Estava na praia ontem, de folga, quando recebi a notícia da morte do Moacyr Scliar. Havia já sete dias que o filho dele, Roberto, não atualizava o Twitter com notícias do pai, uma saga de melhoras e pioras que a gente acompanhava com aflição. Parei para ajudar na cobertura, já que o Bira estava em Los Angeles e não poderia dar conta disso também. Enquanto recebia depoimentos de escritores, me impressionou a coincidência: “generoso” foi palavra quase unânime para defini-lo, por autores de diferentes gerações.
Agora, parando para escrever aqui no blog, me dei conta de que nunca o encontrei pessoalmente. Nós nos falamos tantas vezes por telefone quando eu cuidava das páginas de livros da Ilustrada (além de colunista da Folha, ele era colaborador frequente na seção de resenhas) e a figura dele era tão presente em eventos e programas literários que eu tinha a certeza de já tê-lo visto frente a frente.
E então me lembrei de algo curioso. Sempre fui uma fechadora meio cheia de cuidados (chata, diriam alguns). Na Folha, onde acumulava as funções de repórter e redatora, vivia conversando com os críticos para perguntar se podia mudar um ou outro detalhe, errinhos que tivessem passado no envio das resenhas, coisas pequenas que pudessem ser melhoradas na edição. Certa vez, falei para minha então editora que esperava resposta dele sobre alterações que tinha sugerido, e ela respondeu que era impensável mexer no texto de um colunista da casa. Achei melhor nem comentar que, em inúmeras outras ocasiões, mudanças foram feitas aqui e ali, sempre com o consentimento e até boas sugestões dele.
Parando para pensar, agora, não há como não reconhecer a enorme generosidade intelectual que representava ele aceitar sugestões de alguém com menos tempo de vida do que ele tinha de carreira. Nem todo mundo leva isso na boa.
Segue meu texto sobre ele, capa do Caderno 2 de hoje. É só um apanhado da trajetória, mas achei que não podia passar em branco aqui no blog.
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Todos os caminhos da ficção
“Não preciso de silêncio, não preciso de solidão, não preciso de condições especiais. Preciso só de um teclado.” Em meio a dezenas de depoimentos de autores sobre as mais diferentes manias no momento de escrever, publicados desde o início do ano passado no blog do escritor Michel Laub, o de Scliar se destacou pelo pragmatismo: para o criador prolífico e naturalmente inspirado, o único impedimento para a escrita seria a falta da ferramenta com a qual levá-la a cabo.
Tanto era assim que, em quase 50 anos de carreira literária, o porto-alegrense publicou mais de 80 livros – o primeiro, Histórias de um Médico em Formação, em 1962, mesmo ano em que concluiu a faculdade de medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e o mais recente, o romance Eu Vos Abraço, Milhões, em setembro do ano passado. Entre um e outro, publicou romances e livros de crônicas, contos, literatura infantil e ensaios, numa média de mais de um livro por ano, com destaque para O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes, O Exército de um Homem Só e O Centauro no Jardim.
Tudo isso mantendo os critérios que o tornaram um dos mais reconhecidos autores brasileiros contemporâneos em solo nacional, com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desde 2003 e três Jabutis (1988, 1993 e 2009); no exterior, teve obras publicadas em 20 países e recebeu honrarias como o Prêmio Casa de Las Americas, em 1989.
E também sem deixar de lado a carreira na medicina. Na área, destacou-se desde 1969 em cargos como chefe da equipe de Educação em Saúde da Secretaria da Saúde do RS e diretor do Departamento de Saúde Pública. Entre o lançamento do livro de contos que Scliar preferia considerar como sua primeira obra profissional, O Carnaval dos Animais, em 1969, e o primeiro romance, A Guerra no Bonfim, em 1971, encontrou tempo ainda para cursar pós-graduação em medicina comunitária em Israel. Ainda no início da década passada, em 2002, concluiu doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, com a tese Da Bíblia à Psicanálise: Saúde, Doença e Medicina na Cultura Judaica.
A tradição judaica o acompanhou em toda a carreira literária, assim como o imaginário fantástico – nascido em 23 de março de 1937 no bairro do Bom Fim, que até hoje reúne a comunidade judaica de Porto Alegre, e alfabetizado pela mãe, Sara, que era professora primária, Scliar chegou a ter o romance O Centauro no Jardim incluído numa lista com os cem melhores livros relacionados à história dos judeus dos últimos dois séculos, elaborada pelo National Yiddish Book Center. Também se tornou um grande porta-voz do País sobre temas relativos ao judaísmo, mantendo laços de amizade com alguns dos maiores autores israelenses no mundo contemporâneo, como David Grossman, A.B. Yehoshua e Amos Oz.
A especialização em saúde pública, por sua vez, deu a Scliar a oportunidade de vivenciar temas como a doença, o sofrimento e a morte – características que podem ser percebidas tanto em sua ficção, em obras como A Majestade do Xingu, quanto na não ficção, caso de que A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura é um dos exemplos mais claros.
Casado desde 1965 com Judith Vivien Oliven e pai de Roberto, nascido em 1979, Scliar também dedicou atenção especial às obras infanto-juvenis. Costumava dizer que, escrevendo para os jovens, reencontrava o jovem leitor que havia sido. Boa parte de sua produção nessa área foi considerada “altamente recomendável” pela Fundação Biblioteca Nacional.
Além de produzir textos para vários jornais e revistas, o autor também teve trabalhos adaptados para o cinema, caso do romance Um Sonho no Caroço do Abacate, adaptado em 1998 por Luca Amberg sob o título Caminho dos Sonhos, em cujo elenco apareceram atores como Taís Araújo, Caio Blat e Mariana Ximenes. Em 2002, o romance Sonhos Tropicais também virou filme, sob direção de André Sturm, com Carolina Kasting, Ingra Liberato e Cecil Thiré no elenco.
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