Ok, de volta pra casa. Uma faxina rápida na biblioteca depois de uma semana hospedada no blog do Estadão na Flip. Não pretendia voltar a nenhum dos assuntos abordados por lá, mas percebi que fiquei devendo a segunda metade da entrevista com Aline Crumb, que no ano que vem lança um livro com o Crumb e terá, no Brasil, outro publicado pela Conrad, só com o trabalho dela. Acho que a esta altura ninguém aguenta mais ouvir falar no assunto, mas promessa é promessa.
Vi um monte de gente reclamando da participação da Aline na mesa do Crumb e do Shelton. Aos que reclamaram, digo só uma coisa: vocês não entenderam nada (ops, desculpe, esqueci de medir as palavras). Aline é interessantíssima. Tem uma delícia de senso de humor e abriu caminho para gerações de quadrinistas mulheres – gente que todo mundo admira, como Marjane Satrapi.
Segue abaixo a íntegra da conversa que tive com ela na quarta passada, no jardim da pousada da Marquesa, em Paraty. No blog da Flip, cheguei a postar até a parte em que ela conta da mágoa do Crumb com a New Yorker.
Pra facilitar para quem já leu a primeira metade: a parte nova aparece a partir da ilustra feita por Sophie Crumb, a filha do casal, a moça de biquíni.
Entram nessa segunda metade os comentários de Aline sobre o trabalho de Sophie, uma descrição incrível de como foi o trabalho na história que ela, Sophie e Crumb desenharam juntos para a New Yorker, e uma avaliação da nova geração de cartunistas mulheres, entre outras coisas. Lora Fountain, mulher de Shelton e agente literária de toda aquela galera, também participa da conversa.
E, P.S., acabo de ler no G1 que Crumb escalou o corrimão da Livraria da Vila para fugir dos autógrafos. Sorry. Gênio.
Aqui no Brasil, do seu trabalho, é conhecido só o que faz junto com o Crumb…
Aline: No ano que vem, sairá pela Conrad um livro com todo o meu trabalho. Não sei ainda como chamarão.
Lora: Da última vez que falei com eles, seria algo como Aline: Uma Autobiografia Não-Autorizada
Aline: Por mim, tudo bem, não vejo problema. Mas o título do livro em que se baseou esse da Conrad é Need More Love, que eu acho que é um bom título. E Love That Bunch, um livro mais antigo. Há algumas coisas dos dois livros. Need More Love tem fotos, pinturas e textos, é um livro multifacetado. É um grande livro, uma autobiografia gráfica, com todos os tipos de imagens. Mas Conrad usará apenas histórias desse trabalho.
Você também é pintora, então.
Aline: Comecei meu trabalho como pintura. Fiz meus estudos em aquarela e óleo em tela, me formei e sou professora de arte, mas só dei um ano de aula em toda a minha vida. Quando me formei, nos anos 60, me interessava pelas comics underground, o trabalho do Gilbert, do Crumb, e de um artista chamado Justin Green, que fez um trabalho muito autobiográfico e me inspirou a fazer o mesmo. Comecei a fazer quadrinhos naquela época, embora não tivesse ideia de como publicar, o que fazer. Então me dei conta de que todos os quadrinhos estavam sendo publicados em San Francisco, então fui para lá, em 1971.
Lora: Você foi para lá originalmente para conhecer o Justin.
Aline: Sim, fui conhecer Justin Green, que era o artista que eu admirava de fato. Queria falar com ele e perguntar coisas. Ao mesmo tempo, alguns amigos nossos disseram que eu parecia um personagem de Robert Crumb e me levou para uma festa onde o conheci, e também Lora e Gilbert, ao mesmo tempo.
Lora: O que significa que todos nós nos conhecemos por quase 40 anos…
Você desenhava naquela época, certo, Lora?
Lora: Sim, nós fomos as primeiras cartunistas mulheres naquela época. (Para Aline) Seu timing foi perfeito de chegar a San Francisco naquela época.
Aline: Eles precisavam de mais trabalhos desesperadamente, porque não havia cartunistas mulheres. Se você parar para pensar, não tinha isso. Então eles estavam tentando atrair isso, e para qualquer uma que pudesse minimamente desenhar um quadrinho eles diriam: OK, você pode estar nesse livro. Foi por isso que conseguimos entrar nisso.
Seus cartuns já eram autobiográficos naquela época, Aline?
Aline: Sim, eu não sabia fazer mais nada. Não conheço nenhum outro assunto bem o suficiente para poder desenhar a respeito.
Lora: Você trabalhou naquele livro que fizemos para o (neurologista e escritor) Timothy Leary (El Perfecto)?
Aline: Sim, mas escrevi sobre mim, sobre LSD. Participei, mas escrevi sobre minha própria viagem de LSD.
E, Lora, por que parou você de desenhar?
Lora: Eu? Porque… algumas pessoas pessoas podem fazer isso, e outras não. E eu não posso. Não tenho o talento ou a paciência para desenhar boas histórias. Comecei a me interessar mais por vídeo e fotografia.
Quando conversei com Crumb, no ano passado, ele me disse que você (Aline) tinha mais talento para o roteiro que para o desenho de uma HQ, um humor judeu…
Aline: Sim, é verdade. Quando trabalhamos juntos, eu faço quase todo o roteiro. É como um time de duas pessoas, ele quer dizer uma coisa, e eu vou e quase sempre faço o humor. E, sim, é verdade, sou mais uma roteirista de quadrinhos. Meu desenho é muito primitivo e estranho e idiossincrático. Prefiro pintar, não sou uma cartunista profissional nem estou interessada nisso. Meus quadrinhos não são muito comunicativos no que diz respeito a forma dos quadrinhos, eles são muito pessoais e doidos. Eles são mais apreciados por pessoas que gostam de ver minha arte em galerias. É mais fácil para eles olhar para os meus quadrinhos do que é para as pessoas que gostam de quadrinhos profissionais. Não uso nenhuma das técnicas formais dos quadrinhos.
De que tipo de técnicas você fala?
Aline: Estilização, simplificação, por exemplo, quando você tem um personagem, fazê-lo sempre da mesma maneira o tempo todo. Quando desenho, eu mudo o tempo todo. Se estou de bom humor, eu me desenho melhor, se estou de mal humor, me desenho mais feio. Mudo meu cabelo, meu peso. Cada desenho para mim é um desenho, não penso no sentido de arte sequencial, expressão comercial, de manter um público.
E você é tão magra, mas se desenha tão grande nas HQs em que aparece com o Crumb…
Aline: Eu costumava ser maior. E ainda sou muito, sabe (levanta o braço e mostra os bíceps sob a blusa)… forte. Eu me sinto como uma guerreira. Dou aulas de pilares seis horas por semana. Eu gosto de comer, mas também de me mover muito.
Aline: É insano como isso funciona. Não deveria funcionar, mas, por alguma razão, funciona. Eu aproveito as deixas. Ele coloca a linha lá e eu aproveito as deixas. Mas, em termos de desenho, é totalmente irracional, porque o desenho de Robert é tridimensional, e o meu é chapado. Da primeira vez que fizemos isso, não era para publicar, era só para nos distrair. Foi em 1974, eu acho, e eu tinha caído e quebrado a perna, e estava chovendo, e estávamos no campo, e eu estava muito entediada e o deixando louco. Então, para me deixar ocupada, meu irmão e eu costumávamos fazer quadrinhos juntos, como ele fazia com o irmão dele, Charles, então ele falou, vamos fazer isso.
Lora: Para evitar que você o deixasse louco.
Aline: Sim, para que ele não pirasse. O primeiro que fizemos foi muito louco, a história vai a todo lugar, espaço sideral, criaturas que aterrissam na nossa fazenda,Timothy Leary aparece, é realmente louco. Não tentamos fazer nada coerente porque não pensávamos em publicar, mas daí um editor viu e quis publicar.
Aline: Temos esses dois livros chamados Dirty Laundry, dos anos 70, e uma compilação. Fizemos para jornais locais, para a revista Weirdo.
Lora: Quando começaram a fazer para a New Yorker?
Aline: A primeira coisa que fizemos para a New Yorker foi no meio dos anos 90. Fizemos algo, a primeira acho que foi sobre nossa reação ao documentário de Terry Zwigoff, chamado Crumb, que saiu em 1995. A New Yorker pediu para nos escrever sobre nossa reação. Nós queríamos desaparecer depois daquele filme. Robert usava chapéu e não usava barba, mas ele começou a ser reconhecido em todo lugar. Então ele mudou o tipo de chapéu e deixou a barba crescer, mudou o visual.
Lora: Ele ainda usa o mesmo tipo de roupa.
Aline: Não, naquela época ele usava uns casacões de homem velho, agora ele acabou voltando a usá-los, mas durante aquele tempo ele parecia mais um francês, com uma jaqueta. Ele foi ver o filme num cinema central onde estariam todos os seus fãs, com esse visual diferente, barba e tal, e ele estava na tela, e dentro do cinema, e ninguém o reconheceu.
Lora: Teve uma vez que um fã o parou e disse que o viu no filme, mas estava falando sobre Max, e não sobre Crumb. Achou que Crumb era o irmão.
Aline: Sim, sim. Hoje ele ainda é muito reconhecido, mas naquele época foi mais estranho.Em qualquer lugar alguém o reconhecia, era demais.
E aqui em Paraty, como tem sido? Ele quase não saiu da pousada…
Aline: Não, não muito.
Lora: Nós acabamos de chegar, também, ontem…
Mas vocês e Shelton foram passear, ele não.
Lora: Ele estava cansado. Não estava com fome, e nós estávamos. Mas nós saímos ontem à noite para jantar com ele.
Aline. Ele não está se escondendo. Ele virá para almoçar agora. Ele é um cara muito doce, muito legal. É tímido. E, depois de certo ponto, ele não pode mais falar. Ele não gosta de falar dele mesmo.
Lora: E ele falou tanto do Gênesis no ano passado. Você falou com ele naquela época, Raquel, logo no começo, mas você foi uma em um milhão…
Aline: Centenas de milhões. Foi muito. Ele divulgou muito, fez uma tour nos EUA, fez uma conferência com cententas de jornalistas.
Ele deve estar cansado de responder sempre as mesmas coisas.
Aline: Sim, as perguntas são sempre as mesmas. É normal, os jornalistas fazem as perguntas que eles têm de fazer, é normal, nada contra o jornalismo. Mas, depois de um tempo… Depois de um tempo ele não aguenta mais falar sobre o assunto.
E como vocês dois sabem quando têm uma história em parceria?
Aline: A gente não tem nenhuma regularidade para isso. A New Yorker sempre nos pede coisas, mas ele não quer mais fazer nada para eles.
Por quê?
Aline: Porque eles pediram a ele uma capa, e ele fez, estava muito boa. Era meio controversa, porque pediram a ele que fizesse uma capa sobre casamento, e ele fez uma sobre casamento gay, e eles não usaram. Até aí tudo bem, ele não se importa, mas eles nunca explicaram a ele por que não usaram a capa. Ele perguntou muitas vezes, e nunca teve resposta. Ele disse: “Se eles me dissessem a razão, estaria tudo bem, eu faço outras coisas para eles. Mas, como eles não tiveram coragem nem respeito o suficiente para me explicar isso…”. Ele está zangado. É compreensível. Durante um ano, eles ficaram dizendo que usariam, que usariam, fizeram isso dez vezes, durante um ano, eles pagaram pela capa… Mas ele ficou realmente frustrado de não saber por quê. Se não gostaram. Ele trabalhou com muito afinco naquilo, e não tiveram coragem de ligar para ele e dizer o que houve. Era só dizer: “Não é seu melhor trabalho”.
Mas vocês ainda fazem histórias juntos?
Aline: Sim, estamos trabalhando num novo livro. O título provisório é Drawn Together, que tem dois significados em inglês, atraídos um pelo outro e desenhando juntos. Sairá simultaneamente em francês e em espanhol. Incluirá o trabalho New Yorker, o trabalho anterior e algumas outras histórias. Sai no ano que vem.
Será a história de amor de vocês dois?
Aline: Sim… Sim. Bem. Como você quiser chamar (risos). Mas haverá trabalhos antigos que provavelmente quase ninguém viu, que fizemos há muito tempo foi publicado só em editoras muitas pequenas, que poucas centenas de pessoas viram. E histórias totalmente inéditas.
Aline: Sim, o livro dela sai em novembro. Se chama Evolution of a Crazy Artist. Tenho aqui comigo uma mostra desse livro, uma apresentação de 16 páginas, posso te mostrar. Robert trouxe.
E como você se sente em ver esse trabalho publicado?
Aline: Ela já teve publicados dois livros, quando estava com 20 e poucos, por conta dela.
Mas este é um que reúne toda a trajetória dela, da qual vocês fazem parte.
Aline: Sim. Este é um livro incrível. Mesmo que ela não fosse minha filha, nunca houve um livro como esse feito antes, até onde eu sei. Mostra o desenvolvimento de um ser humano, por meio de seu desenho, dos dois anos até os 29 anos, de ser um bebê até ser uma mãe. Tudo no meio tempo, sua adolescência, descobrir as drogas, ser rebelde, tudo está lá. Vai desde coisas que nós guardamos até coisas que ela própria guardou pensando em mostrar um dia. Ela fez as escolhas com Robert. Ela escreveu explicações sobre o que estava acontecendo na vida dela no momento daqueles desenhos.
Lora: Mas também, eu acho, só pessoas como você e Robert poderiam ter reunido material como esse. Porque vocês guardaram tudo. Eram o que, 10 mil desenhos?
Aline: Dez mil desenhos, pelo menos. Porque Robert é um arquivista, sabe? Ele é um colecionador. E ele guarda desenhos de toda época, e anota: o que é isso, quem é esse. Haverá comentários em cada desenho. Temos uma estante cheia de desenhos dela. E, então, ela começou a guardar desenhos quando ela tinha uns 8 anos. Ou seja, ela tem um mundo inteiro que ela guardou dos 8 anos até hoje.
Lora: Você disse que tinha uma pilha desta altura…
Aline: Não, mais, muito mais. Ocupou meu escritório inteiro. Pilhas e pilhas e pilhas. E exploramos tudo aquilo e escolhemos algo que mostrasse uma evolução coerente do trabalho dela. E acho que fizemos um belo trabalho. Tem 300 páginas, algo assim. E é muito interessante, porque mostra desde o momento em que essa pessoa primeiro percebeu seu papai, sua mamãe e sua casa, até notar um mundo maior. Sabe, a moralidade dela se desenvolveu, os pontos de vista dela se desenvolveram, e de repente ela se tornou muito rebelde. Tudo isso aconteceu. E então ela volta e encontra Simon e eles têm um bebê, e é toda uma história por meio dos desenhos e escritos pessoais dela.
Lora: E ela é uma artista incrível.
E ela lembra algum de vocês dois nos desenhos?
Aline: Vou te mostrar um autorretrato que ela fez, ok? Recentemente, para o livro. Esse é para uma edição limitada, é um silk-screen que estará no livro (Aline revira a bolsa enquanto fala).
Lora: Conte a ela sobre o telefonema que vocês receberam da mulher em Nova York.
Aline: A mulher que… Espere, deixe-me achar. A mulher… em Nova York… é uma professora de crianças esquizofrênicas, e ela escreve livros sobre crianças. E ela viu o livro de Sophie e disse que é o melhor livro que ela já viu na vida. Disse que é verdadeiramente miraculoso. Ficou verdadeiramente impressionada. Disse que era único que pais dessem ao trabalho de um filho pequeno tanta importância. Disse que a voz de Sophie aparece com tanta força desde o começo. Eu não sei se é verdade, mas foi bom ouvir isso.
Quantos anos ela tem agora?
Aline: Ela tem quase 29.
E o filho dela?
Aline: Está com dez meses. (Aline encontra o autorretrato no celular). Aqui está o retrato dela. Que ela fez quando…
Nossa, lindo. (Sorry, people, esqueci de pedir para ela me mandar. Sophie parece muito bonita, assim como o traço dela)
Aline: É, não é? Ela parece mais velha e mais feia do que ela é, mas dá para ter uma noção. Ela é realmente bonita.
E esses cartuns da New Yorker… Tivemos publicados aqui uma história que vocês três fizeram juntos.
Aline: Sim, sim. Chama-se Não Fale com a Boca Cheia, é sobre uma reunião em família.
E como foi fazer isso?
Aline: Nós três? Foi complicado (risos). Fizemos primeiro tudo a lápis. Sem tinta. Cada um de nós tinha uma ideia, vamos dizer que na primeira página cada um teve uma ideia. Eu pensei no título, Não Fale com a Boca Cheia. Então comecei a história. Nós três no trem, ela morrendo de vergonha de mim. Como um adolescente fica da mãe. No trem, eu estava comendo, e ela falava: “Mãããe, você pode por favor terminar de mastigar antes de começar a falar”. Estávamos no trem, enfim. E então ela dizia: “Espere, quero dizer uma coisa”, e então ela colocava o lápis dela… Sem desenhos, por enquanto só estávamos escrevendo. E então Robert fazia. Então escrevemos toda a primeira página. E então toda a segunda. E a terceira. Quando tínhamos toda a história mais ou menos escrita, cada um de nós pegou uma página e fez seu desenho a lápis. E trocamos, cada um fez seu personagem na página, e trocamos, cada um fez seu personagem na página. Então tudo estava à lápis. Então cada um de nós pegou uma página e fez a tinta seu personagem e sua fala. E trocamos.
Lora: Ou seja, não só os desenhos próprios feitos por cada pessoa, mas também as falas nos balões. Cada qual com seu estilo de letra.
Aline: E Robert em geral faz o logo, porque ele é realmente bom nisso.
Lora: E quanto ao desenho de fundo?
Aline: Todos nós. Nós nos dividimos nisso.
E com que frequência você desenha? Sei que Crumb desenha tipo todo dia, mas e você?
Aline: Desde que o bebê de Sophie nasceu, não desenhei mais, nos últimos dez meses. Porque comecei a ajudar Sophie com o livro dela, e o Gênesis estava saindo, ajudei Robert com a divulgação. E também estava ajudando Sophie com o casamento dela. Então, pensei, é isso.
E não sente falta de desenhar?
Aline: Ah, eu sinto. Nos últimos dez meses não pude. Fiquei feliz de poder ajudar nesses últimos dez meses, de passar o tempo com meu neto, estou muito próxima do bebê agora, assim como Robert, mas agora, em setembro, quando voltar à França, quero voltar a meu trabalho, a pintar e desenhar. Mas não me arrependo de um segundo que dediquei ao meu neto, nem um minuto.
Lora: Foi um momento importante para você e para Robert.
Aline: Sim, sim, foi. Estou muito feliz. É minha filha única, meu único neto, então.
Ela vive na cidade de vocês?
Aline: Não, vive a 20 minutos da gente.
Lora: O que foi realmente bacana no casamento, porque o casamento aconteceu em julho, é que estavam lá os pais, os avós, os bisavós, dos dois lados da família.
Aline: Três bisavós e quatro tataravós do bebê. Não me arrependo de nada.
Quando você começou, não era comum ver mulheres cartunistas. E agora, na França, e também nos EUA, há esse cenário tão forte em HQs. Você acompanha isso de perto?
Aline: Sim, eu me interesso muito. Nos Estados Unidos, há duas ou três gerações de mulheres cartunistas que começaram depois da gente. E isso é lindo pra mim. Minha filha é parte dessa última geração. E acho que se torna cada vez melhor. Quando começamos, tudo era muito cru, não havia história, era uma forma que não sabíamos bem como trabalhar, e tínhamos gente de formas artísticas muito diferentes que acabaram chegando aos quadrinhos. Agora as pessoas estudam quadrinhos na faculdade, eles ensinam isso. Phoebe Gloeckner, que foi uma cartunista que apareceu uma geração depois da gente, ela é agora uma professora de HQ na Universidade de Michigan. E em Harvard há uma professora ensinando meu trabalho, o nome dela é Hilary Chute, ela fala do meu trabalho no curso dela. Acho que as mulheres encontraram o lugar certo nesse cenário, e agora existe um trabalho muito importante das mulheres. Isso me faz feliz, me faz sentir pioneira. Hoje em dia você tem gente como Posy Simmonds e Tamara Drewe e Alison Bechdel e Phoebe Gloeckner e Marjane Satrapi. Tudo isso é resultado, eu sinto, do que fizemos. E é o que me deixa feliz.
Lora: Porque, naquela época, estávamos tateando no escuro.
Aline: Sim, nós não sabíamos. Não existia forma nem tradição. Não sabíamos… Mas quando você vê um trabalho inspirado em você ir um passo além e um passo além e um passo além… Agora se tornou uma forma de arte madura que as pessoas podem estudar em Harvard, voc6e pode estudar literatura e você pode estudar quadrinhos. Isso é algo que se pode fazer e que não existia.
Você acha que graphic novel é literatura?
Aline: Sim. Totalmente.
Porque aqui no Brasil há muitos quadrinistas que rejeitam essa ideia.
Aline: Preciso dizer que acho que há uma série de trabalhos que… Há muitos cartunistas que são muito visuais, e as palavras são menos importantes… Há muito cartunistas que nem palavras usam. Mas há outros que são muito mais literários. E seus desenhos prescindem de palavras. E existe todo esse meio termo. Vocë tem Chris Ware, que, às vezes, não precisa das palavras.
Lora: E há também Shaun Tan, que ganhou melhor álbum estrangeiro uns três anos atrás em Angouleme. Não há uma única palavra…
Aline: Tem também Blanquet, que é totalment visual. Mas daí você tem alguém como Art Spiegelman, que fez Maus, e é totalmente um trabalho de literatura. O desenho é muito secundário. Então, dentro dos quadrinhos, você tem ambos, você tem algo totalmente visual e algo totalmente literário. E ainda algo totalmente no meio disso.
Lora: Simmonds é muito literária E Tamara Drewe também.
Aline: Se você olha para Marjani Satrapi, o desenho dela é muito simples, não é um desenho particularmente interessante, mas a história é fabulosa. É muito literário. Então, você não pode generalizar, precisa olhar artista por artista. Mas é uma forma de arte incrível, que pode se tornar poderosa conforme for usada.
Sabendo que seu ponto forte é o texto, e não a ilustração, você lançaria algo que fosse só texto?
Aline: Bem, em Need More Love há muita coisa que é só texto. Mas há muito texto, pintura, e muitas fotos. Eu escrevi muito também. Mas também pinto. Sou muito visual, pintar é meu primeiro amor. Se você quer saber o que me faz mais falta como artista, é pintar, isso é o que realmente desejo. Sou mais uma artista visual que uma escritora no meu coração. Acima de tudo, penso em mim como pintora e artista visual. Comecei a pintar aos oito anos de idade, fui muito precoce nisso, foi meu primeiro amor.
Desenhar é mais difícil que pintar para você?
Aline: Quando desenho quadrinhos, não me preocupo tanto se o desenho é bonito. Estou interessada em expressar a feiúra e a angústia…
E suas pinturas….
Aline: Acho que elas são mais bonitas, acho.
Lora: Mesmo que o assunto não seja particularmente interessante, algo que você não espere… Tenho uma pintura de Aline que é uma flor quase morrendo. E é tão…
Aline: Escura, eu uso muito preto.
Lora: Eu amo aquilo.
Aline: Obrigada. Quando pinto, estou muito mais preocupada com a estética. O senso de cor e forma. É um processo muito diferente. Quando faço quadrinhos, o desenho é parte da escrita e da sensação da personagem. Quero passar alguma emoção, mas não fazer aquilo bonito. É uma coisa muito diferente da pintura. Não vem do mesmo lugar, com certeza. As histórias em quadrinhos são mais emocionais, é algo muito diferente. Pintar é mais meditativo e prazeroso. Fazer quadrinhos é mais como uma tortura. Não me relaxa, me deixa tensa. Não posso colocar mais em palavras do que isso.
Está muito bem colocado, consigo entender. E, enfim, o que está achando de Paraty?
Aline: É linda e tropical, adoro tropical. O clima e água… É muito barulhenta. Acordei com pessoas martelando… As pessoas são muito vívidas e gosto disso. E estou surpresa como tudo é muito antigo e bem cuidado. Adoro vegatação tropical e calor. Gosto muito de viajar. Fui para a Índia faz pouco tempo…
E deixou Crumb sozinho? Ele consegue viver sem você?
Aline: Sim, consegue. Há os mercados e os restaurantes e cafés. Ele pode sobreviver sem mim.
Ele diz que não fala francês.
Aline: O suficiente para conseguir comida e sobreviver. E todo mundo na cidade o conhece. E o protege. Agora ele está com essa secretária, uma amiga minha. Ela cuida dele. Eu já gosto mais de viajar, de viver aventuras, não me assusto mesmo. Fui para a Índia faz algum tempo. Ele teria odiado, morrido. Mas eu vou aonde puder, provo o que me derem para provar.
Você comeu moqueca aqui no Brasil?
Aline: O que é isso?
É uma espécie de peixe ensopado.
Aline: Com banana?
Lora: Comi ontem.
Aline: Eu comi lulas.
Lora: Robert não gosta dessas coisas exóticas.
Aline: Ele gosta de peixe, mas não de frutos do mar.
E ele não está se escondendo, como você diz…
Aline: Não, não está. A viagem de São Paulo até aqui foi interessante, mas quero conhecer lugares mais comuns, sabe? Queria conhecer essa parte nova de Paraty que não é tão bonita, com suas lojas normais, mercados normais… Coisas ordinárias são tão mais legais. Este lugar parece uma pequena joia do país, mas quero conhecer os lugares mais comuns.
E vocês já pensaram se Paraty rende alguma daquelas suas histórias em conjunto?
Aline: Olha, vou te mostrar. Olha todas as minhas canetas, de todas as cores (abre uma bolsinha para mostrar as canetas que trouxe). Se tiver tempo, vou fazer algo depois. Primeiro tiro fotos e depois faço. Mas não acho que vá desenhar algo sobre Paraty a não ser que aconteça algo realmente horrível. Se eu for sequestrada ou algo do tipo. Por enquanto, está tudo tão tranquilo. Sobre o que escreveríamos, sobre o quanto está sendo tranquilo e bacana aqui? Seria tão entediante!
Bem, se te consola, acho que esse encontro que Crumb e Shelton têm em São Paulo será caótico.
Aline: Bem, se formos torturados por lá, acho que teremos uma história.
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