Quando meu editor pediu um texto sobre Clarice Lispector para a edição de hoje do Sabático, por conta da efeméride de 90 anos de nascimento dela (completados ontem), fiquei meio preocupada. Porque, Deus do céu, o que se pode dizer sobre Clarice que ainda não tenha sido dito? Daí que pensamos em falar desse legado investigando justamente o que tanto se escreve sobre a autora, ou melhor, o que se estuda sobre ela nos mestrados e doutorados da vida.
Lembrei que, nos períodos em que fiz disciplinas do mestrado da USP como aluna especial e especialização na PUC, vasculhei um monte os sites das universidades para chegar a alguma conclusão sobre dissertação (ainda não cheguei a nenhuma, taí um plano que ficou para o futuro). Nunca tive interesse em pesquisar Clarice, mas, na época, me impressionou o número de trabalhos que encontrei sobre ela.
Então nesta semana voltei no site da USP e contei as teses e dissertações sobre Clarice e outros autores nacionais (o site disponibiliza as desenvolvidas desde 1980). Mário de Andrade fica em primeiríssimo lugar, seguido de Clarice, Machado e Guimarães Rosa, mais ou menos empatados. E então fui ver com professores que já escreveram sobre a autora o que há de tão estudável assim no trabalho dela.
O resultado, aí embaixo, foi publicado no Sabático de hoje.
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Visões originais de Clarice Lispector
Variedade de olhares sobre a autora de Laços de Família e A Paixão Segundo G.H. – do filosófico ao psicanalítico, do feminista ao biográfico – a coloca entre os ficcionistas mais estudados do País
Raquel Cozer – O Estado de S. Paulo
Clarice Lispector estava internada no antigo Hospital do INPS da Lagoa, no Rio, quando a estudiosa de literatura Vilma Arêas lhe disse que achava o então recém-publicado A Hora da Estrela uma obra-prima. Clarice apenas resmungou em resposta: “Tanta gente está gostando desse livro que não pode prestar.” Ela morreria, com câncer, dias mais tarde, em 9 de dezembro de 1977, a um dia do seu aniversário de 57 anos. Se estivesse viva, teria completado ontem 90 anos.
Vilma acabou publicando, quase três décadas após aquele último encontro, um importante estudo sobre a produção literária da autora, Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos (Companhia das Letras, 2005), partindo da análise de obras secundárias e rejeitadas pela criadora. Mas , professora da pós-graduação da Unicamp desde 1997, nunca quis orientar dissertação sobre a obra da ficcionista. Chegou inclusive a propor que seu departamento não aceitasse mais projetos relacionados a Clarice. “Hoje muita gente que pretende estudá-la nem a lê de fato, já chega para adorar. Acho esse endeusamento complicado. Ele diminui a obra, por mais paradoxal que isso pareça, porque a partir da adoração essa obra se torna invisível, se transforma numa questão de fé. Deixa de ser lida no sentido de possibilitar conhecimento”, avalia.
A sugestão radical de proibir estudos foi resposta a isso, embora Vilma não ignore a importância da busca por aspectos originais no trabalho de qualquer autor. “É claro que é necessário haver quem se interesse e quem escreva sobre uma obra. Desde que as dificuldades dessa obra não sejam rasuradas, nem os sentidos empobrecidos ou distorcidos.” O fato é que, tão pouco tempo depois de sua morte, Clarice está entre os autores que mais estimulam mestrandos e doutorandos a enfrentarem bancas no País. Uma análise da lista de dissertações e teses no site da USP permite a verificação: mais ou menos da geração de Clarice, o único autor quase tão pesquisado quanto ela é João Guimarães Rosa (1908-1967). Os outros escritores que mais suscitam estudos são Machado de Assis (1839-1908) e Mário de Andrade (1893-1945).
Nádia Gotlib, que está entre os maiores especialistas sobre a autora no Brasil, lembra que, no começo da década de 80, quando começou a dar aula na pós-graduação da USP, Clarice não atraía estudiosos. “A gente estudava muito Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos. Foi ali em meados dos anos 80 que pesquisadores começaram a percebê-la de fato”, diz. Isso apesar de já desde o primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943), a crítica especializada ter “acordado” para o texto dela.
Teorias. Fora da universidade, nas páginas do Suplemento Literário, do Estado, em 1965, foi o filósofo Benedito Nunes quem primeiro criou teoria envolvendo a produção de Clarice, articulando relação com o existencialismo. Esse olhar estimularia uma linha acadêmica forte até hoje, como lembra Jaime Ginzburg. “Outra linha que se consolidou foi de caráter estilístico, analisando a inovação formal, a fragmentação da linguagem, e buscando relações com escritores como James Joyce e Virginia Woolf”, diz o professor da USP, que orientou dissertação sobre Laços de Família (1960), defendida em 2007, e atualmente orienta duas relacionadas à autora. Em seguida, afirma, ganhou força a abordagem psicanalítica, na qual se destaca Yudith Rosenbaum. “Até hoje Clarice é muito lida pelos psicanalistas. Eles ficam extasiados diante da capacidade dela de perceber os mecanismos da ‘alma'”, diz Nádia.
Nos últimos 20 anos, apareceram com ênfase estudos de gênero, que partem do olhar feminino de Clarice; os judaicos, como os desenvolvidos por Berta Waldman (nascida na Ucrânia, a autora naturalizou-se brasileira depois que sua família, sofrendo com a perseguição aos judeus, emigrou para o País); e os biográficos, nos quais se destacam Nádia Gotlib e, fora do Brasil, o norte-americano Benjamin Moser, que em 2009 atraiu a atenção de países de todo o mundo para a autora com a publicação de Clarice, (Cosac Naify).
O professor da UFRJ João Camillo Penna vê essa variedade de linhas como o maior diferencial entre as teses e dissertações sobre a escritora e as elaboradas a respeito de Machado, Rosa ou Graciliano. “A importância das obras deles faz com que sejam inesgotáveis e sempre apresentem algum aspecto a ser explorado. Mas é interessante se perguntar sobre a diferença entre os estudos sobre eles e Clarice. Em que a série de abordagens relacionadas a ela se diferenciam dos grandes autores da literatura brasileira? Clarice é diferente porque nela a questão propriamente literária vem para segundo plano. Ela manifesta em sua obra uma consistente recusa do literário. O que é, sem dúvida, um artifício, uma maneira própria de fazer literatura. Isso repercute na fortuna crítica dela: os leitores procuram nela algo que se passa na literatura, mas não fica na literatura.
Empatia. Jaime Ginzburg define esse “algo” como empatia. “Os textos dela despertam um interesse afetivo que tem a ver com o alimento de certas demandas de individualidades. As verbalizações de Clarice sobre fobia, por exemplo, causam reconhecimento no leitor.” De certa maneira, é essa empatia que explica a adoração criticada por Vilma Arêas e que, como Ginzburg admite, leva muitos candidatos a mestrandos e doutorandos a apenas repisarem ideias em suas propostas. “Há pessoas que apresentam ideias que não são academicamente originais por não estudar pesquisas anteriores. Querem, por empatia, dizer coisas que já foram ditas”, afirma.
Mas Ginzburg é o primeiro a rejeitar a ideia de que exista um excesso de estudos sobre a autora em detrimento de outros nomes – se houver um doutor sobre Clarice em cada universidade pública, avalia, isso será positivo. Envolvido com pesquisa sobre a relação de Clarice com a ditadura, ele chegou a publicar numa revista da USP texto sobre uma carta dela ao ministro da Educação, em 1968, em defesa dos estudantes (sobre a relação de Clarice com a ditadura, Vilma lembra que o cartunista Henfil chegou a enterrá-la numa de suas tirinhas do Pasquim, algo que fazia com quem considerava reacionário). Ginzburg sugere alternativas ainda pouco abordadas pelos candidatos a estudiosos da autora: Clarice no contexto latino-americano; sua presença para a literatura africana de língua portuguesa; e, acima de tudo, sua herança para autores brasileiros vivos, entre os quais lista Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, João Gilberto Noll e Silviano Santiago.
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