Once upon a time

Quando conversei por telefone com o crítico americano Greil Marcus, autor do Like a Rolling Stones: Bob Dylan na Encruzilhada, quis saber como foi escrever 260 páginas sobre uma música sem conseguir falar com o criador dela. Marcus entrevistou pessoas que participaram do momento e pesquisou tudo sobre o assunto, mas era inevitável que alguma dúvida não tivesse sido esclarecida.

A resposta que ele me deu:

Pedi ao agente dele, com quem havia trabalhado em anos anteriores, para falar com Bob Dylan apenas sobre as circunstâncias da sessão de gravação. Não estava interessado no que a música significava, no que as pessoas pensavam sobre ela, nem no que ele próprio pensava sobre ela. E o agente disse: “Bem, ele de fato não se lembra bem de como foi, então não quer falar sobre isso”. E foi engraçado quando, no mesmo ano, o livro dele [Crônicas – Vol. 1] saiu, e, é claro, ele parecia se lembrar de tudo, com todos os detalhes, uma enorme memória para rostos, nomes, a maneira como as pessoas falavam… Ele se lembrava de tudo, mas guardava as memórias só para ele.

Tempos depois, eu estava sentado com esse agente e ele tinha um original do Crônicas sobre a mesa. Entrei em pânico e pedi para olhar. Pensei: “Bob vai falar de ‘Like a Rolling Stone’, e qualquer coisa que ele fale eu tenho de levar em conta”. Meu livro estava finalizado, mas ainda não publicado. Eu podia mudar e adicionar material, mas NÃO QUERIA ter de fazer isso, não queria voltar e repensar o que já tinha feito. Mas pensei: “Se ele diz que essa música foi dada a ele por um marciano, ou encontrada em uma mina de ouro, o que quer que ele diga eu tenho de confrontar”. Então folheei o livro, pulando páginas, e logo me dei conta de que a música nunca é mencionada ali. Porque é só sobre a época em que ele era desconhecido. Foi um alívio enorme.

Enquanto ainda não existe um Crônicas – Volume 2 para sabermos a versão de Bob Dylan sobre a música, vale ler o livro do Greil Marcus. Escrevi sobre ele ontem no Caderno 2 + Música. Segue o texto abaixo, também. A foto linda que acompanha foi um achado do Júlio Maria, ex-editor de Variedades do JT e que agora está mandando bem na edição do C2 + Música.

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O caminho de Like a Rolling Stone no pop

Livro em que o crítico norte-americano Greil Marcus disseca a música mais famosa de Bob Dylan sai no País

Raquel Cozer

Pela sexta vez naquela tarde, os músicos liderados por Bob Dylan tentaram levar Like a Rolling Stone a cabo. Tirando o cantor, ninguém fazia ideia do que viria a seguir; ele mesmo tinha lá suas dúvidas. Em 16 de junho de 1965, segundo dia de gravações no estúdio da Columbia, em Nova York, conseguiram enfim passar da segunda estrofe. Seis minutos e seis segundos depois, estava concluída a faixa que viria a abrir Highway 61 Revisited.

Quando, passadas quatro décadas, o americano Greil Marcus ouviu na íntegra as fitas daquelas duas sessões, encontrou a resposta para a dúvida que o havia levado a escrever Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada: por que a música que rompeu as convenções artísticas da época ainda soa como nova. “É como um filme de suspense, como se você nunca tivesse visto antes”, avalia o autor, crítico de rock desde 1969 e o primeiro editor de resenhas da Rolling Stone, falando por telefone ao Estado. “Há essa incerteza, essa energia confusa. Ao ouvir aquilo, entendi. Os músicos não sabiam nem quantas estrofes ela tinha.”

A transcrição das sessões aparece ao fim do volume, que chega nos próximos dias às livrarias do País. As fitas foram um prêmio (e tanto) de consolação do agente de Dylan para Marcus, que tentava tirar do cantor algo sobre as circunstâncias da gravação. Tinha prometido não fazer nenhuma daquelas odiáveis perguntas, não questionaria o que a música significava nem o que Dylan pensava dela, mas não adiantara.

Mais que a biografia da canção, Marcus assina uma longa obra crítica. Há digressões sobre a sequência de acordes, o teor da letra, a originalidade da abertura. Leitores menos afeitos a detalhes técnicos verão curiosidades em especial a partir da segunda parte do livro, que detalha o momento da criação e o impacto dos primeiros resultados inclusive sobre Dylan. Há, por exemplo, o testemunho de um fã que o viu saindo do Manchester Free Trade Hall, em Londres, após o histórico show em que um grito de “Judas!” ecoou no público antes do início de Like a Rolling Stone – ao subir ao palco com banda e guitarra elétrica, Dylan “traía” o conceito de folk. “Ele parecia alguém que fora atropelado por um carro. Alguém absolutamente em choque”, diz o fã.

Marcus ainda consegue arrancar de Bob Johnston, o produtor que substituiu Tom Winston nas gravações para o Highway 61 Revisited após as sessões de Like a Rolling Stone, uma confissão de que houve a mão dele na versão final da faixa. Embora Johnston tenha exigido o nome de Winston nos créditos, ele admite ao crítico que pode ter “mixado a coisa”. A relutância em falar faz sentido – morto, Winston não tem como dar sua versão.

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De brinde, um dos momentos mais power de Like a Rolling Stone, 33 anos depois, naquela que – até onde sei – foi a única vez em que Dylan e Stones interpretaram a música juntos (corrijam-me se estiver errada), aqui mesmo em Terras Brasilis.

O caso Annabella Serdovvi

A volta do caso Isabella Nardoni ao noticiário me fez lembrar de um conto lindo da Beatriz Bracher, Cloc, Clac. Ele faz parte da coletânea Meu Amor (2009), sobre a qual escrevi quando ainda estava na Folha, e foi a forma que a autora encontrou para transportar para o papel todo o mal-estar que a história lhe causava.

Resolvi pedir na Editora 34 autorização para publicar um trecho aqui n’A Biblioteca de Raquel, e a Bracher, num belo exemplo de como escritores podem se aproximar de leitores via internet (só para voltar ao assunto do último post), liberou esse trecho enorme – o conto é ainda maior do que isso.

Sim, ler também causa certo mal-estar, com todas essas letras e situações que se repetem o tempo todo. Mas a sensação que passa é algo que o professor de literatura Alcir Pécora, da Unicamp, consegue explicar muito melhor do que eu poderia neste texto (só para assinantes da Folha).

As “regras” da internet diriam que é um texto longo demais para qualquer pessoa que não tenha nascido com um mouse na mão enfrentar na tela de um computador. Então, se a tela incomoda, imprima, mas dê um jeito de ler, porque vale a pena.

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Cloc, Clac

Beatriz Bracher

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A aglommeração cresce em frente à delegaacia. O crimme aconteceu há duas semanas, a pequena Annabella, 6 anos, foi jogada do 6º andar do edifício Villa Londdon, na Vila Mazzei, Zona Norte da cidade de São Paulo. Atrás da repórter poppulares aglomeram-se olhando para a câmera.
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Janaína Silva, dona de casa, casada, 27 anos, mãe de 4 filhos, fala no microfone, desespera-se sobre o microfone: eu queria pegar elle, jogar elee no chão, jogar elle e cuspir na cara ddele, pisar no pescoço delle e quebrar, pisar e quebrar o pescoço deele, do Niccolau Serdovvi. 9, 7, 5 e 4 são as idades dos filhos de Janaína Silva, ela deixou os 4 filhos com a sogra, porque ela não conseguia ficar em casa com aquillo tuddo acontecendo, tinha que ver de perto a cara dos assassinnos. Em frente à deleggacia o que há para ser visto são fios, microfones, helicópteros, Janaína Silva, popullares e jornnalistas que lá estão para cobrir a chegada e a saída do casall suspeito e a aglommeração que elles reproduzem. O barulho de helicópteros das redes de tellevisão atrapalha a audição das entrevistas, o som das frases se perde, ainda assim todos entendem o que não ouvem, palavras diferentes para o mesmo sentimento de ira e pasmo, ira e pasmo, e pasmo, pasmo que perdura dias e semanas. Agora o barulho dos hellicópteros e das sirennes dos carros de pollícia fica sozinho no ar.
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De volta ao estúdio, o apresenttador Vicente Vantoni, 42, casado, 4 filhos, olha grave para a câmera, foi o som da meninna caindo no chão ainda viva, disse o zellador, o senhor Nesttor Carneiro, 60 anos, casado, 4 filhos e 5 netos. Elle ouviu um barulho alto e seco, anotou no livroo de regisstros do edifício Vvila London. Após a palavra seco, o Nesstor anotou: a meninna estava viva. A frase, a menina estava viva, é iluminada no primeiro plano da tela da tellevisão, destacando-se do restante do texto do livvro de reegistro do Viila London. Era meia-noite, diz o apresentaddor Vicente Vantoni sobre a imagem da folha de papel com a letra ruim do zellador do Villa London, os algarismos que indicam o horário aparecem ilegíveis.
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O noticiáriio segue com outros assuntos. Depois volta para a frente da dellegacia, o casall Serddovi aparece em meio à agllomeração. A madrastta, Ana Bette Mennezes de Carvalho, 24, 2 filhos pequenos, 1 ainda bebê, e a enteada que morreu há poucos dias, e o ppai da meninna morta, Nicollau Serddovi, 27, 2 filhos do ssegundo-casamento e a mmenina de 6, do primmeiro casamento, agora morta, e o jovem advvogado caminham para o carro ladeados por polliciais. Elees são comprimidos pelos popullares. O casall quase some no meio dos popullares. Elle e eela, o paai e a maddrasta da meninna jogada do 6º andar, 6 anos, o aniversário seria em poucos dias, os ddois saem da dellegacia e andam um pouco abaixados, no meio dos poppulares, em direção à porta do carro já aberta, prontos para mergulharem nos assentos do carro. A reppórter Maria Mara de Moraes, 25 anos, solteira, sem-filhos, narra o que se vê na tela da televisão, neste momento o casall sai da delegacia, o Nicollau ddelegacia onde prestaram deppoimentos por mais de 5 horas, eless caminham direto para o carro. Os polliciais fazem um cordão de isolamento para conter os poppulares. O casall Serdoovi e o jovem advvogado entram no carro. O carro do casall parte com os 3 dentro, a Ana Bette Mennezes de Carvalho, o Nnicolau Seerdovi e o jovem advoggado, Marcello Jordano, 26, casado, 1 filha de 6 anos de uma relação-anterior e a esposa-atual grávida de 10 semanas. Um tijolo é lançado em direção ao carro, o som dos popullares ocupa o espaço da vozz da Maria Mara. Ella retorna: um tijollo quase atingiu o carro dos Serdovvi. O carro do casaal Serddovi afasta-se, a imagem balança, a câmera gira e para em um pollicial prendendo um dos poppulares. O policiaal segura as mãos do ppopular atrás do corpo delle e abre caminho em meio à aglommeração, que olha curiosa. O popullar seguro pelo poolicial mantém a expressão indignada, diz a Maria Mara de Moraes.
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A pollícia afirma que o sanngue no banco traseiro do ccarro do Nicollau Serdoovi, o ppai da Anabella, 6 anos, assassinada na noite do dia 6, um Ford Kaa cinza-prata, analisado com equipammentos especiaiss, é da Anabella Sserdovi, 6. O sanggue no chão da garagemm, dentro do carroo, no aparttamento e na frallda, a fraldda que elles usaram para limpar o rosto da Annabella, de modo a mascarar o crimme, o ssangue é da meninna de 6 anos jogada pela janella do 6º andar do Viila London, a Anabelaa Serddovi, filha do primmeiro-casamento do Nicolaau Serdovii com a Anna Beth Parentte.
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A cena sai do estúdio e vai para o edifício Vilaa London, que aparece ao fundo do reppórter Paulo Perneira Pontigo, 29, solteiro, 1 filho de 12 anos de uma relação-da-juventude. No domingo haverá a reconstituiição do crimme. O Nicollau e a Anna Beti não são obrigados a participar, o paii e a maddrasta da Anabbela, morta no último dia 6, não deverão participar, segundo informou o addvogado do pai da Anabella, que caiu do 6º andar do Villa London, o senhor Marcello Jordano, 26, isso porque, segundo a legisslação brasileira, ninguém pode ser obrigado a produzir provvas contra si mesmo. Amanhã, quinta-feira, serão colhidos depoimmentos do paii e da irmmã do Niicolau Serdovvi: o Mennelau Serdovvi, 60, viúvo, pai de 1 rapaz e de 1 moça e avô de 2 crianças vivas e de 1 morta, e a Anna Bolena Serddovi, 37, divorciada, sem-filhos. Apenas após o depoimennto dos parenttes do ppai da mennina Annabella, 6, morta asfixiada, no caarro, na garaagem, no apartaamento, sobre a caama e após a queda do 6º andar, e da reconsttituição do crimme é que a pollícia revelará os lauddos dos últimos exammes realizados. Especiallistas afirmaram que o adiamento na divulgação dos lauudos é uma estratégia adotada pela políícia para que os depoimmentos não sejam influenciados pelo resultaddo dos examess realizados pelos perittos da Políciaa Civil de São Paulo.
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De volta à frente da dellegacia, não dá para ouvir o início da fala da Maria Mara de Moraes, os popullares começam a dispersar-se, a reppórter do ttelejornal finaliza sua participação: a Anna Bety e o Niicolau Seerdovi não deram quaisquer declaraçções à imprenssa.
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Em outro lugar da cidade, um homem diz a outro homem: ainda não faz nem um mês, e a mãee da Annabela, morta barbaramente aos 6 anos de idade, a Anna Beth, não a madrastta, que é Carvalho, mas a mããe, Parentte, nem um mês, e a Anna Bett Parennte já desistiu do ccaso, abandonou a fillha, não dá mais entrevistas, deixou ao destino a resolução do casoo. E o paai, o Niccolau Serddovi, era um mau ppai. Preste atenção, elle não correu desesperado para abraçar a fillha após a queda deela, da Anabella. Pense, diz um homem a outro dentro de um táxi, em uma sala de espera ou no balcão de uma padaria. O homem, provavelmente 50 anos, separado e pai de 3 jovens, o homem com algumas gotículas de suor no buço diz: veja, um pai quando se dá conta de que a filha caiu da janela do seu apartamento no 6º andar corre desesperado para abraçar a filha. E o Niicolau Serdovvi não correu desesperado para abraçar a fillha. Elle primeiro ligou para o ppai, o Menellau, ligou para o paai que é advoggado criminalista. Entende? Elle sabia que a filhha tinha caído do 6º andar, isso elee não nega, afirma que entrou no apartammento, com os dois filhos do segundo casamentoo, viu a redde de protteção da jannela rasgada e entendeu que a fillha havia sido jogada pela janella de seu apartamentto, não é uma hipótese da invvestigação. Elle disse que viu a rrede de proteçção da janela rasgada, aproximou-se e viu a fiilha caída no gramado 6 andares abaixo. E o que elle fez? Correu? Chorou? Não, eele ligou para o ppai, um advogaado criminalista. Ella não era amada, podemos dizer que a Anabella era uma menina rejeitada. Veja, na Inglaterra os cientistas fizeram uma pesquisa para descobrir qual a maior dor que um ser humano pode suportar, de todas as dores, os cientistas britânicos constataram que a maior dor que um ser humano é capaz de suportar é a perda de um filho de menos de dezesseis anos, principalmente para as mulheres. E a mmãe da Anabella já abandonou o casoo, não fala mais com a imprenssa, não presta contas, não aparece, abandonou a ffilha. E se nos lembrarmos que logo após a morte da ffilha de 6 anos, no enterro, na missa de sétimo dia, no dia que seria o do aniversário da Anabella, mesmo nesses momentos a Ana Bbeth apareceu calma, fria, sem nenhum traço de dilaceramento, sequer de dor em sua face, podemos então concluir que ella não amava a Anaabela. O ppai não desceu desesperado para abraçar a fillha e chorar. E por quê? Porque elee não ficou desesperado. A verdade é que elle sempre amou mais os filhos do seggundo-casamento. A Anna Bet teve a Anabella muito jovem, não estava preparada, não foi capaz de amar a ffilha. A verdade é que eela deixa muito a desejar, deixa a desejar como mãe, amor materno. A Anabbela foi uma criança rejeitada, agora elaa só tem a nós para defendê-la, por isso não podemos abandoná-la.
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A cidade arde, um rastilho espalhou-se e não cessa de queimar exalando um cheiro adocicado no ar inspirado e expirado pelos pulmões e chiando nos ouvidos dos que se interessam e dos que não se interessam pelo assassinato de Anabella, comentam eles, na sala. O artigo definido é utilizado na televisão, ruas e padarias, em vez de “Anabella faria aniversário em poucos dias”, falam “a Anabella faria aniversário etc.”, ou “apartamento do Nicollau”, no lugar de “apartamento de Nicollau”, o que transforma a família Serdovvi em velhos conhecidos. Na sala eles analisam essa proximidade forjada que aumenta a dramaticidade do caso, transforma a tragédia real em farsa. Não se ouve a palavra “defenestrar”, que significa exatamente “jogar pela janela”. Talvez porque seja uma palavra fora do cotidiano daqueles que acompanham o caso. Jogada ou lançada pela janela, sim, são verbos que fazem parte da vida da cidade e, portanto, comportam a violência do destino da menina.
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As pessoas na sala sabem que não adianta dizer: “eu não me interesso por esse assunto”, pois todos são convocados a participar da investigação, é necessário comentar e concluir a respeito dos testes, dos depoimentos, das análises dos especialistas. Sendo o assunto inevitável, os que participam apenas por educação e dizem: “quem sabe não foram eles, é preciso esperar, a prisão é somente para quem  foi pego em flagrante ou que possa atrapalhar o andamento da investigação, a polícia chegar a uma conclusão e oferecer a denúncia não significa que eles já foram julgados culpados”, os que dizem isso são obrigados a ouvir ainda mais sobre o assunto, e não podem apenas ouvir, precisam recuar, afirmar, nada de talvez, quem sabe, é um lado ou outro.
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Na sala eles ponderam sobre a histeria que tomou conta da cidade, a necessidade de as pessoas saírem de casa e irem até a delegacia, até a frente do edifício onde o crime ocorreu, parece que apenas assim elas se sentem  fazendo parte de uma história real, que existe porque sai na televisão, como se a vida apenas se formasse em história quando televisionada e escrita.
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Uma pessoa comenta a coincidência de vários nomes deste caso terem letras dobradas, como Anabella, Nicollau, Villa London, não que isso signifique qualquer coisa ou possa ajudar a desvendar o crime, ela acrescenta. Outro lembrase que significa a origem social das pessoas envolvidas. Além das letras, ele continua, são repetidas na televisão e nas conversas informações como: “o sangue no carro é da Anabella”, ou “as marcas no colchão são da sandália do pai que apoiou o pés para subir e jogar a filha pela janela”, e dessa maneira transformam suposições em fatos incontestáveis.
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A interpretação do homem com gotículas no buço, “a mãe deixa muito a desejar”, chega a ser cômica. Sua frase, “ele não desceu desesperado para abraçar a filha”, é repetida diversas vezes, na sala, com sotaque e ritmo que  reforçam o pedantismo do homem. A repetição da frase e o tom farsesco a esvaziam definitivamente de qualquer verdade, não do seu conteúdo, pois que esse não é o foco da conversa, mas sentimento de autoridade das pessoas mais simples e de pessoas pacíficas que tornam-se sanguíneas na tragédia alheia. É repetida também a frase “pegar ele, jogar ele no chão, jogar ele e cuspir na cara dele, pisar no pescoço dele”, que é analisada em seu teor de insanidade. Não se comenta a ausência do pronome oblíquo, embora a sintaxe das orações machuque os ouvidos dos que conversam. E as expressões “pegar ele” e “jogar ele” são repetidas outras vezes. A cidade torna-se vampiresca, compulsiva.
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A análise da repercussão do caso chega até a sobremesa, quando alguém, 72, casada, 4 filhos, 8 netos, fala, a verdade é que elee estava usando uma dessas sanddálias tippo ridder e a marca no lençol era delle mesmo. E isso delle não ter descido logo é muito forte. E outro, 17, solteiro, pergunta, mas issoo já ficou comprovado? Sim, elees têm como rastrear e saber o horário do tellefonema, o horário em que o caarro delle entrou na garaagem, em que elle desceu no ellevador após a fillha ter caído, o número de telefone para o qual eele ligou, de fato elle telefonou para o paai antes de descer. A hipóttese mais plausível, até agora, é que quem sufocou foi a madrastta, e o ppai, achando que a filhaa já estava morta, jogou-aa pela janela.
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E um terceiro, pai de dois filhos pequenos, conclui: um surto, um momento de insanidade. Qualquer um poderia. Um pai. Qualquer um. É apavorante.
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A morte recente iça do lago escuro de nossa memória outra criança morta, que emerge na forma do rosto de um menino de quatro anos sorrindo na fotografia de seu aniversário. A lembrança do assassinato do menino Victor Hugo, em Cascadura, no Rio de Janeiro, caminha dentro de cada um, e em poucos dias a cidade lembra-se e comenta em voz baixa a morte ocorrida meses atrás.
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O mercado na rede

Saiu hoje um texto meu no Caderno 2 Domingo sobre como as editoras têm usado mídias sociais para se aproximar dos leitores, aqui. Ou, é claro, aqui, abaixo.

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O encontro dos livros com a web

Blogs e redes sociais fazem editoras acabarem com o mito de que a internet rouba o público que consome literatura

Raquel Cozer

A mais recente reformulação do site da gigante editorial Simon & Schuster, no mês passado, abriu espaço para um guia de bons modos on-line para escritores. As regras? Abra um blog. Entre no Facebook. Crie conteúdo para redes sociais literárias. Interaja.

Nada complexo para qualquer pessoa que tenha atravessado a última década na civilização, mas, vindo de uma das mais tradicionais editoras norte-americanas, o recado foi claro: estão por fora os alarmistas que veem a internet como um bicho-papão capaz de afastar da literatura quem tem disposição para ler.

O crescimento das redes sociais literárias no País no último ano ajuda a entender como o mundo digital e o editorial podem se complementar. A maior delas, o Skoob (www.skoob.com.br), foi criada por um grupo de amigos em dezembro de 2008 e já tem 150 mil cadastrados – há coisa de seis meses, mal passava dos 30 mil. São números consideráveis para uma rede que se descreve apenas como “um local onde você diz o que está lendo, o que já leu e o que ainda vai ler”. Mas o fato é que esse tipo de mídia tem um papel bem maior que o de “dizer o que se lê” – e isso é algo que as editoras nacionais apenas começaram a perceber.

Os primeiros milhares de usuários de redes como o Skoob e o Livreiro (www.olivreiro.com.br) chegaram pelo boca a boca virtual, em especial via Twitter. Mas o boom aconteceu depois que editoras como a Record e a Planeta identificaram o potencial desses sites e se ofereceram para participar. Viram ali um filão barato e eficaz para divulgar seus títulos: enviam uns poucos exemplares, e os sites de relacionamento os usam como prêmios em promoções. “É mais fácil divulgar um livro na internet que em qualquer outra mídia. Falando por uma rede, um blog, chegamos ao perfil exato do leitor que buscamos”, diz Debora Juneck, gerente de marketing da Planeta. O custo é quase zero, já que, como num viral, os internautas fazem a divulgação.

O negócio também é vantajoso para os criadores das redes. O analista de sistemas Lindenberg Moreira, 33, “pai” do Skoob, começou a ganhar dinheiro logo nos primeiros meses, quando o Submarino ofereceu uma parceria pela qual o site levaria uma porcentagem sobre os livros vendidos. “É exponencial. Da última vez que vi, estávamos vendendo uma média de 3 mil, 4 mil livros por mês.”

Situação parecida viveu em 2008 uma das mais antigas e conhecidas redes sociais para amantes da literatura, a norte-americana Shelfari. Quando chegou ao primeiro milhão de usuários, atraiu a atenção da Amazon, mas o site de compras não quis só parceria – comprou a rede de uma vez. No mesmo ano, a HarperCollins preferiu lançar o seu próprio site de relacionamentos, o Authonomy, definido como uma “meritocracia que visa acabar com a pilha de originais não lidos” sobre a mesa de editores. Nele, o candidato a escritor disponibiliza textos para download, outros usuários leem (de graça), comentam e votam. Ao fim de cada mês, as cinco mais bem colocadas são “avaliadas para publicação”. O blog da rede lista casos bem-sucedidos, mas o fato é que o maior benefício da Authonomy foi aproximar os leitores da editora. Deu tão certo que, há três meses, a HarperCollins lançou uma rede para adolescentes, o Inkpop.

No Brasil, a coisa anda mais devagar. Além de participar de redes sociais literárias, a maior parte das editoras criou perfis no Twitter e no Facebook. Quase nenhuma ainda tem um site que vá além da básica “loja online”, com estantes nas quais figuram os lançamentos.

A mais avançada nesse sentido é a Cosac Naify, que remodelou a página virtual e criou um blog há cinco meses. O segredo, diz o diretor editorial Cassiano Elek Machado, é oferecer material exclusivo. Há pouco, por exemplo, Machado convidou a escritora gaúcha Carol Bensimon, que mora e estuda em Paris, a percorrer a rua Vaneau, descrita pelo espanhol Enrique Vila-Matas no livro Doutor Pasavento, e relatar a experiência no blog. “Não pensamos na página como um espaço de vendas, é um lugar de relacionamento”, diz.

Neste mês, a Cosac comemorou uma efeméride só possível em tempos de 140 caracteres de fama. Completou um ano no Twitter e usou a data para angariar mais seguidores – conseguiu 800 de uma só tacada ao oferecer um exemplar da biografia Clarice para quem passasse adiante uma mensagem da editora.

Livros pelo ladrão

Roubei essa aqui da Daniela Name: “A espanhola Alícia Martín fez uma série de instalações Córdoba que se relacionam com a literatura. ‘Biografias’ forma cascatas de livros que saem de prédios públicos – bibliotecas, universidades, museus – ao encontro de seus leitores.”

A imagem me lembrou o Poeira, recém-lançado romance de Nelson de Oliveira sobre uma realidade distópica na qual as cidades ficam soterradas por livros editados não se sabe onde e jogados de modo clandestino nas bibliotecas.

Um pouco de Babel na Biblioteca de Raquel

Correr atrás de notas exclusivas para coluna é algo que nunca tinha me passado pela cabeça. Ou, ok, até tinha, mas isso é uma longa história… Mas admito que, estresses à parte, tenho achado divertido arrumar coisas para a Babel, a coluna sobre o mercado editorial do Sabático.

Tudo bem que duas semanas foram o suficiente para perceber que as coisas quase nunca saem como o esperado. Meu texto de abertura da coluna deste sábado caiu na última hora – como na semana passada, por sinal. É uma droga quando acontece, mas depois achei que foi até sorte. Juntei uns pontos inesperados e consegui em primeira mão essa história abaixo. Pros fãs de HQs é ótima notícia.

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Leya e Saraiva entram no mercado de graphic novel

Raquel Cozer

O lançamento do selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, há menos de um ano, abriu os olhos de duas outras grandes editoras para a disputa por esse mercado. A Leya acaba de fechar uma parceria com a Barba Negra para lançar ao menos dez títulos em 2010. A princípio, serão três estrangeiros, incluindo a celebrada Stitches, de David Small (que por aqui sairá como Cicatrizes) e sete nacionais – uma delas, uma graphic novel com peças de Plínio Marcos roteirizada por Mário Bortolotto. A editora portuguesa também comprou da americana First Second os direitos de tradução da HQ online Zahra’s Paradise. No ar em oito idiomas, Zahra’s poderá ser lida na rede em português já na semana que vem e sairá em papel em 2011. Já a editora Saraiva tem pelo menos cinco livros em quadrinhos previstos para sair até setembro, como The Beats, por Harvey Peaker, e Terra do Nunca, versão de Brom para a história de Peter Pan.

O quadrinho acima é do Stitches, que sai pela Leya.

Soube que a Leya foi só uma entre várias editoras brasileiras que entraram em contato com o povo da First Second depois do meu texto sobre Zahra’s Paradise no Caderno 2, em fevereiro. Outras consideraram prematuro apostar numa HQ on-line que mal tava começando. Não sei. Acho que, para uma editora sem tradição em quadrinhos (a bem da verdade, ainda sem tradição em nada no Brasil), foi bola dentro arriscar. Vamos ver se assim dá para esquecer o evento Wannabe July.

Bingo!

Essa é para jogar lendo jornais no final de semana. A jornalista Michele Kerns, do Examiner, encontrou uma solução para o leitor se divertir em vez de se irritar com os clichês de resenhas literárias. Ela entrou numa “cruzada freak solitária” (solitária, será?) e criou oito modelos de cartelas de bingo feitas para quem não tolera expressões batidas. No meio de todas elas, há um campo “clichê free”. Basta imprimir, distribuir entre os amigos e ver quem completa a cartela primeiro.

Vale também para quem se irrita com clichês de críticas de cinema ou de música. Eu, no campo do “clichê free”, colocaria a palavra clichê. Nada irrita mais que o argumento de que algo é clichê.

(Hmmm, ok, talvez uma palavra quatro vezes repetida num único parágrafo.)

Atwood sem-vergonha

O Guardian de hoje noticia que a Margaret Atwood, vencedora do Booker Prize, do Príncipe das Astúrias e de quase todos os prêmios relevantes na literatura, aparecerá CANTANDO no filme canadense Score: A Hockey Musical. O longa, com Olivia Newton-John no elenco, conta a história de um adolescente prodígio no hóquei e estreia só em outubro, mas a escritora adiantou algumas fotos da gravação em seu blog, onde também escreveu: “Sim, eu cantei, sem-vergonha…“.

Mas o melhor foi essa pérola que o site do jornal destacou. É a participação dela num programa de humor da TV canadense: “As pessoas me perguntam se eu penso em mim mesma como poeta, em primeiro lugar, e depois como romancista, ou vice-versa. A verdade é que eu de fato penso em mim mesmo como…”

Bem, confira.

Falando corporativês

Era para ter escrito algo aqui muito antes, mas foi uma semana tão curta que não teve jeito. O Sabático chegou ontem, com uma delícia de entrevista do Bira com o Umberto Eco e outras cositas más – incluindo a coluna Babel, de notas do mercado editorial, que ficará sob minha responsabilidade, com ajuda de outros repórteres.

Hoje saiu um texto meu no primeiro C2 Domingo, que – além de ter um conteúdo mais “revistizado”, como eles dizem – dará espaço para a cultura ligada a internet e tecnologia, assuntos que eu já abordava com frequência nos meus tempos de Ilustrada. Revirei o novo portal do Estadão (que, corporativismo à parte, achei muderno) em busca do link para a matéria – sobre quem são e o que pensam os raros usuários de e-readers no Brasil – mas está apenas na versão digital do jornal impresso. Segue abaixo o texto; no jornal, tá aqui, para assinantes.

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Quem usa Kindle, no fim das contas?

Muito mais falado que usado no País, leitor de e-books já se tornou imprescindível para quem o comprou

Raquel Cozer

A sensação de quem lê livros no Kindle em ambientes públicos hoje em dia é mais ou menos como a de um pai ou uma mãe que sai para passear com o bebê.  Todo mundo que esbarra no dono de um e-reader para, faz festa, quer pegar e saber detalhes.

O leitor de títulos eletrônicos foi assunto abordado à exaustão pela imprensa cultural e de tecnologia no ano que passou, mas a verdade é que parcela ínfima da população brasileira chegou sequer a ver um de perto. Tanto é um artefato beirando o exótico que, em geral, a primeira descoberta de quem coloca as mãos num deles é a de que meter o dedo sobre o espaço do texto suja a tela. À primeira vista, ele dá a impressão de ser touchscreen, como o iPhone, mas não é.

Para os detentores de e-readers, porém, esses aparelhos já ocupam um  patamar que os celulares alcançaram por aqui nos anos 90: foi possível viver sem eles por décadas, mas deixar de usá-los agora seria um problemão.  Ao menos é essa a opinião de quem lê neles com frequência.  Em geral, gente que tem interesse bem acima da média nacional pela leitura e que comprou a ferramenta só para uso profissional antes de se render a ela.


Assim como os celulares não aboliram o telefone fixo, o Kindle também não elimina o livro impresso para essa primeira geração de usuários.  Os critérios de compra são diferentes, avalia o escritor e editor Paulo Roberto Pires. Com 1.500 títulos em papel em casa, sendo que na última limpa conseguiu desapegar de 600, carrega o Kindle que usa há nove meses com o que chama de volumes “meio descartáveis”, que ele não pode mais se dar ao luxo de tentar enfiar nas estantes.  Integram essa lista, hoje com 50 títulos, romances policiais, por exemplo.

Por estes, Pires até abre mão da “coreografia do livro” da qual todo leitor compulsivo conhece variações – e que quase sempre inclui a checada básica por cima para ter noção do quanto falta ler.  Os e-readers, que não numeram as páginas, até tentam facilitar a coisa: indicam a porcentagem de texto já superada. “Não é a mesma coisa.  Perde-se a noção de progressão”, avalia.

São os pequenos detalhes que incomodam, na opinião do escritor Sérgio Rodrigues, paladino do Kindle desde que ganhou um da namorada, no fim do ano passado.  Ele defende que a tela lembra tanto a de papel que “o aparelho fica invisível”, mas, como bom representante de uma geração que não nasceu na frente da tela de um computador, ainda encontra dificuldades. “Quando você está na página 80 e quer conferir o nome de um personagem na 20 é um saco.  Tem de voltar uma por uma.” O mecanismo de busca deveria facilitar a tarefa, mas como fazer a busca por um personagem cujo nome não se lembra?

Folhear faz falta, assim como ver a estante cheia.  A editora Mariana Zahar tem quase uma coleção de e-readers – um Sony Reader, um Cooler, um Kindle e um aplicativo de Kindle para iPhone –, mas não raro eles servem de aperitivo para a compra do título impresso.  Já aconteceu algumas vezes, quando começou a ler um livro num e-reader e foi para a praia – onde prefere ler em papel para não estragar o aparelho – ou quando achou o livro tão bom que “precisava ter em casa”.

É curioso que a maior desvantagem do Kindle em relação a plataformas como o Nook (e-reader da Barnes&Noble) e o iPad (dispositivo eletrônico da Apple) seja, na avaliação de Sérgio Rodrigues, sua maior vantagem: o fato de não ter acesso à internet.  Há algumas semanas, o escritor fez uma veemente defesa do Kindle em seu blog, o Todoprosa. “É um aparelho bisonho, quase jurássico, feito exclusivamente para ler”, escreveu. “Se você está lendo um romance, a última coisa que quer é um e-mail bipando.  As distrações on-line ficam de fora, é para ler livros e pronto, não serve para mais nada”, diz.

É possível que em algumas décadas não seja fácil encontrar quem entenda a opinião de que o “livro em papel é um objeto tecnologicamente perfeito”, como diz Paulo Pires.  Mas, por enquanto, difícil é não se identificar com uma charge publicada no último dia 10 no USA Today.  Nela, um homem observa a vitrine de uma livraria, onde lê-se o aviso: “Livros sem baterias”.

Última tecnologia

Bira viu no USA Today e trouxe o recorte.

Thomas Pynchon, the Dude

Só eu não tinha visto o trailer do livro Vício Inerente, narrado pelo Thomas Pynchon, né? Tudo bem, não tenho pudor em ser a última a postar. Ao menos posso usar como desculpa para tocar no assunto a info de que o livro sairá ainda neste semestre pela Companhia das Letras. Mas também tenho considerações a fazer.

Achei curiosa a forma como foi feita a divulgação. A Penguin pôs o vídeo no ar em agosto sem revelar o narrador, e logo correu na rede a versão de que era o escritor – o poder da dúvida como arma de marketing. Confesso que, comparando com a voz dele no episódio dos Simpsons do qual participa, achei bem pouco parecido, tirando uma certa rouquidão lá no fundo.

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Daí, na época, blog Speakeasy, do Wall Street Journal, resolveu tirar a história a limpo e chamou um especialista para comparar as vozes dos dois vídeos e a deste clipe alemão. A conclusão: “É um estilo bem único de entonação, muito pra cima e pra baixo. Ele atinge esses pontos acentuados a cada par de palavras. Com um grau razoável de certeza profissional, acredito que essas vozes são da mesma pessoa”. Só então, “desmascarada”, a editora admitiu que o narrador era o Thomas Pynchon.

Tá certo, se a Penguin disse, está dito. Mas, depois de ouvir várias vezes cada um dos clipes, tendo mais a concordar com quem argumenta que a voz do Doc, no trailer, parece mesmo é com a do Dude..

Do bordel às galerias

Tenho certo receio de romances históricos, mas a vida da chinesa Pan Yuliang, que inspirou A Artista de Xangai, vale o risco, e a estreante Jennifer Cody Epstein fez um bom trabalho com o material que tinha em mãos. De pesquisa, inclusive – a descrição da sociedade chinesa nos primeiros anos do século passado dá a dimensão. O livro merecia uma edição brasileira que não forçasse a barra nas frases da orelha e da contracapa (sério, “escolha dolorosa entre a arte e o amor” é de doer), mas, enfim. Escrevi sobre ele no Caderno 2 de hoje.

A vida da prostituta que virou pintora na China

A Artista de Xangai, romance de estreia da americana Jennifer Cody Epstein, parte da história real de Pan Yuliang (1899-1977)

Raquel Cozer

A trajetória da pintora chinesa Pan Yuliang (1899-1977), do bordel para o qual foi vendida aos 14 anos pelo tio viciado em ópio às galerias em que exibiu telas pós-impressionistas, inspirou um filme (Hua Hun, de 1994, com a atriz Gong Li) e um romance em seu país de origem. Numa sociedade em que as meninas tinham os pés esmigalhados por faixas de pano para que se mantivessem “diminutos como lírios perfeitos” na vida adulta, uma jovem que reproduzia a própria nudez em quadros não poderia passar despercebida.

O mundo ocidental dedicou bem menos atenção a essa história de contornos inusitados, embora tenha sido na França que Yuliang estudou artes plásticas e passou boa parte da vida. Foi por isso que, ao deparar com uma tela da pintora numa exposição de arte moderna chinesa no Museu Guggenheim, em 1998, a então jornalista Jennifer Cody Epstein se deu conta de que tinha ali um enredo melhor que a ficção. Ou bom o suficiente para inspirar uma.

A Artista de Xangai (tradução de Flávia Carneiro Anderson, Record, 452 págs., R$ 57,90), romance de estreia da autora norte-americana, serve-se de fragmentos e lacunas de informações sobre a vida da Yuliang para contar esse passado. Não tem o compromisso de se limitar à realidade, embora inclua uma extensa pesquisa de campo, com a leitura de obras sobre outros artistas chineses daquele período, dois anos de aulas sobre a cultura da China na Universidade de Columbia e uma tentativa – malsucedida – da autora de aprender a pintar. O resultado é uma narrativa que permite imaginar como uma chinesa se sentia, em 1913, por não ter tido “determinação” para continuar quebrando os ossos dos pés após a morte da mãe. E como a adolescente que viveu três anos num prostíbulo lidou com a transição para o mundo artístico sob a reprovação da elite conservadora.

A íntegra do texto tá aqui. Lá em cima, claro, é uma pintura dela.

E, abaixo, Hua Hun, o filme em que Pan Yuliang é interpretada pela Gong Li (de 2046 e Lanternas Vermelhas).

Escrever ou não escrever

Mais cedo vi no Blue Bus um link para o Write or Die, uma espécie de site motivacional terrorista para escritores, e achei que seria interessante escrever um post  no próprio site para experimentá-lo, só para chegar em casa e descobrir que o Prosa & Verso fez isso muito antes. Então testei mesmo apenas digitando “trololololó”, o  assunto do dia, para ver o que acontecia.

A página inicial dá opções do modo de pressão ideal para entregar o texto a tempo. É meio frustrante porque o Choque Elétrico, modo mais recomendado para casos de bloqueio agudo, não pode ser selecionado. Decidi pelo Kamikaze + Evil, que só fazia a tela, a princípio branca, ficar vermelha a cada interrupção, além de apagar trechos. Menos irritante que o modo Gentle, que avisava a cada dez segundos “You stopped writing! Keep writing!”, e que o Normal, que acabou com a brincadeira de vez ao mandar ver num Never Gonna Give You Up assim que parei de digitar.

No fim, não tem truque, é se conformar. Se não dá para escrever um livro numa semana, como o Cony, ao menos conforta saber que autores como Hemingway e Nabokov reescreviam sem cessar até chegar ao que queriam, o que eu definiria como uma espécie de bloqueio criativo com vazão produtiva. E, claro, mil outros escritores que sofrem disso, mas me deu bloqueio de memória para citar algum.

Pior mesmo é ter bloqueio para escrever o forro da gaiola do dia seguinte.

(O escritor em pânico peguei daqui, indicação do Juliano Barreto no Google Reader).