A íntegra da conversa com Aline

Aline Crumb em Paraty, por RaqCozer

Ok, de volta pra casa. Uma faxina rápida na biblioteca depois de uma semana hospedada no blog do Estadão na Flip. Não pretendia voltar a nenhum dos assuntos abordados por lá, mas percebi que fiquei devendo a segunda metade da entrevista com Aline Crumb, que no ano que vem lança um livro com o Crumb e terá, no Brasil, outro publicado pela Conrad, só com o trabalho dela. Acho que a esta altura ninguém aguenta mais ouvir falar no assunto, mas promessa é promessa.

Vi um monte de gente reclamando da participação da Aline na mesa do Crumb e do Shelton. Aos que reclamaram, digo só uma coisa: vocês não entenderam nada (ops, desculpe, esqueci de medir as palavras). Aline é interessantíssima. Tem uma delícia de senso de humor e abriu caminho para gerações de quadrinistas mulheres – gente que todo mundo admira, como Marjane Satrapi.

Segue abaixo a íntegra da conversa que tive com ela na quarta passada, no jardim da pousada da Marquesa, em Paraty. No blog da Flip, cheguei a postar até a parte em que ela conta da mágoa do Crumb com a New Yorker.

Pra facilitar para quem já leu a primeira metade: a parte nova aparece a partir da ilustra feita por Sophie Crumb, a filha do casal, a moça de biquíni.

Entram nessa segunda metade os comentários de Aline sobre o trabalho de Sophie,  uma descrição incrível de como foi o trabalho na história que ela, Sophie e Crumb desenharam juntos para a New Yorker, e uma avaliação da nova geração de cartunistas mulheres, entre outras coisas. Lora Fountain, mulher de Shelton e agente literária de toda aquela galera, também participa da conversa.

E, P.S., acabo de ler no G1 que Crumb escalou o corrimão da Livraria da Vila para fugir dos autógrafos. Sorry. Gênio.

***

Aqui no Brasil, do seu trabalho, é conhecido só o que faz junto com o Crumb…
Aline:
No ano que vem, sairá pela Conrad um livro com todo o meu trabalho. Não sei ainda como chamarão.
Lora: Da última vez que falei com eles, seria algo como Aline: Uma Autobiografia Não-Autorizada
Aline: Por mim, tudo bem, não vejo problema. Mas o título do livro em que se baseou esse da Conrad é Need More Love, que eu acho que é um bom título. E Love That Bunch, um livro mais antigo. Há algumas coisas dos dois livros. Need More Love tem fotos, pinturas e textos, é um livro multifacetado. É um grande livro, uma autobiografia gráfica, com todos os tipos de imagens. Mas Conrad usará apenas histórias desse trabalho.

Você também é pintora, então.
Aline:
Comecei meu trabalho como pintura. Fiz meus estudos em aquarela e óleo em tela, me formei e sou professora de arte, mas só dei um ano de aula em toda a minha vida. Quando me formei, nos anos 60, me interessava pelas comics underground, o trabalho do Gilbert, do Crumb, e de um artista chamado Justin Green, que fez um trabalho muito autobiográfico e me inspirou a fazer o mesmo. Comecei a fazer quadrinhos naquela época, embora não tivesse ideia de como publicar, o que fazer. Então me dei conta de que todos os quadrinhos estavam sendo publicados em San Francisco, então fui para lá, em 1971.
Lora: Você foi para lá originalmente para conhecer o Justin.
Aline: Sim, fui conhecer Justin Green, que era o artista que eu admirava de fato. Queria falar com ele e perguntar coisas. Ao mesmo tempo, alguns amigos nossos disseram que eu parecia um personagem de Robert Crumb e me levou para uma festa onde o conheci, e também Lora e Gilbert, ao mesmo tempo.
Lora: O que significa que todos nós nos conhecemos por quase 40 anos…

Você desenhava naquela época, certo, Lora?
Lora
: Sim, nós fomos as primeiras cartunistas mulheres naquela época. (Para Aline) Seu timing foi perfeito de chegar a San Francisco naquela época.
Aline: Eles precisavam de mais trabalhos desesperadamente, porque não havia cartunistas mulheres. Se você parar para pensar, não tinha isso. Então eles estavam tentando atrair isso, e para qualquer uma que pudesse minimamente desenhar um quadrinho eles diriam: OK, você pode estar nesse livro. Foi por isso que conseguimos entrar nisso.

Seus cartuns já eram autobiográficos naquela época, Aline?
Aline:
Sim, eu não sabia fazer mais nada. Não conheço nenhum outro assunto bem o suficiente para poder desenhar a respeito.
Lora: Você trabalhou naquele livro que fizemos para o (neurologista e escritor) Timothy Leary (El Perfecto)?
Aline: Sim, mas escrevi sobre mim, sobre LSD. Participei, mas escrevi sobre minha própria viagem de LSD.

E, Lora, por que parou você de desenhar?
Lora:
Eu? Porque… algumas pessoas pessoas podem fazer isso, e outras não. E eu não posso. Não tenho o talento ou a paciência para desenhar boas histórias. Comecei a me interessar mais por vídeo e fotografia.

Quando conversei com Crumb, no ano passado, ele me disse que você (Aline) tinha mais talento para o roteiro que para o desenho de uma HQ, um humor judeu…
Aline:
Sim, é verdade. Quando trabalhamos juntos, eu faço quase todo o roteiro. É como um time de duas pessoas, ele quer dizer uma coisa, e eu vou e quase sempre faço o humor. E, sim, é verdade, sou mais uma roteirista de quadrinhos. Meu desenho é muito primitivo e estranho e idiossincrático. Prefiro pintar, não sou uma cartunista profissional nem estou interessada nisso. Meus quadrinhos não são muito comunicativos no que diz respeito a forma dos quadrinhos, eles são muito pessoais e doidos. Eles são mais apreciados por pessoas que gostam de ver minha arte em galerias. É mais fácil para eles olhar para os meus quadrinhos do que é para as pessoas que gostam de quadrinhos profissionais. Não uso nenhuma das técnicas formais dos quadrinhos.

De que tipo de técnicas você fala?
Aline:
Estilização, simplificação, por exemplo, quando você tem um personagem, fazê-lo sempre da mesma maneira o tempo todo. Quando desenho, eu mudo o tempo todo. Se estou de bom humor, eu me desenho melhor, se estou de mal humor, me desenho mais feio. Mudo meu cabelo, meu peso. Cada desenho para mim é um desenho, não penso no sentido de arte sequencial, expressão comercial, de manter um público.

E você é tão magra, mas se desenha tão grande nas HQs em que aparece com o Crumb…
Aline:
Eu costumava ser maior. E ainda sou muito, sabe (levanta o braço e mostra os bíceps sob a blusa)… forte. Eu me sinto como uma guerreira. Dou aulas de pilares seis horas por semana. Eu gosto de comer, mas também de me mover muito.

Quando você desenha com Crumb… Ele tem esse respeito pelas técnicas da arte sequencial, e você não tem…
Aline
: É insano como isso funciona. Não deveria funcionar, mas, por alguma razão, funciona. Eu aproveito as deixas. Ele coloca a linha lá e eu aproveito as deixas. Mas, em termos de desenho, é totalmente irracional, porque o desenho de Robert é tridimensional, e o meu é chapado. Da primeira vez que fizemos isso, não era para publicar, era só para nos distrair. Foi em 1974, eu acho, e eu tinha caído e quebrado a perna, e estava chovendo, e estávamos no campo, e eu estava muito entediada e o deixando louco. Então, para me deixar ocupada, meu irmão e eu costumávamos fazer quadrinhos juntos, como ele fazia com o irmão dele, Charles, então ele falou, vamos fazer isso.
Lora: Para evitar que você o deixasse louco.
Aline: Sim, para que ele não pirasse. O primeiro que fizemos foi muito louco, a história vai a todo lugar, espaço sideral, criaturas que aterrissam na nossa fazenda,Timothy Leary aparece, é realmente louco. Não tentamos fazer nada coerente porque não pensávamos em publicar, mas daí um editor viu e quis publicar.
Você sabe quantas histórias fizeram desde então?
Aline:
Temos esses dois livros chamados Dirty Laundry, dos anos 70, e uma compilação. Fizemos para jornais locais, para a revista Weirdo.
Lora: Quando começaram a fazer para a New Yorker?
Aline: A primeira coisa que fizemos para a New Yorker foi no meio dos anos 90. Fizemos algo, a primeira acho que foi sobre nossa reação ao documentário de Terry Zwigoff, chamado Crumb, que saiu em 1995. A New Yorker pediu para nos escrever sobre nossa reação. Nós queríamos desaparecer depois daquele filme. Robert usava chapéu e não usava barba, mas ele começou a ser reconhecido em todo lugar. Então ele mudou o tipo de chapéu e deixou a barba crescer, mudou o visual.
Lora: Ele ainda usa o mesmo tipo de roupa.
Aline: Não, naquela época ele usava uns casacões de homem velho, agora ele acabou voltando a usá-los, mas durante aquele tempo ele parecia mais um francês, com uma jaqueta. Ele foi ver o filme num cinema central onde estariam todos os seus fãs, com esse visual diferente, barba e tal, e ele estava na tela, e dentro do cinema, e ninguém o reconheceu.
Lora: Teve uma vez que um fã o parou e disse que o viu no filme, mas estava falando sobre Max, e não sobre Crumb. Achou que Crumb era o irmão.
Aline: Sim, sim. Hoje ele ainda é muito reconhecido, mas naquele época foi mais estranho.Em qualquer lugar alguém o reconhecia, era demais.

E aqui em Paraty, como tem sido? Ele quase não saiu da pousada…
Aline:
Não, não muito.
Lora: Nós acabamos de chegar, também, ontem…

Mas vocês e Shelton foram passear, ele não.
Lora
: Ele estava cansado. Não estava com fome, e nós estávamos. Mas nós saímos ontem à noite para jantar com ele.
Aline. Ele não está se escondendo. Ele virá para almoçar agora. Ele é um cara muito doce, muito legal. É tímido. E, depois de certo ponto, ele não pode mais falar. Ele não gosta de falar dele mesmo.
Lora: E ele falou tanto do Gênesis no ano passado. Você falou com ele naquela época, Raquel, logo no começo, mas você foi uma em um milhão…
Aline: Centenas de milhões. Foi muito. Ele divulgou muito, fez uma tour nos EUA, fez uma conferência com cententas de jornalistas.

Ele deve estar cansado de responder sempre as mesmas coisas.
Aline:
Sim, as perguntas são sempre as mesmas. É normal, os jornalistas fazem as perguntas que eles têm de fazer, é normal, nada contra o jornalismo. Mas, depois de um tempo… Depois de um tempo ele não aguenta mais falar sobre o assunto.

E como vocês dois sabem quando têm uma história em parceria?
Aline:
A gente não tem nenhuma regularidade para isso. A New Yorker sempre nos pede coisas, mas ele não quer mais fazer nada para eles.

Por quê?
Aline:
Porque eles pediram a ele uma capa, e ele fez, estava muito boa. Era meio controversa, porque pediram a ele que fizesse uma capa sobre casamento, e ele fez uma sobre casamento gay, e eles não usaram. Até aí tudo bem, ele não se importa, mas eles nunca explicaram a ele por que não usaram a capa. Ele perguntou muitas vezes, e nunca teve resposta. Ele disse: “Se eles me dissessem a razão, estaria tudo bem, eu faço outras coisas para eles. Mas, como eles não tiveram coragem nem respeito o suficiente para me explicar isso…”. Ele está zangado. É compreensível. Durante um ano, eles ficaram dizendo que usariam, que usariam, fizeram isso dez vezes, durante um ano, eles pagaram pela capa… Mas ele ficou realmente frustrado de não saber por quê. Se não gostaram. Ele trabalhou com muito afinco naquilo, e não tiveram coragem de ligar para ele e dizer o que houve. Era só dizer: “Não é seu melhor trabalho”.

Mas vocês ainda fazem histórias juntos?
Aline
: Sim, estamos trabalhando num novo livro. O título provisório é Drawn Together, que tem dois significados em inglês, atraídos um pelo outro e desenhando juntos. Sairá simultaneamente em francês e em espanhol. Incluirá o trabalho New Yorker, o trabalho anterior e algumas outras histórias. Sai no ano que vem.

Será a história de amor de vocês dois?
Aline:
Sim… Sim. Bem. Como você quiser chamar (risos). Mas haverá trabalhos antigos que provavelmente quase ninguém viu, que fizemos há muito tempo foi publicado só em editoras muitas pequenas, que poucas centenas de pessoas viram. E histórias totalmente inéditas.


E Sophie também lança um livro neste ano, certo?
Aline:
Sim, o livro dela sai em novembro. Se chama Evolution of a Crazy Artist. Tenho aqui comigo uma mostra desse livro, uma apresentação de 16 páginas, posso te mostrar. Robert trouxe.

E como você se sente em ver esse trabalho publicado?
Aline:
Ela já teve publicados dois livros, quando estava com 20 e poucos, por conta dela.

Mas este é um que reúne toda a trajetória dela, da qual vocês fazem parte.
Aline
: Sim. Este é um livro incrível. Mesmo que ela não fosse minha filha, nunca houve um livro como esse feito antes, até onde eu sei. Mostra o desenvolvimento de um ser humano, por meio de seu desenho, dos dois anos até os 29 anos, de ser um bebê até ser uma mãe. Tudo no meio tempo, sua adolescência, descobrir as drogas, ser rebelde, tudo está lá. Vai desde coisas que nós guardamos até coisas que ela própria guardou pensando em mostrar um dia. Ela fez as escolhas com Robert. Ela escreveu explicações sobre o que estava acontecendo na vida dela no momento daqueles desenhos.
Lora: Mas também, eu acho, só pessoas como você e Robert poderiam ter reunido material como esse. Porque vocês guardaram tudo. Eram o que, 10 mil desenhos?
Aline: Dez mil desenhos, pelo menos. Porque Robert é um arquivista, sabe? Ele é um colecionador. E ele guarda desenhos de toda época, e anota: o que é isso, quem é esse. Haverá comentários em cada desenho. Temos uma estante cheia de desenhos dela. E, então, ela começou a guardar desenhos quando ela tinha uns 8 anos. Ou seja, ela tem um mundo inteiro que ela guardou dos 8 anos até hoje.
Lora: Você disse que tinha uma pilha desta altura…
Aline: Não, mais, muito mais. Ocupou meu escritório inteiro. Pilhas e pilhas e pilhas. E exploramos tudo aquilo e escolhemos algo que mostrasse uma evolução coerente do trabalho dela. E acho que fizemos um belo trabalho. Tem 300 páginas, algo assim. E é muito interessante, porque mostra desde o momento em que essa pessoa primeiro percebeu seu papai, sua mamãe e sua casa, até notar um mundo maior. Sabe, a moralidade dela se desenvolveu, os pontos de vista dela se desenvolveram, e de repente ela se tornou muito rebelde. Tudo isso aconteceu. E então ela volta e encontra Simon e eles têm um bebê, e é toda uma história por meio dos desenhos e escritos pessoais dela.
Lora: E ela é uma artista incrível.

E ela lembra algum de vocês dois nos desenhos?
Aline:
Vou te mostrar um autorretrato que ela fez, ok? Recentemente, para o livro. Esse é para uma edição limitada, é um silk-screen que estará no livro (Aline revira a bolsa enquanto fala).
Lora: Conte a ela sobre o telefonema que vocês receberam da mulher em Nova York.
Aline: A mulher que… Espere, deixe-me achar. A mulher… em Nova York… é uma professora de crianças esquizofrênicas, e ela escreve livros sobre crianças. E ela viu o livro de Sophie e disse que é o melhor livro que ela já viu na vida. Disse que é verdadeiramente miraculoso. Ficou verdadeiramente impressionada. Disse que era único que pais dessem ao trabalho de um filho pequeno tanta importância. Disse que a voz de Sophie aparece com tanta força desde o começo. Eu não sei se é verdade, mas foi bom ouvir isso.

Quantos anos ela tem agora?
Aline:
Ela tem quase 29.

E o filho dela?
Aline:
Está com dez meses. (Aline encontra o autorretrato no celular). Aqui está o retrato dela. Que ela fez quando…

Nossa, lindo. (Sorry, people, esqueci de pedir para ela me mandar. Sophie parece muito bonita, assim como o traço dela)
Aline:
É, não é? Ela parece mais velha e mais feia do que ela é, mas dá para ter uma noção. Ela é realmente bonita.

E esses cartuns da New Yorker… Tivemos publicados aqui uma história que vocês três fizeram juntos.
Aline:
Sim, sim. Chama-se Não Fale com a Boca Cheia, é sobre uma reunião em família.

E como foi fazer isso?
Aline
: Nós três? Foi complicado (risos). Fizemos primeiro tudo a lápis. Sem tinta. Cada um de nós tinha uma ideia, vamos dizer que na primeira página cada um teve uma ideia. Eu pensei no título, Não Fale com a Boca Cheia. Então comecei a história. Nós três no trem, ela morrendo de vergonha de mim. Como um adolescente fica da mãe. No trem, eu estava comendo, e ela falava: “Mãããe, você pode por favor terminar de mastigar antes de começar a falar”. Estávamos no trem, enfim. E então ela dizia: “Espere, quero dizer uma coisa”, e então ela colocava o lápis dela… Sem desenhos, por enquanto só estávamos escrevendo. E então Robert fazia. Então escrevemos toda a primeira página. E então toda a segunda. E a terceira. Quando tínhamos toda a história mais ou menos escrita, cada um de nós pegou uma página e fez seu desenho a lápis. E trocamos, cada um fez seu personagem na página, e trocamos, cada um fez seu personagem na página. Então tudo estava à lápis. Então cada um de nós pegou uma página e fez a tinta seu personagem e sua fala. E trocamos.
Lora: Ou seja, não só os desenhos próprios feitos por cada pessoa, mas também as falas nos balões. Cada qual com seu estilo de letra.
Aline: E Robert em geral faz o logo, porque ele é realmente bom nisso.
Lora: E quanto ao desenho de fundo?
Aline: Todos nós. Nós nos dividimos nisso.

E com que frequência você desenha? Sei que Crumb desenha tipo todo dia, mas e você?
Aline:
Desde que o bebê de Sophie nasceu, não desenhei mais, nos últimos dez meses. Porque comecei a ajudar Sophie com o livro dela, e o Gênesis estava saindo, ajudei Robert com a divulgação. E também estava ajudando Sophie com o casamento dela. Então, pensei, é isso.

E não sente falta de desenhar?
Aline:
Ah, eu sinto. Nos últimos dez meses não pude. Fiquei feliz de poder ajudar nesses últimos dez meses, de passar o tempo com meu neto, estou muito próxima do bebê agora, assim como Robert, mas agora, em setembro, quando voltar à França, quero voltar a meu trabalho, a pintar e desenhar. Mas não me arrependo de um segundo que dediquei ao meu neto, nem um minuto.
Lora: Foi um momento importante para você e para Robert.
Aline: Sim, sim, foi. Estou muito feliz. É minha filha única, meu único neto, então.

Ela vive na cidade de vocês?
Aline:
Não, vive a 20 minutos da gente.
Lora: O que foi realmente bacana no casamento, porque o casamento aconteceu em julho, é que estavam lá os pais, os avós, os bisavós, dos dois lados da família.
Aline: Três bisavós e quatro tataravós do bebê. Não me arrependo de nada.

Quando você começou, não era comum ver mulheres cartunistas. E agora, na França, e também nos EUA, há esse cenário tão forte em HQs. Você acompanha isso de perto?
Aline
: Sim, eu me interesso muito. Nos Estados Unidos, há duas ou três gerações de mulheres cartunistas que começaram depois da gente. E isso é lindo pra mim. Minha filha é parte dessa última geração. E acho que se torna cada vez melhor. Quando começamos, tudo era muito cru, não havia história, era uma forma que não sabíamos bem como trabalhar, e tínhamos gente de formas artísticas muito diferentes que acabaram chegando aos quadrinhos. Agora as pessoas estudam quadrinhos na faculdade, eles ensinam isso.  Phoebe Gloeckner, que foi uma cartunista que apareceu uma geração depois da gente, ela é agora uma professora de HQ na Universidade de Michigan. E em Harvard há uma professora ensinando meu trabalho, o nome dela é Hilary Chute, ela fala do meu trabalho no curso dela. Acho que as mulheres encontraram o lugar certo nesse cenário, e agora existe um trabalho muito importante das mulheres. Isso me faz feliz, me faz sentir pioneira. Hoje em dia você tem gente como Posy Simmonds e Tamara Drewe e Alison Bechdel e Phoebe Gloeckner e Marjane Satrapi. Tudo isso é resultado, eu sinto, do que fizemos. E é o que me deixa feliz.
Lora: Porque, naquela época, estávamos tateando no escuro.
Aline: Sim, nós não sabíamos. Não existia forma nem tradição. Não sabíamos… Mas quando você vê um trabalho inspirado em você ir um passo além e um passo além e um passo além… Agora se tornou uma forma de arte madura que as pessoas podem estudar em Harvard, voc6e pode estudar literatura e você pode estudar quadrinhos. Isso é algo que se pode fazer e que não existia.

Você acha que graphic novel é literatura?
Aline:
Sim. Totalmente.

Porque aqui no Brasil há muitos quadrinistas que rejeitam essa ideia.
Aline:
Preciso dizer que acho que há uma série de trabalhos que… Há muitos cartunistas que são muito visuais, e as palavras são menos importantes… Há muito cartunistas que nem palavras usam. Mas há outros que são muito mais literários. E seus desenhos prescindem de palavras. E existe todo esse meio termo. Vocë tem Chris Ware, que, às vezes, não precisa das palavras.
Lora: E há também Shaun Tan, que ganhou melhor álbum estrangeiro uns três anos atrás em Angouleme. Não há uma única palavra…
Aline: Tem também Blanquet, que é totalment visual. Mas daí você tem alguém como Art Spiegelman, que fez Maus, e é totalmente um trabalho de literatura. O desenho é muito secundário. Então, dentro dos quadrinhos, você tem ambos, você tem algo totalmente visual e algo totalmente literário. E ainda algo totalmente no meio disso.
Lora: Simmonds é muito literária E Tamara Drewe também.
Aline: Se você olha para Marjani Satrapi, o desenho dela é muito simples, não é um desenho particularmente interessante, mas a história é fabulosa. É muito literário. Então, você não pode generalizar, precisa olhar artista por artista. Mas é uma forma de arte incrível, que pode se tornar poderosa conforme for usada.

Sabendo que seu ponto forte é o texto, e não a ilustração, você lançaria algo que fosse só texto?
Aline:
Bem, em Need More Love há muita coisa que é só texto. Mas há muito texto, pintura, e muitas fotos. Eu escrevi muito também. Mas também pinto. Sou muito visual, pintar é meu primeiro amor. Se você quer saber o que me faz mais falta como artista, é pintar, isso é o que realmente desejo. Sou mais uma artista visual que uma escritora no meu coração. Acima de tudo, penso em mim como pintora e artista visual. Comecei a pintar aos oito anos de idade, fui muito precoce nisso, foi meu primeiro amor.

Desenhar é mais difícil que pintar para você?
Aline
: Quando desenho quadrinhos, não me preocupo tanto se o desenho é bonito. Estou interessada em expressar a feiúra e a angústia…

E suas pinturas….
Aline: Acho que elas são mais bonitas, acho.
Lora:
Mesmo que o assunto não seja particularmente interessante, algo que você não espere… Tenho uma pintura de Aline que é uma flor quase morrendo. E é tão…
Aline: Escura, eu uso muito preto.
Lora: Eu amo aquilo.
Aline: Obrigada. Quando pinto, estou muito mais preocupada com a estética. O senso de cor e forma. É um processo muito diferente. Quando faço quadrinhos, o desenho é parte da escrita e da sensação da personagem. Quero passar alguma emoção, mas não fazer aquilo bonito. É uma coisa muito diferente da pintura. Não vem do mesmo lugar, com certeza. As histórias em quadrinhos são mais emocionais, é algo muito diferente. Pintar é mais meditativo e prazeroso. Fazer quadrinhos é mais como uma tortura. Não me relaxa, me deixa tensa. Não posso colocar mais em palavras do que isso.

Está muito bem colocado, consigo entender. E, enfim, o que está achando de Paraty?
Aline
: É linda e tropical, adoro tropical. O clima e água… É muito barulhenta. Acordei com pessoas martelando… As pessoas são muito vívidas e gosto disso. E estou surpresa como tudo é muito antigo e bem cuidado. Adoro vegatação tropical e calor. Gosto muito de viajar. Fui para a Índia faz pouco tempo…

E deixou Crumb sozinho? Ele consegue viver sem você?
Aline:
Sim, consegue. Há os mercados e os restaurantes e cafés. Ele pode sobreviver sem mim.

Ele diz que não fala francês.
Aline:
O suficiente para conseguir comida e sobreviver. E todo mundo na cidade o conhece. E o protege. Agora ele está com essa secretária, uma amiga minha. Ela cuida dele. Eu já gosto mais de viajar, de viver aventuras, não me assusto mesmo. Fui para a Índia faz algum tempo. Ele teria odiado, morrido. Mas eu vou aonde puder, provo o que me derem para provar.

Você comeu moqueca aqui no Brasil?
Aline:
O que é isso?

É uma espécie de peixe ensopado.
Aline:
Com banana?
Lora: Comi ontem.
Aline: Eu comi lulas.
Lora: Robert não gosta dessas coisas exóticas.
Aline: Ele gosta de peixe, mas não de frutos do mar.

E ele não está se escondendo, como você diz…
Aline:
Não, não está. A viagem de São Paulo até aqui foi interessante, mas quero conhecer lugares mais comuns, sabe? Queria conhecer essa parte nova de Paraty que não é tão bonita, com suas lojas normais, mercados normais… Coisas ordinárias são tão mais legais. Este lugar parece uma pequena joia do país, mas quero conhecer os lugares mais comuns.

E vocês já pensaram se Paraty rende alguma daquelas suas histórias em conjunto?
Aline:
Olha, vou te mostrar. Olha todas as minhas canetas, de todas as cores (abre uma bolsinha para mostrar as canetas que trouxe). Se tiver tempo, vou fazer algo depois. Primeiro tiro fotos e depois faço. Mas não acho que vá desenhar algo sobre Paraty a não ser que aconteça algo realmente horrível. Se eu for sequestrada ou algo do tipo. Por enquanto, está tudo tão tranquilo. Sobre o que escreveríamos, sobre o quanto está sendo tranquilo e bacana aqui? Seria tão entediante!

Bem, se te consola, acho que esse encontro que Crumb e Shelton têm em São Paulo será caótico.
Aline:
Bem, se formos torturados por lá, acho que teremos uma história.

O prenúncio de uma muvuca

Tááá, vocês pessoas que entraram aqui desde sexta buscando por Crumb e Livraria da Vila. Ou você, pessoa isolada que fez isso com várias variáveis na formulação da busca no Google para ter certeza. Se tudo correr como combinado, será no dia 10, ao lado de Gilbert Shelton, na loja da Fradique. Evento organizado pela Conrad, que fará durante a Flip um minilançamento de Meus Problemas com as Mulheres, do Crumb. No dia 10, já deve ser mais fácil comprar o livro recém-editado (parece que para a Flip eles só conseguirão levar uma tiragem pequena). O horário ainda não está definido – início da noite, I guess -, nem o formato do evento. Não, Crumb não gosta de dar autógrafos. Não, a Livraria da Vila não comporta o número de pessoas que pretende estar lá.  Sim, seria a cara do Crumb trocar a muvuca por uma caça a discos antigos de samba e choro, e quem iria culpá-lo se optasse pela troca?

[update em 27/7]
O encontro será das 19h30 às 21h, com mediação de Caco Galhardo.

Texto, ilustração e raciocínio (ou só viagem)

Duas das entrevistas que mais gostei de fazer nos últimos anos foram com cartunistas, o Crumb (que, pena, nunca entrou no ar na íntegra) e o Spiegelman. Tudo bem, uma das que mais me frustraram também foi, com o Quino, mas preferia que isso não atrapalhasse a teoria sobre a qual falo no outro parágrafo. É que os três têm fama de não gostar de falar com jornalistas, mas Crumb e Spiegelman ao menos disfarçam muito bem, mesmo tendo provavelmente ouvido antes centenas de vezes várias das perguntas que lhes são dirigidas. Tá, a gente sempre tenta perguntar algo que saia do lugar comum, mas é difícil acreditar na possibilidade de questões inéditas para quem passou a vida respondendo a elas.

Gilbert Shelton corroborou minha teoria (três contra um; já posso usar os números a meu favor?) de que cartunistas tendem a ser bons de oratória, por mais que se digam tímidos ou avessos a qualquer tipo de notoriedade. De alguma maneira, vejo uma conexão entre a capacidade que eles têm de contar uma história simultaneamente em texto e imagem e a inteligência de elaborar raciocínios de forma… visual, digamos assim. Indo direto ao ponto, mas com frases que acrescentam algo de concreto a quem quer entender melhor criador e, por extensão, criatura. Nem que seja só para se livrarem logo daquele incômodo inquisitório, a versão contemporânea das torturas medievais.

Sei lá. Pode ser mesmo viagem minha. Também não consigo explicar direito, o que percebi ao tentar escrever aqui. Xá pra lá. Qualquer dia publico a íntegra da conversa com o Shelton por aqui, o que será mais autoexplicativo. Por enquanto, segue o texto que saiu hoje no Sabático.

***

Gilbert Shelton, o verdadeiro Freak Brother

Um dos precursores dos cartuns underground da década de 60 divide mesa com Robert Crumb na Flip

RAQUEL COZER

Quase meio século como cartunista rendeu a Gilbert Shelton um lugar entre os pioneiros das HQs underground e também caixas e caixas de material inédito. Elas o acompanham desde Nova York, onde, em 1962, publicou os primeiros desenhos como profissional, e ganharam volume em Paris, cidade em que se instalou há 25 anos com a mulher, a agente literária Lora Fountain.

Nos últimos tempos, Shelton andou revendo o conteúdo. Imagina ter material suficiente para um livro autobiográfico, que intercale histórias curiosas e ilustrações – uma espécie de caderno de recortes, como define -, mas ainda não falou sobre a ideia com os editores. “Acho que pode ser interessante”, avalia, antes de uma breve pausa. “Mas não sei. Talvez as pessoas achem entediante.”

Difícil acreditar na segunda hipótese. Trata-se, afinal, do pai de Fat Freddy, Phineas e Freewheelin’ Franklin, trio de maconheiros que resumiu, nas histórias de Fabulous Furry Freak Brothers, a psicodelia e o desbunde reinantes entre a juventude mais avançadinha dos anos 60 e 70. Acontece que Shelton sempre fez questão de negar a crença pública de que seus personagens mais conhecidos refletissem seu estilo de vida. Nada que o cartunista tenha contra a maconha, mas ele costuma argumentar que, se a consumisse na mesma quantidade dos personagens, não estaria em condições de contar a história. E, bem, ele chegou em maio último aos 70 anos e continua na ativa, ainda que num ritmo de trabalho bem menor que nos áureos tempos.

No próximo dia 3, o artista desembarca no Brasil com a mulher e o casal Aline e Robert Crumb para um temporada de seis dias em Paraty. Ao lado do amigo e criador dos célebres Fritz the Cat e Mr. Natural, participará daquela que é uma das mesas mais concorridas da oitava edição da Flip, no dia 6. “Vi na televisão um documentário sobre Paraty, então agora sei como é a cidade, uma coisa colonial”, diz Shelton em conversa por telefone com o Sabático, a fala tão pausada que por vezes dá a impressão de ter concluído o raciocínio quando, na verdade, está apenas pensando na melhor palavra a usar em seguida. “A arquitetura antiga me lembrou muito as construções espanholas do México.”

Ao contrário de Crumb, que vive entocado com a mulher numa vila no sul da França, Shelton gosta de viajar. Nasceu no Texas, passou a juventude em Nova York, morou por em Barcelona de 1980 a 1981 e voltou para a Califórnia antes de se mudar de vez para Paris. Não porque rejeitasse a violência dos Estados Unidos e o conservadorismo da sociedade americana, como Crumb, mas por questões profissionais. “Achei que viajaria mais, mas começamos a nos envolver em muitos projetos em Paris. Especialmente Lora”, diz, sobre a mulher, que abriu por lá uma agência literária e hoje tem entre seus clientes a família Crumb – a filha do casal de cartunistas, Sophie Crumb, também enveredou para os quadrinhos e terá um livro publicado em novembro.

Ironia. Shelton e Crumb se conheceram em 1969, em Nova York, quando ambos já tinham criado alguns de seus personagens mais famosos. O primeiro de Shelton, Wonder Wart-Hog, paródia do Super-Homem, apareceu numa publicação juvenil em 1962, mas só seis anos depois os Freak Brothers o colocariam entre os grandes do gênero. Naquele mesmo ano, em 1968, Crumb, já conhecido por Friz the Cat, reuniria artistas da contracultura no primeiro número da revista Zap Comix. Por ter alcançado a fama depois do amigo, apesar de ser três anos mais velho, o texano diz se sentir um “protégé” de Robert Crumb. “Ainda me impressiono com o estilo dele. É difícil dizer. Nós dois temos as mesmas influências, mas ele é diferente porque… Ele desenha tanto. É muito melhor que eu. É como estudar um idioma ou uma música. Quanto mais você pratica, melhor você é.”

E Shelton não gosta muito de praticar. Em 1974, já com bom status como criador de tiras e livros de quadrinhos, resolveu que precisava de ajuda e convidou o artista e escritor Dave Sheridan para trabalhar com ele nos livros que saíam por sua própria editora de fundo de garagem, a Rip Off Press. Desde então, contou com parceiros como Paul Mavrides e Gerhard Seyfried, com quem passou a intercalar criação de roteiros e ilustrações.

Por quê? Porque ilustrar, explica o pai dos Freak Brothers, não é algo que goste tanto de fazer. “Não sou prolífico, em especial na comparação com o Crumb, que é um desenhista compulsivo. Eu trabalho em projetos específicos. Tenho mais interesse em contar boas histórias, piadas. Desenhar não é meu ponto forte.” Com as parcerias, sentiu o trabalho fluir mais rápido, o que lhe deu liberdade para focar mais nos roteiros. A avaliação dele é a de que a história importa mais que a ilustração numa tira. “Se você tiver uma boa história e um desenho ruim, a tira será boa. Mas, se a história não for boa, não haverá arte que a segure.”

Seja como for, Shelton sabe dizer muito com pouco. Enquanto os quadrinhos underground eram combatidos pelos defensores da ordem e dos bons costumes, o artista resumiu em um cartum todo o preconceito com o qual seu trabalho era visto. Numa imagem de página inteira, os três Freak Brothers apareciam numa cama com uma mulher nua, cercados de drogas, bebidas, armas e pôsteres com dizeres na linha “Fuja do alistamento” e “Trepe pela paz”. Deitada, a mulher dizia: “Uau! Isso foi muito louco! Vamos ler mais umas revistas e começar de novo!!” – uma ironia escrachada contra a ideia de que HQs desvirtuavam os jovens. “Qualquer assunto pode ser bom, o difícil é tirar uma boa história dele. O tema central é menos importante que os detalhes de uma história. Em geral, a grande sacada está escondida sob a superfície da trama. Em HQ, é preciso fazer mais ou menos o que faz um dramaturgo numa peça, colocar os leitores ou o público dentro da história, suspender a descrença deles no que está sendo mostrado e fazê-los entrar no espírito da coisa.”

A autobiografia que boa parte de seus contemporâneos explorou nos quadrinhos ele diz ver nas suas histórias só naquele ponto em que “toda ficção inclui algo de autobiográfico”. No caso dos Freak Brothers, afirma: “Se houver alguma semelhança comigo, está muito bem escondida.” No fundo, ele se identifica mais é com o quarto personagem da história, o gato de Fat Freddy. O bichano, que apareceu numa tira do trio em 1969, ganhou pouco tempo depois vida e tiras próprias, o Fat Freddy’s Cat. “Talvez eu seja um pouco como os três, mas, vá lá, pareço mais com o gato, que é o mais inteligente deles.”

Rock’n’roll. Embora ainda faça de tempos em tempos histórias dos Freak Brothers e do Fat Freddy’s Cat, o cartunista tem se dedicado mais, nos últimos anos, às aventuras do Not Quite Dead, sobre a banda de rock de menos sucesso no mundo. A série foi criada em 1992 e o livro mais recente de um total de quatro, Last Gig in Shnagrlig, saiu na França em 2009. Ainda não há nenhuma previsão de que seja editada no Brasil. “Preciso falar com meu editor brasileiro”, diz Shelton, ao ser informado do fato. “Vou avisar à minha agente, que é minha mulher. Ela ficou muito ocupada com o Gênesis do Crumb e me esqueceu“, graceja. A Conrad, que entre 2004 e 2005 publicou dois volumes do Fabulous Furry Freak Brothers, com tradução de Alexandre Matias, afirma que as edições atuais ainda não se esgotaram e que espera vender os exemplares ainda em estoque durante a Flip.

Outro projeto no qual ele se vê envolvido desde 2003 empacou. Naquele ano, a produtora inglesa Bolexbrothers entrou em contato para transformar uma das histórias dos Freak Brothers numa animação em stop-motion, com bonecos de massinha. O filme leva o nome de uma das aventuras criadas por Shelton para os personagens, Grass Roots, e foi roteirizado por Paul Davis. Na trama, Fat Freddy, Phineas e Freewheelin’ se veem envolvidos com colheitas de maconha geneticamente modificadas, plantadas pelo governo. Um piloto do longa pode ser visto no site http://www.grassrootsthemovie.com, mas é tudo o que existe de material filmado. “Eles não conseguem dinheiro”, explica o cartunista, que participou apenas como consultor. Uma das estratégias para reunir os US$ 10 milhões que viabilizariam a obra é o que a produtora chama de “fundo de frame”. O site explica: “Se você quer que seu nome apareça no filme, compre um frame. Doze frames farão seu nome aparecer por meio segundo, o que deve ser visível a olho nu.

Lógica humana

Chegou às livrarias nesta semana a melhor graphic novel que li neste ano, Logicomix.  Escrevi sobre ela no Sabático de hoje, no Estadão.

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O lado humano da busca lógica

A partir da biografia do pensador inglês Bertrand Russel, Logicomix, elogiada graphic novel grega que acaba de chegar ao Brasil, traduz em aventura visual os intrincados fundamentos da matemática

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Foi a matemática que salvou Bertrand Russell (1872-1970) de seus arroubos suicidas juvenis. A noção que o filósofo e matemático inglês tinha desse fato, que ele tornaria público tempos depois na autobiografia Greek Exercises, ajuda a entender por que, dentre os tantos gênios da ciência exata no século passado, foi ele o escolhido para protagonizar a graphic novel Logicomix, recém-lançada pela WMF Martins Fontes.

Publicada na Grécia em 2008, Logicomix pode ser definida numa sinopse mais apressada como uma trama sobre a busca pelos fundamentos lógicos da matemática. Mas, fosse apenas uma espécie de manual para iniciantes, não teria arrebatado público ao ponto de liderar a lista de HQs mais vendidas do New York Times por semanas a fio e, ao mesmo tempo, arrancado elogios derramados da crítica internacional. “Queríamos uma história sobre as pessoas e as paixões que moveram suas ideias”, diz o roteirista Apostolos Doxiadis, em conversa por telefone com o Estado, de Atenas. A proposta aumentou a complexidade da narrativa, cuja elaboração exigiu dois anos de discussões e outros cinco para roteiro e arte, com uma equipe que incluía o especialista em lógica Christos H. Papadimitriou e os desenhistas Alecos Papadatos e Annie Di Donna.

Um lógico ciente de suas fraquezas era o personagem ideal para humanizar essa história. Descendente de nobres, Russell foi, além de filósofo e matemático, ativista político, ícone do pacifismo e galanteador incorrigível (casou-se quatro vezes, teve três filhos e apaixonou-se pela mulher de seu mais duradouro parceiro intelectual, Alfred North Whitehead). “Ele era muitos. Mudou várias vezes de ponto de vista, de filosofia, de posição política. Quando alguém fala sobre Russell, a questão é sobre qual está falando, qual idade, qual mentalidade, qual teoria. A única coisa que permaneceu por toda a vida foi a insatisfação com o que não podia explicar”, analisa Doxiadis. Por esse aspecto, Logicomix engloba vários Russells, já que o segue da segunda metade da década de 1870 até 1939. E se dá o direito de alguma “liberdade quadrinística”, inclusive nas participações de nomes célebres como Kurt Gödel, Gottfried Leibniz e Ludwig Wittgenstein.

Wittgenstein, intenso

Não menos intrincada é a forma da narrativa. Como uma matrioska, a boneca russa que contém outras similares dentro de si, ela se constrói em camadas, na definição de Doxiadis. A exterior tem como personagens os autores da HQ, envolvidos na tentativa de esclarecer para eles mesmos o que será tratado nas páginas a seguir. Eles apresentam os fatos da segunda camada, na qual Russell chega a uma universidade americana, em 4 de setembro de 1939 – logo depois de o Reino Unido entrar na 2ª Guerra -, convidado a palestrar sobre a lógica nas questões humanas. É abordado na entrada por manifestantes, que clamam por seu apoio pela não-participação dos EUA no conflito, e os convence a entrar no auditório para ouvi-lo.

Na palestra, Russell passa a narrar a terceira camada, cronológica, que começa no dia em que ele, criança, vai morar com os avós e se vê num ambiente de regras rigorosas e ardor religioso. É nesse cenário que trava o primeiro contato com a matemática. Logo percebe uma insatisfação com aquela “mágica” que agora o fascina – a existência de fatos aceitos sem provas, como o axioma “através de um ponto exterior a uma reta só é possível passar uma reta paralela a ela”. “De que vale uma demonstração que se baseia em algo não demonstrado?”, questiona o garoto ao professor na graphic novel. A imagem o perseguirá pelo resto da vida: “A matemática era como o cosmos da mitologia indiana: sua aparente solidez na verdade dependia dos caprichos dos animais que o carregavam. A matemática se erguia sobre bases instáveis.”

Loucura. É irônico que, no sentido emocional, tenha sido também sobre bases instáveis que se construiu o pensamento da época. A estranha relação entre lógica e insanidade é outro tema central da HQ, que desfia exemplos. A loucura acometeu o russo Georg Cantor (1845-1918), “o homem que provou da árvore do conhecimento do infinito”, e o alemão Gottlob Frege (1848- 1925), autor dos Fundamentos da Aritmética; já o austríaco Gödel (1906-1978) morreu de fome, paranoico com a ideia de ser envenenado. Russell não perdeu a razão, mas temeu isso toda a vida. Dois de seus tios eram loucos e um filho sofria de esquizofrenia, assim como uma neta, que se suicidou. “A alta incidência de doenças mentais entre os fundadores da lógica foi algo sobre o que escreveu (o filósofo e matemático ítalo-americano) Gian-Carlo Rota. Faz sentido se pensarmos que a lógica leva a extremos”, analisa Doxiadis.

O jovem Bertrand Russell se colocava no limiar entre a filosofia e a matemática. Era seguidor do alemão David Hilbert (1862- 1943), que pregava a rigorosa exatidão da demonstração na matemática. O outro extremo tinha como maior nome o francês Henri Poincaré (1854-1912), defensor da importância da intuição. Mas, por curiosidade, a maior contribuição do inglês para a discussão enfraqueceu o lado que ele defendia. Foi em 1901, quando lhe ocorreu a questão que viria a ser exemplificada mais ou menos desta forma: os homens de uma cidade são obrigados por lei a fazer a barba todo dia. Eles podem fazer a própria barba ou recorrer ao único barbeiro local, cuja atribuição é barbear só aqueles que não fazem a própria barba. Assim sendo, quem faz a barba do barbeiro?

Russell descobrindo o paradoxo do barbeiro

Parece um simples jogo de palavras, mas, para a busca da base lógica na matemática, foi um baque. A ponto de, dois anos depois, Frege ter incluído um adendo no seu segundo Fundamentos da Aritmética: “Poucas coisas podem ser mais desastrosas para um autor de textos científicos do que ter um dos pilares de sua empreitada abalado depois de concluir sua obra. Vi-me nessa situação ao receber uma carta do sr. Bertrand Russell, justamente quando o processo de publicação deste volume estava quase concluído.” Russell e Whitehead passariam duas décadas tentando resolver isso em estudos que resultariam nos três volumes do Principia Mathematica. Não foram bem-sucedidos, mas plantaram as bases que inspiraram Gödel e Wittgenstein, entre outros, e foram fundamentais à ciência da computação.

Ficção. Formado em matemática na Universidade de Columbia, Doxiadis experimenta a intersecção com a ficção desde 1992, quando publicou o best-seller Tio Petros e a Conjectura de Goldbach (Editora 34). “Estou acostumado a me dirigir a pessoas que não entendem de matemática. Acredito que os leitores dos meus dois livros, em geral, gostam de literatura, e não de obras de ciência popular. Mas não vejo sentido em tornar as coisas difíceis para o leitor, em fazê-lo trabalhar para entender o que está lendo.” Sempre hábil com as palavras, o autor fica vários segundos em silêncio ao ser questionado sobre por que resolveu contar a história numa HQ. Por fim, argumenta: “Eu nunca poderia escrever um romance histórico. Isso exigiria enormes descrições, e elas me entediam. Tenho mais interesse por ideias, diálogos, ações e paixões. Numa graphic novel, você deixa a arte fazer a descrição.”

A coluna de 26/6

No Estadão.com, aqui.

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BABEL

Livro de contos ajudará desabrigados do Nordeste

RAQUEL COZER –  raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carrero, Alberto Mussa e Marcelino Freire estão entre os 19 ficcionistas confirmados para a coletânea Tempo Bom, cuja renda será revertida aos moradores de Alagoas e Pernambuco que ficaram desabrigados com as chuvas dos últimos dias. O projeto foi idealizado na segunda-feira pelo escritor pernambucano Sidney Rocha e já tem editora, a paulistana Iluminuras; como os autores, ela abriu mão do porcentual nos lucros. Vários contos, inclusive inéditos, já foram enviados, e o livro está em produção. Falta a confirmação de dois ficcionistas. Rocha quer mandar o material para a gráfica na próxima quarta e pôr o livro (ainda sem preço definido) à venda nos primeiros dias de julho. “A ajuda financeira deve chegar o mais rápido possível aos locais necessitados. Será uma lição de eficiência, uma cruzada literária”, afirma. Por curiosidade, o escritor tem um conto num projeto similar que a Garimpo Editorial organiza – mas este, em prol do Rio e do Haiti, foi iniciado em março e não deve sair antes de agosto.

CINEMA
Long-seller juvenil

Pedro Bandeira acaba de assinar contrato para a adaptação de seu mais famoso livro juvenil, A Droga da Obediência. O longa será coproduzido pela REC Produtores (responsável por Cinema, Aspirinas e Urubus) e a Gullane (Carandiru). A obra, de 1984, teve mais de 1,5 milhão de cópias vendidas.

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Xuxa e o Mistério de Feiurinha, baseado em outro best-seller do autor, O Fantástico Mistério de Feiurinha, foi o segundo filme nacional mais visto de janeiro a maio de 2010 – perde apenas para Chico Xavier – e o melhor desempenho de Xuxa no cinema em anos.

QUADRINHOS 1
Contra o tempo

A Conrad corre para lançar a tempo da Flip a coletânea Meus Problemas com as Mulheres, de Robert Crumb, e, na Bienal, uma coletânea de histórias de Aline, mulher dele.

QUADRINHOS 2
Obra do canhoto

Uma versão em HQ para A Divina Comédia, de Dante, que sai em agosto nos EUA, teve direitos comprados pela Companhia das Letras. O responsável por ilustrar o Inferno, o Purgatório e o Paraíso do clássico foi Seymour Chwast, conhecido como “o designer canhoto” e estreante em graphic novels.

INTERNET
O Brasil na Biblioteca Mundial


É da Fundação Biblioteca Nacional o arquivo mais acessado na World Digital Library (wdl.org), projeto de digitalização de livros, manuscritos e acervos visuais e sonoros de bibliotecas de 55 países. Trata-se de um mapa da Espanha e de Portugal de 1810 (foto). Juntos, todos os documentos disponíveis tiveram 67 milhões de visualizações desde abril de 2009, quando o site entrou no ar.

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Nesta semana, Muniz Sodré, presidente da FBN, foi eleito membro do Conselho Executivo da WDL. Com os membros criadores – a Biblioteca do Congresso dos EUA e a Unesco – e conselheiros de mais quatro países, ajudará a definir os novos passos do projeto.

VENDAS
Memorial português

A morte de Saramago, dia 18, fez seus livros passarem a vender pelo menos dez vezes o que vendiam nas principais livrarias de São Paulo. A Saraiva, que havia comercializado 188 títulos do dia 13 ao 17, contabilizou 1.873 entre o 18 e o 22. Na Cultura, a venda foi 14 vezes a de antes de o autor morrer. A pedido de livreiros, a Companhia das Letras pôs no mercado mais 30 mil volumes.

NOVA EDIÇÃO
Francês nas prateleiras

Conhecido pelas adaptações que Robert Bresson fez de suas obras Diário de Um Pároco de Aldeia e Nova História de Mouchette, o francês Georges Bernanos (1888-1948) terá seu primeiro livro, Sob o Sol de Satã, de 1926 – que virou filme nas mãos de Maurice Pialat -, editado pela É Realizações. Considerado o mais original entre os autores católicos franceses do século 20, Bernanos andava esquecido no mercado nacional.

Colaborou Antonio Gonçalves Filho

Pilgrim & Lizewski

Saiu no Caderno 2 de hoje minha reportagem de capa sobre as HQs e os filmes Scott Pilgrim Contra o Mundo e Kick-Ass: Quebrando Tudo, que chegam ao País neste ano. Tinha lido a HQ do Scott Pilgrim (imagem acima) faz pouco mais de um mês e estava esperando um gancho bacana para dar um texto maior que só um sobre o lançamento (pela Quadrinhos na Cia.). E o gancho veio com Kick-Ass, que tem curiosidades em comum com a outra – como Mark Millar e John Romita Jr., criadores do Kick-Ass, confirmaram em entrevista, que posto aqui depois.

A Fernanda Ezabella tinha falado faz tempo do filme Kick-Ass no blog dela. Quando eu soube do lançamento da HQ pela Panini, vi que tinha assunto de sobra. Para quem viu ou verá o filme, recomendo muito os quadrinhos – por sinal, de longe mais violentos que o longa (abaixo, a Hit Girl em versão ilustrada).

Na edição, tem também texto do Jotabê Medeiros, outro entusiasta do Kick-Ass, sobre a Hit Girl. O meu está abaixo, com os trailers dos dois filmes.

Rebeldes (quase) sem causa do século 21

HQs e filmes de Kick-Ass e Scott Pilgrim chegam este ano ao País

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

O canadense Scott Pilgrim e o americano Dave Lizewski são garotos sem nenhum atrativo especial. Não possuem inteligência acima da média, não sofreram mutações que lhes rendessem superpoderes nem têm razões nobres para entrar em lutas. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, estão para o cinema adaptado de quadrinhos hoje como Wolverine e Homem-Aranha estiveram ao longo da última década.

Os dois personagens protagonizam, respectivamente, Scott Pilgrim Contra o Mundo e Kick-Ass: Quebrando Tudo, graphic novels e filmes que vêm sendo apontados pela imprensa internacional como os exemplos mais bem-sucedidos do gênero neste começo do século 21. “(O filme Kick-Ass é) tão pós-moderno que faz todos aqueles que vieram antes parecerem relíquias de uma era passada”, definiu o jornal inglês Guardian, um dos maiores entusiastas dos dois lançamentos. “De gargalhar, inteligente e subversivamente emocional, (Scott Pilgrim) tem o fio narrativo mais cinético que você verá no papel”, descreveu a Paste Magazine, ao incluir a HQ entre as 20 melhores da década.

O que leva as duas histórias a receber tantos superlativos? Alguns fatores podem ser levados em conta, como o fato de colocarem losers totais como heróis, uma evolução do “orgulho nerd” que filmes como Superbad (2007) colocaram nas telas nesta década. Também são histórias nas quais a tecnologia tem papel fundamental tanto dentro como fora da trama. Ambas se desdobram em mídias – viraram fenômeno na internet, com discussões sobre trailers e as trilhas sonoras antes de mesmo de chegarem aos cinemas, além de terem inspirado versões em game.

O público brasileiro poderá conferir as histórias ainda neste ano. Os dois primeiros títulos (de um total de seis) da versão em HQ de Scott Pilgrim foram lançadas por aqui no mês passado, em um único volume, pelo selo Quadrinhos na Cia.; o filme, com Michael Cera (ator de Juno) no papel principal, tem estreia mundial no segundo semestre. Kick-Ass chega aos cinemas nacionais na sexta-feira da semana que vem. Mais ou menos pela mesma época, deve sair por aqui a graphic novel, pela Panini.

A caráter. Idealizada pelo escocês Mark Millar, em uma parceria com o ilustrador americano John Romita Jr., Kick-Ass conta a história de Dave Lizewski, adolescente fã de quadrinhos que, encafifado com o fato de ninguém nunca ter tentado virar super-herói na “vida real”, enfia-se numa roupa de mergulho e sai pelas ruas, sem treinamento nem nada, à caça de bandidos.

Lizewski (vivido no filme por Aaron Johnson) vai parar no hospital duas vezes, mas uma das brigas é filmada por um estranho e cai no YouTube, o que, em tempos de internet, basta para que Kick-Ass vire hit internacional. Em meio a isso, o neo-herói esbarra em três outros personagens a caráter cujas intenções ele demora a decifrar: Big Daddy (Nicholas Cage), Hit Girl (Chloë Moretz, que tinha 11 anos na época das filmagens) e Red Mist (Christopher Mintz-Plasse, de Superbad). A direção do longa ficou a cargo de Matthew Vaughan, que também participou da criação do roteiro e bancou boa parte da produção (leia ao lado).

Com forte influência de games e mangás, Scott Pilgrim é escrita e ilustrada pelo canadense Bryan Lee O”Malley, e teve o primeiro de seus seis volumes lançad0 em 2004. Nele, o leitor é apresentado a Scott, rapaz de 23 anos que não tem emprego, toca guitarra na banda de rock amadora Sex Bob-Omb e namora uma colegial de 17 anos – pelo menos até conhecer Ramona Flowers, entregadora da Amazon.com graças a quem se envolverá na missão de derrotar sete integrantes de uma tal Liga dos Ex-Namorados do Mal.

Simultâneas. Tanto Kick-Ass quando Scott Pilgrim mal tinham ganhado forma como HQ quando suas versões em filme começaram a ser produzidas, o que de cara já as diferencia de outras adaptações de quadrinhos – o longa-metragem de Quarteto Fantástico (2005), só para ficar em um exemplo, estreou quatro décadas depois de os personagens surgirem no papel. “Assim que começamos a criar Kick-Ass, soubemos do interesse para adaptações”, diz Romita Jr. de Nova York, por telefone ao Estado, “mas ficamos céticos, porque isso acontece em Hollywood o tempo todo. Eles dizem que querem e somem.”

Apesar de não encontrar um grande estúdio que bancasse a proposta superviolenta do filme, o diretor Matthew Vaughan insistiu. E começou a trabalhar no roteiro enquanto Millar e Romita Jr. ainda criavam a graphic novel. “Foi um processo simultâneo, o que não acontece com frequência”, lembra Romita Jr. “Tanto que, na primeira metade do filme, tudo lembra muito o meu trabalho de arte na HQ. Mas, como não fui rápido o suficiente, o filme foi concluído antes, de modo que a segunda parte ficou com visual bem diferente.”

Bryan Lee O”Malley também sofreu os efeitos das filmagens precoces de Scott Pilgrim. Tinha lançado só o primeiro volume da série quando o diretor Edgar Wright iniciou a adaptação para os estúdios da Universal. “Foi complicado continuar a escrever depois que o roteiro foi feito, e o elenco, escolhido. Tive que tomar algum tempo para voltar a ficar familiarizado com minha própria versão dos personagens”, conta O”Malley, em entrevista por e-mail ao Estado.

É claro que, com tantas similaridades entre as duas produções, não demoraram a surgir outras relações. Quando Kick-Ass estreou no Reino Unido, em abril deste ano, foi precedido por um trailer de Scott Pilgrim. O personagem que luta contra os ex-namorados do mal de Ramona, por sua vez, é mencionado no filme de Matthew Vaughan. Até as personagens femininas mais fortes de cada história têm semelhanças. A jovem atriz Chloë Moretz deu vida à Hit Girl ( a verdadeira heroína de Kick-Ass) usando uma chamativa peruca rosa – uma das tonalidades também adotada nos cabelos de Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead) em Scott Pilgrim.

Depois da Mafalda

Ao longo dos últimos anos, muitos jornalistas se referiram ao laconismo de Quino durante entrevistas como fruto de enorme timidez. Não sei se acreditaram nisso de fato ou se definiram dessa maneira para justificar a ausência de respostas extensas, daquelas que dá gosto de ler, com histórias e digressões no meio, como costumam ser as entrevistas com grandes cartunistas.

Conversei com ele por telefone duas semanas atrás e a sensação foi diferente. Não é timidez o que o leva a falar pouco. Enquanto forem feitas perguntas, ele responderá, mas de tempos em tempos se perceberá aquela nota de enfado no fundo da voz. Como Quino cria cartuns há quase cinco décadas sobre o mesmo assunto, as mazelas do mundo, também não pode evitar que as perguntas feitas ao longo dessas décadas se repitam com frequência considerável. Deixei de lado aquelas que muitos fazem embora existam respostas à exaustão na internet (por que parou de desenhar Mafalda; se não voltará a desenhá-la; qual é o lance com a sopa; o que Mafalda pensaria do mundo hoje etc.), mas a questão não é essa.

Ele não gosta de dar entrevistas e não se esforça mais do que a educação exige. As respostas não surpreendem porque isso não interessa a ele. Muito menos agora, com o glaucoma que o impede de trabalhar – a quem perguntar, dirá que é pausa criativa. Talvez fosse mais honesto com ele próprio fazer como Bill Watterson, não falar. O que ele faz de melhor independe de palavras. Faladas, pelo menos.

Enfim, meu texto sobre os três lançamentos dele pela Martins Fontes no Brasil, publicado no Caderno 2 da última quinta, está aquiQue Presente Inapresentável, o mais recente deles, de 2004 (de onde saiu a imagem acima), é o meu preferido. A Mafalda funciona melhor em pequenas doses, então o Dez Anos com Mafalda chega a cansar. Mas, por falar em entrevistas, a melhor que já li com ele está na abertura desse volume. Foi feita em 1987 e inclui respostas elaboradas como ele nunca mais deu — tem inclusive a confissão de que chegou a decalcar imagens dos personagens das tiras porque tinha dificuldade em fazê-los sempre parecidos.

Sobre Crumb e Shelton na Flip

Saiu no Caderno 2 de hoje.

Shelton: 'Alguma pergunta?'

Robert Crumb e Gilbert Shelton estarão na Flip

O primeiro falará sobre a HQ Gênesis; o Estado apurou que o autor de Freak Brothers também comparecerá

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Robert Crumb, um dos mais celebrados cartunistas do mundo, virá ao Brasil pela primeira vez neste ano. O norte-americano, autor de Fritz the Cat e Mr. Natural, está confirmado para a Festa Literária Internacional de Paraty, que ocorre de 4 a 8 de agosto. O anúncio foi feito ontem pela organização, embora o acordo entre o curador da Flip, Flávio Moura, e a agente literária de Crumb, Lora Fountain, tenha sido firmado no fim do ano passado.

Ao Estado Lora afirmou que seu marido, Gilbert Shelton, criador da consagrada HQ underground The Fabulous Furry Freak Brothers, também participará do evento. Crumb e a mulher, a cartunista Aline Kominsky-Crumb, assim como Shelton e Lora, passarão seis dias em Paraty e seguirão para uma temporada de uma semana em Buenos Aires, onde têm amigos. Depois voltam para a França, onde vivem.

Crumb será entrevistado em uma mesa só para ele na Flip, na qual falará sobre Gênesis, graphic novel ilustrada a partir do texto original do primeiro livro da Bíblia e lançada em setembro do ano passado. De lá para cá, o cartunista passou algumas semanas divulgado o livro nos Estados Unidos, onde Gênesis teve exibições em uma galeria de arte de Nova York e no Museu de Arte de Los Angeles. Em janeiro, a graphic novel já havia vendido mais de 125 mil cópias apenas nos EUA. Desde então, o livro não saiu mais da lista de mais vendidos do New York Times. Os direitos da obra já foram comercializados em 17 países.

Hoje, Crumb trabalha com a mulher e a filha, Sophie, no livro Evolution of a Crazy Artist, que traça uma evolução de desenhos da jovem, de 28 anos, desde que ela tinha 2 anos. Está previsto para novembro. No Brasil, ainda neste ano, sairão pela Conrad a coletânea Meus Problemas com as Mulheres, além de reedições de Mr. Natural e Zap Comics.

Colecionador. A única informação que Crumb pediu sobre o país, segundo Flávio Moura, foi o endereço de lojas que vendam discos de 78 RPM, dos quais ele é colecionador – em entrevistas a veículos brasileiros, Crumb já disse ser fã de Pixinguinha. Moura ainda não confirma se haverá uma mesa também para Aline, que há vários anos escreve HQs com Crumb ? publicadas nos EUA pela New Yorker e no Brasil pela piauí. Também não fala sobre a participação de Gilbert Shelton.

Esta será a terceira visita ao Brasil de Shelton, que atualmente trabalha na série Not Quite Dead, sobre a banda de rock de menos sucesso no mundo. Ele também está envolvido com a produção de uma animação em stop motion de Freak Brothers, prevista para sair no ano que vem sob o título Grass Roots.

Crumb: Problemas com mulheres

E a entrevista que fiz com o Crumb no ano passado, quando ainda tava na Folha, por ocasião do lançamento do Gênesis no Brasil. Abaixo, um trecho besta de que gosto:

Folha – Já faz quase 20 anos que o sr. mudou para a França, certo?
Crumb – Faz 18 anos.

Folha – Fala algo em francês?
Crumb– Não falo nada em francês. Minha mulher fala. Não vou a cafés, fico em casa. Quero dizer, posso ir ao mercado livre e perguntar se há discos antigos: “Est-ce que vous avez des disques 78 tours?”. Isso eu posso fazer. Mas não conversar.

Folha – Como é seu dia a dia? Imagino que não leia jornais…
Crumb – Não. Ouço discos antigos e leio muitos livros. Virei um leitor voraz. Leio livros de jornalismo investigativo, que expõem meandros do sistema financeiro, da corrupção…

Folha – E os desenhos em parceria com a Aline, como funcionam?
Crumb – Depende. Trabalho as ideias dela, passamos de um para o outro. Funciona bem. Aline é uma comediante judia nata.

Folha – O sr. acha que o traço dela melhorou ao longo dos anos?
Crumb– Não… [risos]. Não ficou melhor do que era. Os desenhos dela são crus, mas são engraçados. O que você vê é tão honesto, primitivo…

Folha – Faz oito anos que os EUA sofreram os ataques de 11 de Setembro. Acredita que o país mudou?
Crumb – É complicado. Foi a primeira vez que houve um ataque daquelas proporções nos EUA, supostamente de fora. Pessoalmente, acho que o governo americano estava envolvido. Muita coisa não foi contada. Aquilo não poderia ser feito sem a ajuda de alguém de dentro. Com todos os livros que li, sabendo o que sei sobre o mundo financeiro, militar… Não duvido de que tenham feito isso, ao custo de milhares de vidas.

O mundo de Kiki

Delícia de HQ a Kiki de Montparnasse, sobre a qual escrevi no Caderno 2 de hoje.

O mundo de Kiki

Sai enfim no País premiada HQ que retrata vida de musa inspiradora de Foujita, Léger e outros artistas

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Grosso modo, a modelo Kiki de Montparnasse (1901-1953) significou para a arte que se fazia nas décadas de 20 e 30 mais ou menos o que Kate Moss representou para a moda dos anos 90. Fonte de inspiração para os grandes nomes da Escola de Paris – gente como Modigliani, Foujita e Soutine -, a francesa, assim como a inglesa Kate, também frequentou o noticiário por atividades menos nobres que posar para telas e fotos, em manchetes que alardeavam sua vida noturna e o abuso de drogas. A diferença fundamental é que Kiki protagonizou tais histórias quando elas eram de fato transgressoras.

Embora sua imagem tenha sido eternizada em obras como a fotografia O Violino de Ingres (1924), de Man Ray, e o quadro Nu Deitado com Tecido de Jouy (1922), de Tsugouharu Foujita, a modelo acabou quase esquecida em seu próprio país. Foi assim pelo menos até 1998, quando Billy Klüver e Julie Martin lançaram a biografia Kiki et Montparnasse – 1900/1930. Quase dez anos depois, em 2007, outra dupla voltou a jogar luzes sobre a vida da francesa, desta vez numa HQ. José-Louis Bocquet e Catel Muller assinam, respectivamente, roteiro e desenho de Kiki de Montparnasse, graphic novel que lhes rendeu diversos prêmios, inclusive no prestigioso festival francês de Angoulême, e que sai só agora por aqui, pelo selo Galera Record.

Uma série de fatores levou Kiki a se destacar entre a infinidade de modelos de nu artístico da época – ou, nas palavras de José-Louis Bocquet, em entrevista por e-mail ao Estado, “tornar-se a exceção que permanece na memória”. “Nos anos 20 e 30, em termos de glamour e fantasia coletiva, as modelos de pintores foram equivalentes às top models de hoje, de fama enorme e efêmera”, avalia o roteirista. “Mas Kiki foi além, virou cantora em voga em cabarés de Montparnasse, e suas fotografias feitas por Man Ray (com quem ela viveu por muitos anos) foram difundidas no mundo todo. O Violino de Ingres é um dos cartões postais mais vendido no planeta.”

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A íntegra do texto está aqui.

Sobre Freud, Lionel Shriver e uma semana longe

Ok, não tem graça nenhuma ficar uma semana sem atualizar o blog.

Em minha defesa, digo que foi uma semana mais curta que a média. Tanto no sentido literal, já que terminou com feriado, como no figurado, com um dia inteiro no Congresso do Livro Digital (que rendeu só um microtexto durante a semana, mas deu ideia de uma reportagem que sai amanhã no Caderno 2 Domingo e que deve entrar no ar em algum lugar por aqui); a cobertura do evento de lançamento das Obras Completas de Freud, com José Miguel Wisnik e Caetano; e uma entrevista com o cartunista francês Hervé Bourhis, cuja HQ O Pequeno Livro do Rock (imagem abaixo) acaba de sair pela Conrad.

Mais, é claro, a coluna Babel, que nesta semana traz notinhas exclusivas como a vinda para a Flip da Lionel Shriver, autora do sensacional Precisamos Falar Sobre o Kevin; a publicação em julho do Notas Sobre Gaza, do Joe Sacco, pela Quadrinhos na Cia; e o contrato do Antonio Xerxenesky, um dos criadores da Não Editora, com a Rocco. Agradeço a todas as fontes envolvidas. =P

Em breve voltamos à programação normal (que, a bem da verdade, quem lê isso aqui já notou que não tem frequência muito maior que dois posts por semana…).

Um pouco de Babel na Biblioteca de Raquel

Correr atrás de notas exclusivas para coluna é algo que nunca tinha me passado pela cabeça. Ou, ok, até tinha, mas isso é uma longa história… Mas admito que, estresses à parte, tenho achado divertido arrumar coisas para a Babel, a coluna sobre o mercado editorial do Sabático.

Tudo bem que duas semanas foram o suficiente para perceber que as coisas quase nunca saem como o esperado. Meu texto de abertura da coluna deste sábado caiu na última hora – como na semana passada, por sinal. É uma droga quando acontece, mas depois achei que foi até sorte. Juntei uns pontos inesperados e consegui em primeira mão essa história abaixo. Pros fãs de HQs é ótima notícia.

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Leya e Saraiva entram no mercado de graphic novel

Raquel Cozer

O lançamento do selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, há menos de um ano, abriu os olhos de duas outras grandes editoras para a disputa por esse mercado. A Leya acaba de fechar uma parceria com a Barba Negra para lançar ao menos dez títulos em 2010. A princípio, serão três estrangeiros, incluindo a celebrada Stitches, de David Small (que por aqui sairá como Cicatrizes) e sete nacionais – uma delas, uma graphic novel com peças de Plínio Marcos roteirizada por Mário Bortolotto. A editora portuguesa também comprou da americana First Second os direitos de tradução da HQ online Zahra’s Paradise. No ar em oito idiomas, Zahra’s poderá ser lida na rede em português já na semana que vem e sairá em papel em 2011. Já a editora Saraiva tem pelo menos cinco livros em quadrinhos previstos para sair até setembro, como The Beats, por Harvey Peaker, e Terra do Nunca, versão de Brom para a história de Peter Pan.

O quadrinho acima é do Stitches, que sai pela Leya.

Soube que a Leya foi só uma entre várias editoras brasileiras que entraram em contato com o povo da First Second depois do meu texto sobre Zahra’s Paradise no Caderno 2, em fevereiro. Outras consideraram prematuro apostar numa HQ on-line que mal tava começando. Não sei. Acho que, para uma editora sem tradição em quadrinhos (a bem da verdade, ainda sem tradição em nada no Brasil), foi bola dentro arriscar. Vamos ver se assim dá para esquecer o evento Wannabe July.

Resistência em quadrinhos

Posso estar ficando monotemática com essa coisa de Irã, mas, na semana passada, quando esbarrei o primeiro capítulo de Zahra’s Paradise, a graphic novel on-line sobre a situação pós-eleições de 2009 naquele país, não resisti a ir atrás. Falei com o editor da série, Mark Siegel, da First Second (que publicará a versão impressa depois que os capítulos forem todos postados na internet), e eles me puseram em contato com um dos autores, Amir, que assina assim, só com o primeiro nome, para evitar represálias para a família dele que ainda vive no Irã.

Saiu no Caderno 2 de hoje, mas o link para a versão impressa não entrou no ar, e o on-line puxou uma versão não-finalizada do texto. Então o resultado taí, abaixo. Acho que foi a pauta que mais gostei de fazer nestes dois primeiros meses de Estadão (Update: a versão on-line, aqui).

Graphic novel on-line é a nova cara da resistência no Irã

HQ Zahra’s Paradise, que estreou na última sexta, destaca situação no país após as eleições de 2009

Raquel Cozer

O momento em que a estudante Neda Soltan, caída no chão de asfalto em Teerã, revirou os olhos para o alto e começou a sangrar pela boca e pelo nariz tornou-se o símbolo maior dos protestos que se seguiram às fraudulentas eleições de junho de 2009 no Irã. Foi naquela época que a HQ Zahra’s Paradise, idealizada por um escritor iraniano e um cartunista árabe, começou a ganhar forma. A história fictícia trataria da busca de uma mãe, Zahra, por um filho, Mehdi, desaparecido durante as manifestações.

Não só a agonia da jovem teve influência, mas também o modo como a imagem chegou ao público, em vídeo postado horas depois do ocorrido no YouTube e linkado ao Facebook e ao Twitter para, só então, repercutir nos meios tradicionais. Em vez de esperar dois anos até a finalização de uma graphic novel de 160 páginas, a editora e-americana First Second resolveu seguir o exemplo do iraniano que jogou as cenas na rede e, do papel, o projeto migrou para a internet. O primeiro capítulo foi ao ar na sexta-feira passada, na página www.zahrasparadise.com, e novos episódios serão publicados todas as segundas, quartas e sextas pelos próximos 18 meses, quando, enfim, ganharão versão impressa.

É a maneira certa de chegar ao público, acredita o editor da HQ, Mark Siegel, numa época em que a realidade não se dissocia das novas mídias. “Quando o que aconteceu em Teerã foi tuitado e postado em blogs, o mundo teve a possibilidade de ver coisas que regimes repressivos como o dos aiatolás em geral escondem”, diz Siegel ao Estado, de Nova York. O método permite também que a trama, que avançará no tempo até coincidir com os dias finais da publicação on-line – prevista para agosto de 2011 -, seja adaptada ao desenrolar dos fatos. Embora o fim esteja definido, as reviravoltas no governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad e do líder supremo Ali Khamenei podem levar a HQ a ganhar contornos inesperados.

Os autores de Zahra’s Paradise assinam os quadrinhos apenas com os primeiros nomes, Amir e Khalil. Com familiares na região em conflito, temem represálias. Embora a autora iraniana Marjane Satrapi  tenha aberto portas com sua HQ Persépolis – cuja trama se passa em 1979, pré-Revolução Islâmica -, a situação é diferente. “Ela deu uma voz nunca antes imaginada à geração dela naquele lindo trabalho autobiográfico. Nossos quadrinhos são fictícios, mas, ao mesmo tempo, tratam da história de todo mundo. A maior dificuldade é que diz respeito ao momento presente”, diz Amir por telefone ao Estado, com seu tom de voz suave e cuidadoso que, por vezes, beira o inaudível.

Anonimato

Amir é também jornalista, documentarista e ativista de direitos humanos. Antes de se estabelecer nos Estados Unidos, passou temporadas no Afeganistão, no Canadá e na Europa. Khalil, de origem árabe, faz cartuns desde muito jovem, embora Zahra’s Paradise seja sua primeira graphic novel, e também tem obras como ceramista e escultor. Os dois têm certo reconhecimento nos EUA – mas a HQ eles só assinarão com seus nomes completos caso a situação mude bastante no Irã.

Parte das primeiras reações à publicação on-line mostra que os dois têm razões para a precaução que tomam. Alguns hate comments (comentários anônimos com ameaças) tiveram de ser apagados da página virtual, que abre espaço para internautas opinarem. Críticas menos agressivas foram mantidas. “Alguém que reza não manteria bebidas alcoólicas em sua casa. Isso seria um grande pecado”, escreveu um internauta islâmico, ao qual outro leitor tratou de responder: “Alguém que teme a Deus de verdade não julga o comportamento dos outros.”

Um outro internauta elogia a iniciativa, mas faz a ressalva de que, no Irã, mulheres de religiões diferentes nunca teriam uma relação tão afetuosa (a HQ começa com a mãe de Mehdi, islâmica, dando um abraço em uma amiga armênia, da minoria cristã). E de que Zahra “parece árabe, e não iraniana”. “Num país como esse, onde se vê tantas culturas diferentes numa mesma vizinhança, é claro que você terá muitos pontos de vista diferentes”, minimiza Siegel. “Amir, como iraniano, cria a partir de algo que fez parte de sua realidade desde sempre. Cada detalhe tem base na vida real.”

A maior parte dos comentários, no entanto, é de apoio. Um leitor sueco se oferece para traduzir os textos para o seu idioma; outro, para o hebraico. Siegel vê as iniciativas como um sinal positivo, mas as traduções que já estão no ar – persa, árabe, francês, espanhol, italiano e holandês – são feitas por profissionais. Antes mesmo de iniciar a série, a First Second havia conseguido o aval de seis grandes editoras mundo afora, responsáveis por essas traduções e pelo futuro lançamento da HQ impressa. Por enquanto, nenhuma editora do Brasil se ofereceu para publicar a graphic novel. Internautas brasileiros que não falem outro idioma podem, ao menos, entender algo da história em espanhol.

Ausência

Zahra’s Paradise é, como afirma Amir, uma narrativa sobre a ausência, sobre a mãe que não perde a crença no reencontro com o filho. Não à toa o título, além de remeter à protagonista da trama, é o nome de um cemitério daquele país. “A sensação de perda é algo que quase todo iraniano conhece”, diz o autor. Ele não diminui sentimento na vida de pessoas de outras nacionalidade: “Todos nós, no mundo inteiro, conhecemos ou conheceremos a sensação da perda, de um jeito ou de outro.” Mas acredita que a convivência dos iranianos com a sensação de perder um ente querido de uma hora para a outra interfere na forma como a arte é produzida naquele país.

“A ausência se torna parte da vida. A questão é de que maneira você lida com isso, e criação artística foi a maneira que encontrei”, diz. Amir destaca que o cartum, símbolo mundial de resistência política, justamente por isso é forte naquela região. Não poucos amigos, conta, tiveram de abandonar o país após fazerem desenhos “hilários” de Ahmadinejad. “Não importa quão forte o Estado se torne, os iranianos, em especial as novas gerações, encontram um modo de externar suas ricas vidas interiores.”

São os jovens do mundo todo o público que Amir e Khalil mais esperam atingir, para que entendam a realidade muito além do que permitem entrever as manchetes dos jornais. Também por isso decidiram fazer de um dos personagens principais, o irmão do jovem desaparecido, um blogueiro. Com a ajuda da internet, o rapaz vasculhará no limbo extrajudicial pistas que possam levar a Mehdi.

“A juventude tem muita urgência em se comunicar, em se fazer escutar. Quando a Revolução de 1979 aconteceu, ninguém fora do país tinha bem a dimensão do que estava acontecendo ali. A internet virou essa realidade do avesso”, diz Amir. “Mostrou que o mundo se preocupa com o Irã, o que é uma mensagem muito inspiradora para todos nós.”

O menino mais esperto do mundo

O cartunista Chris Ware demorou tanto a decidir se dava ou não entrevista para jornalistas brasileiros — no fim das contas, não deu — que a sensacional HQ Jimmy Corrigan, o Menino Mais Esperto do Mundo, lançada em novembro pela Quadrinhos na Cia., quase passou em branco por aqui. À espera de aspas do norte-americano, os jornalões deixaram na gaveta pautas sobre o livro, com a notícia correndo o risco de ficar “velha” para os padrões apressadinhos do mercado editorial. Em novembro, que eu tenha visto, só o suplemento de sábado do Brasil Econômico, o Outlook (nas págs. 12 e 13), deu resenha do “Ulisses dos comics“, por Ronaldo Bressane. De resto, Twitter e blogs garantiram alguma divulgação.

O Caderno 2 deste sábado faz enfim justiça ao lançamento numa boa capa de Ubiratan Brasil. Sem entrevista com o autor, o Bira falou com o editor do selo de quadrinhos da Companhia das Letras, André Conti, e com o tradutor do livro, Daniel Galera.  E traçou um belo perfil do esquisitão Ware, cuja personalidade é resumida logo no primeiro parágrafo, numa declaração pinçada pelo repórter do graphic designer Chip Kidd: “Durante os exatos 27 minutos que durou nossa conversa, ele disse ‘Sinto muito’ oito vezes e ‘Não fique triste comigo’ outras cinco”.

Jimmy Corrigan reencontra o pai

Jimmy Corrigan, solitário, desprezado no trabalho e atormentado pela mãe, não é Chris Ware, apesar do forte teor autobiográfico da HQ — como o personagem, o autor também teve um reencontro tardio com o pai. Mas a frase de Kidd sobre Ware é a perfeita descrição de Corrigan: a postura encurvada, a mão tensa na boca, o olhar amedrontado, a pele num leve tom mais avermelhado (quase não se percebe) quando Corrigan está para morrer de terror ou constrangimento.

Com as patéticas ilusões diárias de Corrigan, mais a enorme derrota que é a vida dele, a HQ seria de cortar os pulsos, não fossem as boas surpresas que o obcecado detalhismo do cartunista reserva. Bem que, em 2005, a New Yorker sentenciou: Jimmy Corrigan é a primeira obra-prima formal dos quadrinhos.