os médicos logo identificaram um tumor cervical e, sem pedir permissão, enviaram uma amostra das células cancerígenas a um pesquisador. Meses depois, Henrietta morreu tomada por tumores, embora os exames identificassem o controle da doença. O que ninguém esperava era que essas células, ao contrário de todas as outras usadas antes em pesquisas, eram capazes de se expandir sem limites. Essa inexplicável capacidade de sobreviver e se multiplicar fora do organismo tornou as células famosas no meio científico.

Ao longo das décadas, as células de Henrietta foram enviadas para laboratórios de todo o mundo, usadas em testes nucleares, enviadas para o espaço; tornaram-se fundamentais para as pesquisas mais importantes relacionadas a vacinas, quimioterapia, clonagem, mapeamento de genes, fertilização in vitro. A multiplicação foi tão impressionante que, como escreve Rebecca, “se fosse possível enfileirar todas as células HeLa já cultivadas, elas dariam ao menos três voltas ao redor da Terra, totalizando mais de 100 milhões de metros”.

Os filhos foram localizados décadas depois da morte de Henrietta por cientistas interessados em estudar seu DNA – também sem o consentimento deles, que acreditavam estar apenas passando por exames para descobrir se não tinham o mesmo câncer da mãe – e expostos em reportagens e documentários, além de atrair a atenção de gente interessada em ganhar dinheiro em cima deles. Começaram a acreditar numa espécie de maldição envolvendo as células, que só lhes traziam desgostos.

Rebecca Skloot demorou mais de um ano até convencer Deborah, a filha de Henrietta mais engajada em recuperar a história da mãe, a dar entrevistas. Enquanto isso não acontecia, conversou com o marido e os outros filhos, vasculhou milhares de estudos científicos (“pesquisar sobre as células HeLa em bancos de dados científicos é como fazer uma busca pela palavra “e” no Google”, compara), esmiuçou outros casos de pesquisas feitas sem consentimento dos pacientes e as lacunas da legislação.

Descobriu, entre outras coisas, que uma das filhas de Henrietta morreu internada numa instituição mental para negros, também cobaia involuntária de estudos medicinais. “Era um lugar onde os negros não eram bem tratados, como se pode imaginar de uma instituição assim por volta dos anos 50. Fiquei impressionada com os contornos soturnos disso tudo e entendi porque os filhos tinham tanta reticência em dar entrevistas. Essa história diz muito sobre a situação dos negros norte-americanos no século passado.”

O maior mérito de A Vida Imortal de Henrietta Lacks, para além do exaustivo trabalho investigativo, é tornar humana uma história que, em mãos menos cuidadosas, poderia caber num compêndio científico. “Queria que parecesse ficção, mas com dados reais”, conta a autora, que recorreu a diversos romances e filmes para encontrar o tom certo do texto, uma narrativa que intercala a biografia do Lacks com intrincadas questões sociais e científicas – e que, não à toa, está sendo transformado em filme pela produtora de Oprah Winfrey.

"Conforme tudo o que sabia, o Brasil era um país de merda"

Olha que coincidência. Dias atrás, escritor e jornalista Vitor Diel contou em seu blog, o Bumerangue, que tinha adiado por meses a ideia de postar o trecho a seguir do romance Partículas Elementares (1998), de Michel Houellebecq, porque não queria ferir suscetibilidades de internautas que não conhecessem a obra para contextualizar. Acabou postando no dia 11, uma semana antes de o francês ser anunciado para a Flip.

“Começava a encher o saco dessa estúpida mania pró-Brasil. Por que o Brasil? Conforme tudo o que sabia, o Brasil era um país de merda, povoado por brutos fanáticos por futebol e corridas de automóvel. A violência, a corrupção e a miséria estavam no seu apogeu. Se havia um país detestável, era justamente, e especificamente, o Brasil. Eu poderia ir ao Brasil, em férias. Passearia nas favelas, num microônibus blindado; observaria os pequenos assassinos de oito anos, que sonham em se tornar chefes de bando aos 13 anos; não sentiria medo, protegido pela blindagem; à tarde, iria à praia, entre riquíssimos traficantes de droga e de proxenetas; no meio dessa vida desenfreada, dessa urgência, esqueceria a melancolia do homem ocidental.”

A coluna Babel de 19/3

A uma semana das férias – taí, aqui no blog ainda não falei sobre isso, apesar de atormentar todo mundo no Twitter e no Facebook – me deu vontade de fazer um comentário.

Coisa mais difícil numa coluna semanal de jornal impresso é garantir que as notas tenham como gancho informações que não tenham caído na internet antes da publicação. Ao contrário do que muita gente ainda pensa, não dá para minimizar o impacto da rede, principalmente entre o público que lê jornal impresso, que na teoria é gente com mais acesso à internet.

A parte mais trabalhosa é ir eliminando boas notas que já saíram aqui e ali, e ainda imaginar que essa investigação deve deixar às vezes passar informações publicadas antes, mas não localizadas.

É claro que as fontes mais queridas já sabem que, se caiu na internet, não entra na Babel. Boas notícias já conhecidas de internautas continuam sendo notícia no jornal, é óbvio, mas não para uma coluna que se propõe só notas de exclusivas. Nem que o exclusivo seja um detalhe de algo já comentado. Caso, na coluna abaixo, das notas sobre o Marçal Aquino (a maior curiosidade é o que ele faz após entregar o novo livro) e sobre a aquisição da Dora pela Zarabatana (que é a novidade, embora o mais legal, a chegada da Fierro ao Brasil, já seja conhecido de fãs de HQs, essa gente mais bem informada que você pode imaginar).

Digo tudo isso porque, depois de ver duas boas notas irem água abaixo por repercutirem entre internautas antes (e uma terceira por uma confirmação que não veio a tempo), fiquei especialmente feliz com o texto de abertura desta semana, uma ideia simples, porém interessante, que apareceu aos 45 do segundo tempo.

Idiossincrasias de colunista, vai entender 😉

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[Publicada no Sabático]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br –  O Estado de S.Paulo

ARTES GRÁFICAS
Como eram as guardas dos livros


Neta de José Mindlin (1914-2010), envolvida na digitalização do acervo do bibliófilo, a fotógrafa Lucia Loeb prepara desde o ano passado um livro todo composto por reproduções de guardas – aquelas páginas duplas, coloridas ou não, que colam a capa ao miolo e antecedem as páginas impressas. As guardas surgiram para proteger o corpo do livro da cola usada na capa, como explica em prefácio a encadernadora Thereza Brandão Teixeira, e adquiriram na Idade Média função de ornamentação. Lucia escolheu pela beleza centenas de modelos encontrados no acervo do avô, em edições como a primeira de Os Sertões (1902) e a francesa de 1876 de Os Lusíadas. Com o título Páginas de Cortesia e a própria capa feita com estampa de guarda, o volume deve sair pela Editora do Bispo, sem data definida, com CD de imagens para quem quiser utilizar as texturas. “Por enquanto, está com 140 páginas, mas ainda estou trabalhando no material. Talvez diminua para viabilizar a publicação”, diz Lucia.

JUVENIL
A estreia do Tordesilhas

Prestes a estrear no mercado, o selo Tordesilhas garantiu um título que tem dado o que falar na Alemanha, onde já vendeu 100 mil cópias. Trata-se do juvenil Tschick, sobre dois garotos que atravessam o país num carro roubado. Segundo a crítica alemã, a saga é impactante como a história do autor, Wolfgang Herrndorf. Aos 45 anos, o escritor vem narrando em seu blog (Arbeit und Struktur, em alemão) os dias que lhe restam desde a descoberta de um câncer no cérebro.

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O Tordesilhas será lançado no dia 26 de abril, em megaevento com direito a peças musicais árabes e cerca de 200 convidados na recém-restaurada Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

QUADRINHOS
Made in Argentina

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A Zarabatana prepara para outubro a publicação de Dora (imagem), história de uma garota que busca criminosos de guerra nazistas na Argentina dos anos 60, escrita e ilustrada pelo inovador Ignacio Minaverry. O título será o segundo da Coleção Fierro, que estreia mês que vem com Noturno, de Salvador Sanz.

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Junto com a Coleção Fierro, de histórias longas, a cada seis meses a editora publicará histórias curtas na Fierro Brasil, versão nacional da famosa revista em quadrinhos argentina. A primeira edição desta terá nomes como Danilo Beyruth e Fábio Zimbres.

CIÊNCIA
A alucinação segundo Sacks

Oliver Sacks quer saber o que as alucinações – das distorções mais comuns, como as formas que vemos após esfregar os olhos, às visões decorrentes de drogas ou doenças cerebrais – dizem sobre nosso cérebro. Depois de O Olhar da Mente, o neurologista começou a escrever Hallucinations, que já teve os direitos garantidos pela Companhia das Letras.

LIVRARIAS
Feiras vs. lojas

Uma percepção da Associação Nacional de Livrarias (ANL) que não entrou em levantamento anual divulgado esta semana: o aumento do número de feiras de livros universitárias com descontos “predatórios” (acima de 50%), o que prejudica “acintosamente” os livreiros, segundo Vitor Tavares, tesoureiro da ANL.

CINEMA-1
Conversas com Scorsese

Recém-lançado nos EUA, Conversations with Scorsese, com entrevistas feitas pelo célebre crítico e documentarista Richard Schickel, sai em outubro pela Cosac Naify, que já publicou nesse formato o Conversas com Woody Allen. O livro sobre Woody saiu no fim de 2008 e é um dos grandes sucessos da editora. Está na quarta edição, com mais de 15 mil cópias vendidas.

CINEMA-2
Só mesmo no Brasil

Agosto é o mês limite para Marçal Aquino entregar à Companhia das Letras os originais da novela Como se o Mundo Fosse um Bom Lugar, passada em São Paulo – cenário que o autor retratou pela última vez em O Invasor, romance de 1997 que abre na próxima semana o selo Má Companhia. Logo depois, Marçal inicia, a quatro mãos, o roteiro de um filme que planeja há 15 anos, “um policial que só poderia acontecer no Brasil”.

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Update às 19h40: Tinha esquecido de linkar aqui a participação do Marçal Aquino no Leituras Sabáticas, série mensal do Sabático no portal do Estadão, da qual já participaram os escritores Lygia Fagundes Telles, Milton Hatoum e Manoela Sawitski.


Retrato escrito

O Brian Dettmer, escultor de livros do qual falei aqui faz um tempinho, fez escola.

Para divulgar a Dutch Book Week, que começou anteontem e termina na próxima sexta, a organização holandesa CPNB divulgou uma série de cartazes que mostram obras entalhadas até formarem o rosto de personalidades locais. Uma homenagem à (auto)biografia, tema deste ano.

Considerando só nomes holandeses, não fica difícil descobrir quem são pelo menos dois deles (os outros dois, sinto admitir, eu não reconheceria nem por foto…). A resposta está abaixo do quarto cartaz.

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(Na ordem, Anne Frank, Louis van Gaal, Kader Abdolah e Vincent van Gogh)

O horror segundo Yann Martel

[Publicado no Caderno 2 de 15/3; abaixo, a íntegra da entrevista]

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Foram dez anos desde a última incursão na literatura, com A Vida de Pi, vencedor do Man Booker Prize em 2002 e integrante de algumas listas de romances mais importantes da década segundo críticos de países de língua inglesa. Ao marcar enfim seu retorno com Beatriz & Virgílio, o canadense Yann Martel não perdeu a chance de fazer graça. Seu novo protagonista, Henry, é um escritor que passa por um bloqueio criativo após ter uma ideia de livro rejeitada por editores.

Questionado pelo Estado sobre a demora no lançamento de seu próprio romance, Martel credita a longa pausa a outro motivo: a dificuldade do tema, uma tentativa de reconstruir, de forma alegórica, o horror dos campos de concentração nazistas durante a 2.ª Guerra. “O sucesso de A Vida de Pi me manteve ocupado por uns dois anos. E você não pode escrever sobre o Holocausto sem saber sobre o que está falando. Li muito, vi filmes, documentários, viajei para Polônia e Israel, escrevi e reescrevi muita coisa. Não é fácil tomar um evento monstruoso como esse e tentar descrevê-lo de forma diferente”, argumenta.

A tal forma diferente é justamente a proposta com a qual Henry, seu personagem, não consegue convencer editores – um misto de um romance protagonizado por animais e textos ensaísticos sobre o genocídio, no qual um e outros se confundem. Na trama, durante o bloqueio criativo (período no qual arruma um emprego como garçom), Henry conhece um taxidermista que, no intervalo entre o seu trabalho de empalhar animais, encontra tempo para escrever (há algumas décadas) uma peça protagonizada por uma mula, Beatriz, e um macaco, Virgílio. Quando se dá conta, o escritor está imerso na história com a qual não queria se envolver – e que passa a tomar proporções inesperadas.

“Existem muitos relatos factuais do que aconteceu com os judeus da Europa nas mãos dos nazistas e seus muitos colaboradores”, afirma o escritor, destacando os testemunhos de Elie Wiesel e Primo Levi como essenciais, “mas não podemos simplesmente parar nisso, no relato com base nos fatos. Minha hipótese artística é a de que só podemos compreender verdadeiramente um evento quando podemos aplicar metáforas a ele.”

A volta ao universo animal, central também em A Vida de Pi, ele explica, decorre da percepção da riqueza de significados que proporciona. “Poucos autores de ficção adulta recorrem a animais. O resultado não é só uma ausência cada vez maior de animais no nosso mundo real, mas também imaginário. Só autores da literatura infantil fazer muito uso de animais. É uma pena. Eu não sei o que há de infantil sobre um tigre ou um elefante.”

BEATRIZ & VIRGÍLIO
Autor: Yann Martel
Tradução: Maria Helena Rouanet
Editora: Nova Fronteira
(200 páginas, R$ 34,90)

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Foto Geoff Howe/Divulgação

Como pergunta um livreiro ao personagem principal de Beatriz e Virgílio: sobre o que é o seu livro? (no livro, o personagem não consegue resumir o misto de romance e ensaio que apresenta a editores e livreiros) É um romance sobre um escritor com bloqueio criativo que encontra um taxidermista que escreve uma peça? É um ensaio sobre o Holocausto?
Beatriz e Virgílio é minha tentativa de dar um testemunho do Holocausto, mas não de forma direta e factual. Existem muitos relatos factuais sobre o que aconteceu com os judeus da Europa nas mãos dos nazistas e seus muitos colaboradores. Esses textos, como os de Elie Wiesel e Primo Levi, para dar apenas dois exemplos bem conhecidos de sobreviventes que descreveram suas histórias, são essenciais; só podemos processar o que foi aquele evento depois de sabermos o que aconteceu. Mas não podemos parar apenas nisso, no relato com base em fatos. Minha hipótese artística é a de que só podemos compreender plenamente um evento quando podemos aplicar metáforas a ele, uma vez que podemos “trabalhar” com ele em nossas mentes, pois aplicar metáforas implica compreender o objeto da metáfora. Se isso é uma compreensão verdadeira (na comparação com a de um sobrevivente, por exemplo) é uma outra questão. Assim, para responder sua pergunta, meu romance é uma tentativa de responder ao Holocausto de forma alegórica e metafórica. A vantagem disso é que uma metáfora é mais fácil de entender que o acontecimento histórico que lhe deu origem.

E escrever sobre o Holocausto de forma alegórica fez você compreender algo de novo sobre o genocídio?
Não especialmente. Genocídio não é uma coisa sutil. É um evento tão grosseiro e brutal quanto possível. Um genocídio é o assassinato em massa de um grupo de pessoas, porque elas compartilham uma característica que um outro grupo odeia. Se essa característica é ser judeu, Tutsi, negro, indígena, mulher, gay e assim por diante, o processo de desumanização total é o mesmo. Além de compreender os detalhes processuais – o que, como e onde -, não há muito mais a “entender”. Minha preocupação era outra, não tanto entender, mas expressar, representar. Acredito que a realidade histórica do Holocausto foi exaustivamente explorada e, de modo geral, bem entendida. O que falta é variedade nas formas como é representada. O Holocausto é predominantemente representado em termos não-ficcional, por meio da memória do sobrevivente ou do historiador, com raro uso da metáfora como recurso artístico. Isso significa que perdemos tudo o que a metáfora pode oferecer.

Por que optou por usar animais mais uma vez como elementos centrais da história?
Usei animais em A Vida de Pi e Beatriz e Virgílio (e vou usá-los novamente no meu próximo romance), porque em cada caso esse uso se mostrou o artifício literário que melhor funcionou. Um animal pode tanto ser o que ele é – um tigre, um macaco, um rinoceronte, o que quer que seja – quanto um símbolo ou uma metáfora. Essa riqueza de significados em potencial é muito útil para um escritor, ou pelo menos para mim. Poucos escritores de ficção adulta usam animais de forma interessante e variada. Acho que essa pobreza é o resultado de uma crescente urbanização e da diminuição do contato da maioria dos habitantes da cidade com o mundo natural. O resultado não é somente a ausência cada vez maior de animais no nosso mundo natural, mas também no nosso mundo imaginário. Só escritores da literatura infantil fazem uso de animais. É uma pena. Não sei o que há de infantil sobre um tigre ou um elefante. Esse é outro motivo para eu usar animais, além de sua eficácia como elementos literários: tenho a sensação de trabalhar em um campo completamente deserto.

Por que incluiu tantos paralelos com sua própria vida no livro (como o personagem, por exemplo, o escritor ficou muitos anos sem lançar um livro depois de um sucesso de crítica e vendas)?
Porque funcionavam na ficção. Se eu colocar no meu romance que meu personagem Henry luta com seus editores, por exemplo, não significa que tenha acontecido comigo de alguma forma, mas a ideia de um escritor que para de escrever, que cai em silêncio, pareceu-me o ponto de partida ideal para um romance sobre o Holocausto, porque essa é a reação comum da maioria das pessoas em relação a esse terrível acontecimento, tanto sobreviventes como gente que não viveu aquilo, cair em silêncio, um silêncio de respeito, luto, vergonha, incompreensão. Também queria envolver o narrador na história, porque é assim que vivemos a História: esta não é uma história externa que contamos, como se fôssemos escritores invisíveis. A História é um diálogo. A maneira como podemos ver o passado afetar a forma como vivemos o presente e o que faremos no futuro. Um diálogo. Por isso quis um escritor no meu romance, o que lhe dá aparência de autobiografia. É só aparência. Beatriz e Virgílio é um romance, isto é, uma invenção de fatos para chegar a uma verdade moral.

No romance, Henry não entende a ideia do taxidermista criar uma história em que os personagens não evoluem nada com o que veem ou fazem. Você acha que as coisas funcionam assim na vida?
Henry aponta que uma história convencional envolve uma mudança nos personagens ao longo da narrativa. Uma descoberta, um momento de iluminação, um rito de passagem, algo que faz a personagem aprender e mudar e, por extensão, o leitor também aprender e mudar. Mas os nazistas permaneceram roboticamente com tanto ódio dos judeus no final do Terceiro Reich como estavam no início. Eles odiavam sem conhecer suas vítimas. Se um judeu era rico ou pobre, urbano ou rural, educado ou não etc., era irrelevante para alguém da SS. Tudo o que importava para ele era que o cidadão diante dele era judeu. Não houve mudança de caráter lá. E o mesmo para as vítimas judias; sua personalidade era completamente irrelevante para o que os vitimava. Anne Frank, por exemplo, ter sido uma adolescente brilhante, linda, vivaz não teve qualquer influência sobre por que foi vítima dos nazistas. Ela foi apanhada porque ela era judia, e não por outro motivo. Poderia ter sido bobo, feio e sem graça, ela ainda não teria merecido o seu destino terrível. Portanto, não há evolução de personagem porque o personagem era irrelevante. Para responder à sua pergunta, então: na arte, podemos mudar, mas na vida não raro não o fazemos.

Por que levou tanto tempo para escrever um livro depois de A Vida de Pi?
O sucesso de A Vida de Pi me manteve ocupado por cerca de dois anos. E você não pode escrever sobre o Holocausto sem saber sobre o que está falando. Li muito, vi documentários e filmes, viajei para a Polônia e Israel, pensei, escrevi e reescrevi muita coisa. Isso levou tempo. Não é fácil tomar um evento monstruoso como o Holocausto e tentar fazer algo diferente de descrevê-lo. E tenho um filho de 19 meses de idade. Quero gastar tempo com ele. Por último, há esse projeto maluco que fiz durante quatro anos, quando enviei ao primeiro ministro do Canadá um livro a cada duas semanas com uma carta descrevendo como poderia se beneficiar da leitura. Isso também tomou parte do meu tempo. Mas o próximo livro vai demorar menos. Está muito claro na minha cabeça e eu o quero para logo.

Como foi essa história com o ministro do Canadá?
Stephen Harper, o primeiro-ministro canadense, é um homem um pouco duro, de mente rígida. O tipo de político ideológico que normalmente se vê mais nos EUA. Não há evidências de que ele tenha lido um romance, um poema ou qualquer coisa literárias de qualquer espécie desde que deixou a escola. Durante as eleições de 2004, ele disse que seu livro favorito era o Guinness Book, uma resposta que eu esperaria de um garoto de 15 anos, não do homem prestes a conduzir os assuntos da minha nação. Então, mandei-lhe bons livros de todos os tipos a cada duas semanas durante quatro anos, sempre com uma carta. Meu objetivo era mostrar a ele que a literatura não é só entretenimento, mas uma ferramenta incrível para conhecer as pessoas, o mundo, a vida. Você não pode ser o pensador intuitivo que aspira liderar um país sem ter imaginação. O papel de um político não é apenas administrar mas também sonhar, dizer: “Tenho um sonho em relação à direção em que quero liderar esta nação”. E como você pode sonhar grandes sonhos sem ler livros? Eu não me importo se as pessoas comuns leem, mas me preocupo com os hábitos de leitura de alguém que tem poder, porque os seus sonhos podem se tornar meus pesadelos.

Você tinha medo de críticas sobre o novo livro, depois de lançar um tão bem sucedido?
Não. As expectativas dos críticos e dos leitores nunca foi uma preocupação minha. Se tivesse sido, eu não teria escrito um livro sobre o Holocausto. A arte é um dom. O artista dá. O que aqueles que recebem esse dom fazem com ele, se o colocam em um pedestal ou o jogam na sarjeta, é preocupação deles, e não dos artistas. Depois da A Vida de Pi, fechei a porta a todo o barulho que tinha gerado e voltei para o trabalho calmo, solitário, de escrever uma outra história.

Como você recebeu as críticas sobre Beatriz e Virgílio (ao contrário do anterior, o novo romance recebeu muitas críticas negativas na imprensa dos países de língua inglesa)?

Geralmente ignoro opiniões, positivas e negativas. Há apenas tantas vezes você pode ler sobre o seu próprio livro antes de ficar entediado. Mas eu estou ciente da tendência geral das análises. Foi interessante para mim como os críticos estavam divididos sobre Beatrice e Virgílio. Alguns odiava ele, alguns adoraram. Não é surpreendente, eu imagino, já que o Holocausto é, curiosamente, um tema controverso. Eu teria pensado que um massacre de tantos inocentes seria uma afronta, uma afronta unânime, mas não uma controvérsia, se você receber a distinção. Foi estranho ler os críticos, a partir do New York Times, por exemplo, dizem, em resumo, que as ferramentas da literatura – metáfora, alegoria, simbolismo – foram adequados para cada tópico, exceto o Holocausto. Em outras palavras, eles estavam rejeitando as ferramentas do seu ofício. Para mim, nada está fora do alcance da metáfora desde uma metáfora jamais visa substituir uma realidade, apenas para apontar para lá.

Como foram suas conversas com o Moacyr Scliar depois do episódio em que você foi acusado de plagiá-lo?
Falei com Moacyr Scliar uma ou duas vezes, no auge do escândalo absurdo de plágio. Você não pode plagiar um livro que você não leu. Li Max e os Felinos muito tempo depois de escrever e de publicar A Vida de Pi. O que tinha lido antes de escrever foi apenas uma resenha do livro, e um dos eventos descritos nela, o de um homem preso num bote salva-vidas com uma pantera (no livro de Martel, um adolescente divide o espaço com um tigre e outros bichos), me surpreendeu. Então, houve a influência, o que tive prazer em reconhecer na Nota do Autor no meu romance, mas não plágio. De qualquer forma, tenho a impressão de que Scliar era de um homem gentil e generoso, dono de uma imaginação brilhante. Fiquei triste ao saber que morreu.

Falando em animais … Li uma entrevista em que você diz que seu próximo romance terá três chimpanzés e se passará em Portugal. É verdade?

Chimpanzés e rinocerontes, na verdade. E personagens humanos. Quero olhar o papel dos grandes mestres em nossas vidas. Como podemos manter viva a sabedoria de um mestre depois que o mestre se vai? Seja esse mestre Jesus, Buda ou seu professor de história nota 10, como podemos evitar que a sabedoria de torne um dogma obsoleto? Quero olhar para essa questão sob o prisma de três chimpanzés, um vivo, um morto, uma escultura e uma manada de rinocerontes. Se isso soa implausível, assim soava A Vida de Pi.

Ao encontro da identidade

Saiu hoje no Caderno 2 meu texto sobre Diário da Queda, quinto romance de Michel Laub. Achei o livro tão bom que fiquei com pena de, contra o relógio, no fechamento, não ter conseguido escrever algo que fizesse jus ao romance, ao menos como eu gostaria. Publico abaixo, para constar, mas para quem quiser ter uma ideia melhor recomendo a leitura do primeiro capítulo, que o Laub postou no blog dele.

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Foto Renato Parada/Divulgação

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Na quinta incursão em romance, Michel Laub volta o olhar para o judaísmo

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Aos 13 anos, um garoto judeu participa de uma brincadeira que deixa um colega gói (sem origem judaica) machucado e humilhado em sua própria festa de aniversário. Mais ou menos na mesma época, toma conhecimento de detalhes cruciais sobre a história do avô, que chegou ao Brasil após sobreviver ao Holocausto.

“Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz, e por afetar quero dizer sentir intensamente, como algo palpável e presente”, pondera, passadas algumas décadas, o narrador desses acontecimentos, “eu não hesitaria em dar a resposta.”

O cenário a partir do qual se desenrola o romance Diário da Queda permite entrever os temas delicados sobre os quais o autor gaúcho Michel Laub discorrerá nas quase 150 páginas seguintes – um tratamento ficcional, como explica, “no limite do questionamento ético que a ficção pode e muitas vezes deve fazer”. O narrador é um escritor de 40 anos, casado pela terceira vez, na iminência de ver o relacionamento seguir o mesmo caminho dos anteriores e que, entre recordações sobre o avô, o pai e aquele colega que ajudou a humilhar, tenta unir as pontas da própria identidade.

Em sua quinta incursão nas narrativas longas, Laub aborda pela primeira vez a temática judaica. “Até uns anos atrás, achava que nunca escreveria sobre isso. Na minha vida pessoal, esse é um tema muito pouco presente. Em algum ponto devo ter percebido que, mesmo sem aparecer na superfície, era algo essencial”, diz o filho de judeus, nascido e criado na mesma Porto Alegre de seu protagonista, e ex-jornalista assim como ele – as coincidências com seus personagens, diz, já viraram costume, uma aproximação capaz de causar no leitor a sensação de que tudo na ficção pode ter um fundo de verdade.

O narrador apresenta seu universo numa espécie de fluxo de memórias, em pequenas notas numeradas e aparentemente aleatórias, que vão e voltam no tempo, espalhadas por partes que recebem títulos como Algumas Coisas Que Sei Sobre o Meu Avô e Algumas Coisas Que Sei Sobre Mim.

O leitor logo fica sabendo que o avô, ao desembarcar no Brasil, começou a escrever uma estranha enciclopédia, ou algo que o valha, que mais parece se referir ao mundo como ele deveria ser do que ao mundo como ele é – e na qual, portanto, não se encontrará nenhuma referência aos tempos do Holocausto. No passado, ao mesmo tempo em que toma conhecimento dessas anotações, o narrador se aproxima de João, o colega ferido. A essas duas memórias se une a descoberta, esta já no presente, de que o pai sofre de mal de Alzheimer – e cabe ao narrador dar essa notícia a ele.

Memória. O interesse de Michel Laub pelo tema da memória se manifesta em toda a sua obra, com semelhanças como o narrador único, em primeira pessoa, que relaciona fatos de um passado relativamente distante com o presente, seja uma relação entre irmãos, caso de O Segundo Tempo (2006, finalista dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti), seja um casamento, caso de O Gato Diz Adeus (2009). Em Diário da Queda, o escritor se deu conta de que tinha em mãos duas manifestações muito contundentes dessa característica.

“Em algum momento, percebi que não há assuntos mais ligados ao tema que os deste romance: a doença de Alzheimer, que encerra em si a questão da memória individual, biológica, e o Holocausto, que é uma espécie de símbolo da questão da memória histórica, coletiva”, avalia Laub, que aborda também, como nos livros anteriores, a manipulação possível nas recordações: “Se eu falar hoje com qualquer dos colegas envolvidos na queda de João, é possível que nenhum deles lembre dos detalhes da festa, dos motivos que nos levaram a planejar aquilo, que nenhum deles faça relação entre o desfecho do plano e o fato de João não ser judeu, porque as conveniências sociais (…) e a autoimagem que cada um construiu ao longo dos anos posteriores criaram os mecanismos de defesa que impedem a memória de registrar algo do gênero”, analisa, implacável, o narrador.

DIÁRIO DA QUEDA
Autor: Michel Laub
Editora: Companhia das Letras (152 páginas, R$ 38,50)

A coluna Babel de 12/3

[publicado no Sabático]

Raquel Cozer, raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

PERFIS
Menos conhecido, Thomas Mann ensaísta sai no País

Um lado pouco conhecido do romancista Thomas Mann (1875-1955) entre brasileiros, o de ensaísta, virá à tona em agosto com Perfis de Escritores, seleção de 12 textos do alemão sobre autores como Tolstoi, Zola, Heine e Ibsen. Vertidos por Kristina Michahelles e apresentados por Johannes Kretschmer, do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da Uerj, os textos começaram a ser selecionados nos anos 80 por Jorge Zahar (1920-1998), trabalho agora finalizado pela neta, Clarice. O fundador da Zahar pretendia lançar em português vários volumes de uma extensa e inédita produção ensaística do alemão, mas engavetou a ideia quando, em 1988, a Perspectiva publicou Ensaios, com textos selecionados anos antes por Anatol Rosenfeld. “Zahar fez uma seleção bem mais ampla do que a que sai agora. A editora publicou em 2009 os discursos de Mann contra Hitler (Ouvintes Alemães!), que integrava essa seleção, e há interesse em lançar mais volumes”, diz Krestchmer. Curiosidade: nem na Alemanha, onde há anos os maiores especialistas do mundo trabalham em projeto monumental de edição crítica da obra de Mann, a totalidade dos ensaios foi publicada.

ENCICLOPÉDIA
Cultura em tomos

Com chegada ao País marcada para segunda (14) no Museu da Língua Portuguesa, em SP, a editora lusa Babel iniciou os trabalhos para ambicioso mapeamento. Está selecionando especialistas para sua Enciclopédia da Cultura Brasileira, em vários volumes. Será “a melhor do gênero”, diz o presidente do grupo, Paulo Teixeira Pinto. Algo nos moldes da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, que teve 20 tomos de 1963 a 1995 pela Verbo, atual selo da editora.

INFANTIL-1
Temporada de pinguins

Clássico da literatura infantil em língua inglesa, Os Pinguins do Sr. Popper, de 1938, terá sua primeira tradução no Brasil em junho, pela Intrínseca. A premiada obra de Richard e Florence Atwater chega com as ilustrações originais, de Robert Lawson, a tempo de as crianças conhecerem o livro antes do filme. A primeira adaptação para o cinema está prevista para agosto, com Jim Carrey no papel central.

Mr. Popper no traço de Robert Lawson, em ilustração de 1938...

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...e no filme com Jim Carrey, que estreia em agosto

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INFANTIL-2
Em tempos de bullying

Destaque do catálogo da 48.ª Feira do Livro de Bologna, maior evento mundial de literatura infantil, de 28 a 31/3, O Menino Grisalho abre coleção que Fabrício Carpinejar planeja “infinita”. Meninos e Meninas abordará crianças que sofrem pela diferença, caso de A Menina Superdotada, previsto para maio; O Menino Vegetariano, cujo pai, gaúcho, pensa que é doença; e O Menino Tímido, que deixa o cabelo crescer até sumir.

VIAGEM
Diário de uma pesquisa

Após a elogiada estreia em romance com A Passagem Tensa dos Corpos (Companhia das Letras), finalista do Prêmio Portugal Telecom, Carlos de Brito e Mello empreendeu projeto antigo: foi à Ásia terminar a pesquisa para A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários, romance sobre a relação dos homens com as crenças e entre si. Parece tese, diz Melo, mas “o literário fica em primeiro plano”. Um diário informal está acessível no endereço teviu.posterous.com.

FILOSOFIA
Heidegger e as mulheres

As rígidas recomendações deixadas por Martin Heidegger (1889-1976) para traduções de sua obra – nada de notas de rodapé nem textos de terceiros, por exemplo – tornam a aquisição de direitos de seus títulos um desafio. A Tinta Negra superou essa etapa após um ano de negociações com o filho do filósofo, Hermann. Was Heisst Denken? ganha versão brasileira em 2012, por Edgar Lyra. O título provisório é O Que É o Pensar?

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Ainda este ano, a editora publica Heidegger: O Nazismo, as Mulheres, a Filosofia, no qual os franceses Alain Badiou e Barbara Cassin discutem polêmicas em torno do alemão.

TRADUÇÃO
Mercado à vista

Do tradutor John O”Kuinghttons, que vem vertendo para a chilena Tajamar obras de Rubem Fonseca: “Está começando no Chile um movimento por traduções feitas para o país, em vez de compradas da Espanha”. As novas versões, que respeitam especificidades do espanhol local, renovaram o interesse da crítica local na obra do brasileiro.

Colaborou Ubiratan Brasil

Passagens do próximo livro de Paulo Lins

Desde que o Samba é Samba, romance que Paulo Lins lança no próximo semestre pela Planeta, passa-se num período entre 1928 e 1931, fala sobre a criação da primeira escola de samba carioca, a Deixa Falar, e tem como personagens nomes como Ismael Silva e Bide. Veja, a seguir, duas passagens do romance, que ainda passa por revisão.

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O bar do Apolo estava lotado. Roda de samba batida na palma da mão, ao som de um violão e pandeiro. Aloysio chegou devagar, ficou num canto amuado, pediu um café, acendeu um cigarro de palha e se pôs a escutar os sambas. Teve uma roda de pernada, sentiu vontade de entrar, mas preferiu ficar na dele. Bide se aproximou.

– Por que tu não foi na Curimba ontem? Todo mundo lá tava perguntando por você.

Respondeu que acabou dormindo. Não iria dizer que não foi para não encontrar Laurinda. A separação estava muito recente, ela poderia perder a linha e partir pra cima de Ivete. Também não queria contato de Ivete com a rapaziada. Mulher é mulher. Amigo é amigo. Bar é bar. Também nada de intimidade de atual com ex, pois intimidade gera atrito. Atrito gera puxão de cabelo, corte de lâmina e apertão de pescoço. Nessa coisa de amor tudo é falso.

O samba comia solto, Aloysio foi se soltando, ameaçou uns passos quando Alma Branca cantou “Me faz carinhos”. Acompanhava batendo no balcão mas não conseguia se soltar completamente para também cantar uma de suas composições. No entanto, vinham-lhe à mente versos novos inspirados nos sambas que ouvia. Pegou um lápis e escreveu alguma coisa. Guardou o papel no bolso. Dois minutos depois escreveu mais um verso e foi assim até a roda de samba acabar. Se soubesse que Laurinda não estaria lá e que havia essa roda de samba imensa, com várias famílias participando, cheia de crianças, buscaria Ivete, isso se a infeliz não tivesse levantado a voz para ele. Quase foi buscá-la, mas tinha que ser forte, pois se der um pouquinho de asa pra mulher, querem voar igual gavião.

A noite foi tomando conta do pedaço. A maioria do pessoal foi embora, só ficaram os amigos de sempre em conversas costumeiras. Beberam duas garrafas de paraty, o sambista passou do café para o refresco de groselha. Baiaco quase não falava, interrompia a conversa bruscamente cantando fragmentos de um samba novo. Aloysio esperava uma oportunidade de lhe chamar no canto, falar sério com ele sobre a parceria que queria fazer, porém o amigo estava um tanto alto com a bebida, assim como os demais. Alma Branca não parava de cantar samba atrás de samba. Desistiu. Esse negócio de ficar sem beber perto de quem bebe dá nisso: o pessoal fica rindo à toa, sem falar coisa com coisa e você ali batendo, fora do compasso. Tentava se portar naturalmente, participar das brincadeiras, mas o pensamento na briga com Ivete tirava-lhe a naturalidade…

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– É por causa das palhaçadas, da cabeça-dura, da burrice de certas pessoas que Deus e os santos ficam donos de nossas vidas na Terra, no Céu e no Purgatório. Tudo isso pra gente ter força, correria, juízo, inteligência, respeito próprio e peito aberto pra ganhar a vida… Pra ser normal, ser feliz com os filhos, os netos e os bisnetos na hora da morte por velhice. Essa é a morte de gente séria! E, pra isso, é só levar a vida certa, ter força pra trabalhar, se instruir… Sempre em frente. Pra ter luz, sorte, redenção dos deuses… Senão, a gente fica parado na vida que nem Ernesto e Valdemar. Parados na vida de ficar metidos com sinuca, bebida, jogo de chapinha, de roda de capoeira e tudo mais que não presta. Não tomam prumo de vivência por causa desse troço de samba e de mulheres de vida fácil na zona do baixo meretrício. Valdemar passa anos sem entrar numa igreja pra rezar um Pai-Nosso, uma Ave-Maria ou um Credo. Na macumba, só vai no dia de Exu pra pedir, a Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas, proteção na rua, harmonia com as negas e segurança no lar. Besteira… Eu é que não passo um domingo sequer sem igreja e uma quarta sem macumba, porque se Deus não der ouvidos, Oxalá escuta…

Retorno com pés no chão

[publicado no Sabático de 12/3]

Quase uma década e meia depois da estreia com o fenômeno Cidade de Deus, e após superar um duro bloqueio criativo, o carioca Paulo Lins finaliza o seu segundo livro, Desde Que o Samba É Samba

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Paulo Lins no escritório do apartamento em que vive há pouco mais de um ano na Pompeia, em São Paulo. A altura da tela do computador tem justificativa ergonômica - o autor sofre de problema na coluna (Foto Ernesto Rodrigues/AE)

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Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Paulo Lins puxa uma revista do meio de uma pilha na estante e abre, sem nem precisar folhear, na página exata. “É verdade… Eu era muito diferente”, diz, achando graça, ao rever a foto dele mesmo, meio magrelo, na edição amarelada de 1997, ano em que alvoroçou o mundo literário com seu romance de estreia, Cidade de Deus. Tinha então 39 anos – e pensar no tempo que isso faz o assusta. Ao longo de 14 anos, o autor viu o livro vender mais de 100 mil cópias no Brasil, virar um dos filmes nacionais mais bem-sucedidos no globo e sair em mais de 20 países – a conta ele perdeu, embora mantenha na estante traduções como a holandesa e a sueca e saiba que Estônia e Coreia do Sul estão na fila. Também deixou para trás a vida de professor, iniciou carreira de roteirista em produções como Cidade dos Homens e percorreu o mundo falando sobre o livro e o Brasil. Faltou conhecer o Oriente, resume, após desistir mais uma vez de contabilizar localidades.

E faltou um segundo romance. Cidade de Deus ganhou edição de bolso, retrabalhada e bem mais enxuta, em 2002, o ano do filme de Fernando Meirelles, mas depois não se viu nas livrarias outro título de Paulo Lins. Na época, ele falava sobre uma ficção iniciada para a Companhia das Letras, uma trama centrada num manicômio penitenciário e que tinha até título, O Plano de Marlon. Até que, em 2004, numa fase de grandes contratações, a Planeta apareceu com uma proposta irrecusável. “Ele chegou arrasado à minha sala. Disse que estava em situação difícil, que precisava aceitar”, lembra Luiz Schwarcz, o primeiro editor, que deu a bênção para o autor pródigo deixar a casa. “Falei: “Paulo, quero o teu bem. Vai lá”.” Paulo foi. E teve um enorme bloqueio criativo.

“Foi um bloqueio, uma parada, foi tudo de ruim”, recorda o ficcionista ao receber com exclusividade o Sabático no apartamento em que vive há cerca de um ano, na Pompeia, em São Paulo. “Cidade de Deus fez muito sucesso e fiquei com medo de escrever outro romance. Me deu um “nossa!”, sabe?. Todo mundo perguntava, ex-mulher perguntava, até aeromoça perguntava: “E o livro novo?” Teve uma hora que eu queria esquecer que tinha de fazer esse romance. Não queria esse peso nas costas.”

Aos 52 anos, pai três vezes e solteiro de novo (“Não repito mãe pros meus filhos”, graceja), o escritor mudou para a capital paulista para ficar perto do caçula, João, de 5 anos, que deixou o Rio com a mãe após a separação. Foi no pequeno aposento, quase nada mobiliado e com brinquedos cá e lá pelo chão, que encerrou a gestação lenta e sofrida de seu segundo romance. Desde que o Samba É Samba, feito, desfeito e refeito na última década, foi concluído em meados do último ano, aprovado pela editora e passa agora por minuciosa revisão. Paulo Lins, otimista (e feliz com a infinita paciência da casa que o acolheu), imagina que possa sair este semestre. Por via das dúvidas, a diretora editorial Soraia Luana Reis pôs para a segunda metade do ano no cronograma da Planeta.

A nova narrativa se passa entre os anos de 1928 e 1931, época em que surgia no cenário carioca a primeira escola de samba da cidade, a Deixa Falar. Um período em que portar pandeiro na rua podia até dar cadeia, narrado do ponto de vista de um malandro chamado Zé, frequentador da turma de Ismael Silva e da célebre Casa da Tia Ciata. Assim como Cidade de Deus, cuja história se passa no bairro em que o autor morou dos 7 aos 23 anos, Desde que o Samba É Samba transcorre em boa parte num reduto que lhe é caro – Estácio, berço do samba e do escritor, que ali viveu antes de mudar para o cenário do primeiro romance.

Mas Estácio não era um bairro entranhado na vida dele como Cidade de Deus. O romance de estreia demandou muita pesquisa oral e alguma histórica; para o novo, foi preciso inverter a lógica. A pilha de livros sobre a mesa de trabalho denuncia: Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão, Nei Lopes, todas as referências continuam ao lado do computador, à espera dos textos que voltam da revisão. O romance inclui temas pouco conhecidos, como a ação da máfia de cafetões judeus Zwi Migdal na Zona do Mangue carioca, e tabus, caso da homossexualidade de Ismael Silva – “Leve-me, lave-me, love-me”, diz a certa altura o pai da Deixa Falar a um marmanjo, numa paquera imaginada pelo autor.

Poesia. Lins fala como os textos que escreve, intercalando histórias, detalhes e personagens, abrindo capítulos antes de retomar o tema. Questionado sobre a origem do novo livro, volta à infância, menciona o sonho de ser músico e a amizade com Marcelo Yuka, que rendeu versos noites adentro (e daí puxa um guardanapo com a letra de um samba em parceria, recém-encontrado dentro de um livro), retorna ao tempo em que cursava letras na UFRJ e ao livro de poesias do qual sente certa vergonha (Sobre o Sol, 1986), e de tudo isso se conclui que era uma ideia antiga e ponto final.

Naqueles tempos, na faculdade, favela não era assunto que interessasse muito. Nem a ele, que morava numa delas, nem à literatura, ao cinema ou à TV. “Foi a universidade que começou a olhar para o morro”, avalia. Ele mesmo teve esse empurrãozinho. Integrante de uma geração pós-marginal, fã dos concretos, de linguística e de metalinguagem, só parou para pensar na vida ao redor quando a pesquisadora Alba Zaluar o convidou a participar de um estudo sobre a criminalidade na Cidade de Deus.

Foi daí que conheceu o crítico Roberto Schwarz, colega de Zaluar na Unicamp, entusiasta de primeira hora e hoje amigo. “Quando um autor encontra a forma adequada de inserir um universo novo na literatura, é um acontecimento. Ele não só trouxe à literatura um assunto novo como descobriu um jeito original de tratá-lo de dentro para fora”, diz Schwarz, que leu trechos de Desde Que o Samba É Samba e se anima com a informação de que o romance está enfim para sair: “Não me diga, mas que maravilha”.

Gírias. Ainda morando no Rio, Paulo Lins foi tanto ao Estácio fazer pesquisas para o novo livro que um bloco local, o Muvuca de São Carlos, fez do autor enredo neste carnaval. A convivência não supriu a busca por expressões de época que pudessem ser agregadas à ficção. Mesmo depoimentos de sambistas ao Museu da Imagem e do Som eram fontes limitadas, já que os entrevistados evitavam gírias. A solução foi recorrer com mais ênfase a um expediente usado em Cidade de Deus: inventar palavras. “É uma das coisas de que mais gosto. Tenho esse direito”, diz, e abre um arquivo em Word. “Por exemplo, bolodochia. “Tem uns babacas que são assim, cheios de bolodochia”. Ninguém fala isso, né?”

Está certo que o direito de inventar palavras quase levou o primeiro romance a não sair no mercado de língua inglesa. As dificuldades que o texto impunha à tradução fadou as duas primeiras tentativas ao fracasso. O projeto ficou na gaveta até 2004, quando caiu nas mãos da australiana radicada em Santos Alison Entrekin, que penou por dois anos. As barreiras eram acima de tudo culturais, já que “os países de língua inglesa conhecem a pobreza com outras feições”, mas as linguísticas também causaram sufoco – caso de um simples “trampar”, que tomou dias até a tradutora decifrar que a palavra era usada no sentido de vender, e não de trabalhar.

A demora na publicação nos EUA e na Inglaterra fez com que Cidade de Deus, o livro, chamasse menos atenção naqueles países do que em outros nos quais saiu no embalo do filme. Não foi grande perda para o escritor, que tem participação nos lucros do longa – uma cláusula no contrato estipulada pela Companhia das Letras e que, na época, fez o iniciante e nada otimista Fernando Meirelles especular: “Ok, a gente coloca essa cláusula, mas acho que não vai render nada…”.

Elizabeth Bishop de volta às livrarias

Na semana passada, antes de dar na Babel a nota sobre o simpósio a respeito de Elizabeth Bishop (1911-1979), previsto para novembro, em Ouro Preto, liguei na Companhia das Letras para saber se a editora tinha intenção de lançar ou reeditar alguma obra dela. É que em fevereiro, quando se completaram 100 anos do nascimento da poeta americana, não havia nenhum livro dela à venda nas livrarias do Brasil, onde ela viveu por mais de uma década.

A resposta veio nesta semana: a editora diz que publicará dois títulos, Poems (em edição bilíngue) e Prose, ambos lançados no mês passado em paperback  nos EUA e ainda sem data por aqui. Além disso, a Companhia reimprimirá Uma Arte – Cartas de E.Bishop, publicado em 1995, com tradução de Paulo Henriques Britto, e que tinha sido retirado do catálogo.

A Leya do Brasil já anunciou faz algum tempo a publicação do romance The More I Owe You, de Michael Sledge, que tem como base o relacionamento de Bishop com a brasileira Lota de Macedo Soares. Esse deve chegar às livrarias ainda neste semestre.

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Por falar em Uma Arte, o New York Review of Books publicou ontem uma análise sobre outra arte, menos conhecida, de Bishop: a pintura. O texto é assinado por William Benton, editor de Exchanging Hats, título de 1996 que reuniu a obra artística da poeta e que hoje está à venda apenas em segunda mão pela Amazon, com preços que chegam a US$ 688.

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Daisies in Paintbucket, que ilustrou a primeira edição de One Art: Letters

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Interior With Extension Cord

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Brazilian Landscape (a imagem original está desaparecida desde a morte da poeta)