God vs. O Criador

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A gigante Simon & Schuster anunciou hoje à imprensa estrangeira, num release “engraçadinho” (ai), que fechou acordo com Deus para a publicação de um livro “semiautobiográfico”. Disse o editor Jonathan Karp: “Estamos satisfeitos e honrados por adicionar Deus Todo-Poderoso à nossa lista de autores notáveis”.

O material de divulgação conta ainda que David Javerbaum, roteirista do The Daily Show with Jon Stewart, trabalhará no projeto, previsto para sair no final de 2011.

Daí lá no finzinho do texto ficamos sabendo que Deus agora usa no Twitter a conta The Tweet of God. Tipo, para dar um ar “século 21” a sua milenar visão do mundo.

The Tweet of God tem, no momento em que escrevo este post, 83 seguidores, e avisa na bio do Twitter: “Sou o Senhor teu Deus, criador do Twitterverso. Não deverás seguir nenhum deus antes de mim”.

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O que será que O Criador, com seus atuais 572.086 seguidores, teria a dizer ?

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O cartum não tem nada a ver com a história. Peguei daqui.

Entre fatos e invenções

[publicado no Sabático de 27/11]

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Em seu primeiro romance, Marcelo Ferroni parte de diários, relatórios e depoimentos sobre a missão de Che Guevara na Bolívia para, numa proposta de desconstrução literária, arrancá-los do contexto

Raquel Cozer, raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

Estrábico e semianalfabeto, o jovem Benigno, homem de confiança de Che Guevara, deixou longo relato do período em que os guerrilheiros incumbidos de dar início à revolução na Bolívia, em 1966, encaminhavam-se de La Paz para o acampamento na selva. A falta de intimidade com as letras não impediu o uso de descrições elaboradas sobre a paisagem, que teria “paredes cobertas até o alto de espessa floresta, com tremendos contrafortes erguendo-se a pique e com ladeiras de puro granito”.

Quem nos revela esses detalhes é o narrador do recém-publicado Método Prático da Guerrilha, não sem antes esclarecer que os diários de Benigno recendem a plágio e não costumam ser usados por biógrafos como fonte confiável de informação. Acontece que esse narrador, um leitor mais atento poderá perceber, usa de expedientes questionáveis. Por má fé, desatenção ou provocação, incluiu nos relatos de Benigno trechos de anotações feitas por exploradores ingleses no Brasil do século 19.

É nessa descontextualização da história que reside a graça de Método Prático da Guerrilha – na realidade, não uma biografia nem uma reportagem, como possa parecer à primeira vista, mas sim um romance, o primeiro de Marcelo Ferroni, de 36 anos, editor da Alfaguara. Como alertam frases anteriores à epígrafe, o “livro se baseia em diários, relatórios e depoimentos dos que foram à luta armada. Tirá-los do contexto foi trabalho do escritor”. Um trabalho que demandou, aliás, mais tempo e esforço que a pesquisa. Dos sete anos desde a ideia original de escrever sobre Che, apenas um foi dedicado exclusivamente a leituras. Os três anos seguintes se dividiram entre pesquisa e escrita, e os três finais, a reescrever – quatro vezes – o romance do início ao fim.

A gênese da história imaginada por Ferroni está num caso relatado pelo jornalista Elio Gaspari em seu primeiro volume da série sobre o regime militar, A Ditadura Envergonhada (2002). Ali, o paulistano tomou conhecimento de que, durante o período que Che Guevara passou no Congo, em 1965, na tentativa de liderar um movimento de guerrilha, o argentino demonstrava intenso desconhecimento da realidade local. “Ele achava que ia colocar ordem nas tribos com seus guerrilheiros, mas não conhecia nada de geopolítica”, conta Ferroni. Entre os desmandos da empreitada fracassada, Che tentou convencer congoleses a carregarem 40 kg de pedras em mochilas para se acostumarem, ao que eles retrucavam que não eram caminhão.

“Lendo sobre aquele choque entre duas realidades, percebi que precisava escrever sobre o Che, esse herói que virou mito ao morrer jovem defendendo um ideal, um combatente destemido enfrentando uma realidade que não entende bem”, afirma. O que seria a princípio uma biografia romanceada ou um romance histórico acabou virando a desconstrução disso, com o narrador onisciente em terceira pessoa se transformando nesse contador pouco confiável da história. Aqui, a inspiração veio de outro livro, Che Guevara: A Biography, de Daniel James, uma das primeiras biografias do argentino, dos anos 70, quando muito pouco ainda havia sido revelado sobre a guerrilha – uma descrição cheia de lacunas, segundo Ferroni, que percebeu um leve desprezo do autor pela figura do revolucionário. Assim como James, o narrador do romance é pedante, até irritadiço.

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Referências. Definido o formato da narrativa, o escritor passou a incluir referências históricas e literárias sempre onde elas não deveriam estar. Relatos de guerrilheiros estão lá aos montes, mas na maior parte das vezes na boca de outro que não aquele que os registrou. Num momento em que os cubanos tentam atravessar um rio a nado na Bolívia, a descrição aparece tal e qual a de cena similar no clássico Guerra e Paz, de Tolstoi. Na dúvida, o paulistano preferiu nem conhecer pessoalmente o cenário dos acontecimentos. “Não fui (para a Bolívia), e foi de propósito. Não fiz entrevistas, não visitei lugar nenhum. Com isso, a Bolívia se tornou meu país imaginado, como uma peça em que o fundo é um tecido pintado com a perspectiva levemente errado”, explica. “O cenário é literatura, as referências são de literatura, os personagens são recriados por eles mesmos nos diários.”

A saga recontada no romance resume-se aos dois últimos anos de vida de Che (1928-1967). Começa com os primeiros contatos, em La Paz, em 1966, entre agentes que formarão a rede urbana da missão na Bolívia, país escolhido como ponto de partida da revolução na América do Sul. Entre eles está Tania, argentina descendente de alemães infiltrada nos altos círculos da sociedade pacenha. Como a grande maioria dos personagens de Método Prático da Guerrilha, Tania existiu de fato. Era o codinome de Haydée Tamara Bunke Bider (1937- 1967), única mulher participante da ação boliviana e que, segundo biógrafos, teria sido amante do comandante Guevara.

Outra ponta da narrativa inclui a maior liberdade histórica de Marcelo Ferroni. Trata-se de João Batista, codinome de Paul Neumann, brasileiro de Caxias do Sul que, por percursos não muito claros, foi parar na selva boliviana ao lado de Che. No prefácio, o narrador apresenta esse como o grande diferencial de sua versão dos fatos – ele, e apenas ele, teve acesso a uma tal transcrição de interrogatório realizado por dois cubanos a serviço da CIA com Paul Neumann, em 1697, depois da morte do líder, e que permanecia intocada no Departamento de Estado dos EUA. O personagem, inventado por Ferroni, é uma espécie de Fabrício Del Dongo no romance A Cartuxa de Parma, de Stendhal: participa de uma guerra napoleônica sem ter a menor ideia do que está acontecendo.

Thriller. Jornalista por formação, há quatro anos vivendo no Rio – desde que assumiu o cargo de editor no selo mais literário da Objetiva -, Marcelo Ferroni buscou construir em Método Prático da Guerrilha uma espécie de thriller que é, ao mesmo tempo, uma provocação com os thrillers de base histórica. “Uma vez, um conhecido me disse que só lê ficção se for algo como O Código Da Vinci, que enquanto você lê aprende coisas sobre a Igreja. Daí pensei: “Mas tudo o que está lá é ficcional.” Meu livro é, de certa maneira, uma resposta a isso. Quem lê esperando encontrar a verdade não vai encontrá-la.”

O que o leitor encontrará será uma visão bem-humorada dos erros reais de planejamento que, naquele ano de 1967, ajudariam a levar à morte de Che Guevara, numa emboscada na selva. Toda a ironia, no entanto, não tira para Ferroni o papel heroico que desempenhou o argentino no século passado. “Um herói um pouco mais humano, muito autoritário, muitas vezes equivocado, mas ainda assim um herói.”

A coluna da semana

EDITAL
Prêmio Skidmore contemplará obras sobre o Brasil

O brasilianista Thomas Skidmore, de 79 anos, vai virar prêmio. Em 2011, para estimular a hoje escassa publicação nos EUA de trabalhos de historiadores brasileiros, o Arquivo Nacional lançará o Prêmio Skidmore, que a cada dois anos contemplará período ou temática já abordados pelo norte-americano. O primeiro edital avaliará livro autoral de história do Brasil publicado entre 2006 e 2010 e que aborde o período 1930-1945 – o mesmo de Brasil: de Getúlio a Castello, que a Companhia das Letras coloca nas livrarias na próxima semana, dando início à reedição das obras do autor. O segundo edital, em 2013, terá em vista livro lançado de 2008 a 2012 que trate do período 1964-1985 (assim como De Castelo a Tancredo). O terceiro, em 2015, livro de 2010 a 2014 sobre raças no Brasil (caso de Preto no Branco), e o quarto, em 2017, obra de 2012 a 2016 com temáticas pertinentes ao século 20 (como Brasil Visto de Fora). O prêmio consiste em subsídio de US$ 5 mil para tradução da obra ao inglês, com objetivo de publicação por editora americana.

NOVOS SELOS
Aposta na literatura

A associação entre a Ipsis Gráfica e a editora Alaúde, anunciada há seis meses por esta coluna, renderá seus primeiros frutos literários em abril, com o lançamento dos selos Tordesilhas e Tordesilhinhas. Logotipos e projeto gráfico serão de Kiko Farkas.

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Com clientes como Cosac Naify e IMS, a Ipsis garantirá o apuro gráfico dos selos, segundo o editor Joaci Furtado. Ele já fechou quatro títulos com a Libros del Zorro Rojo, referência catalã em obras ilustradas, incluindo caprichadas edições do Kama Sutra e da novela A Condessa Sangrenta (foto), da argentina Alejandra Pizarnik, com ilustrações de Santiago Caruso.

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O selo adulto apostará em clássicos (Mamede Jarouche traduz A Arte de Governar, fábulas políticas árabes do século 12 narradas por uma mulher), alta literatura (incluindo romance do historiador romeno Mircea Eliade) e ficção comercial (como dois títulos do sueco John Lindvist, autor do livro que originou o filme Deixa Ela Entrar).

MÚSICA
McCartney nas livrarias

Depois de falar português no Morumbi e andar de bike no Itaim-Bibi, o autor de Eleanor Rigby e Blackbird tornará a ser assunto entre brasileiros com o lançamento de Paul McCartney, Uma Vida>, de Peter Ames Carlin, pela Agir, no início de 2011. Carlin, autor também de biografia de Brian Wilson, costura a vida pessoal e profissional do ex-beatle a partir de dezenas de entrevistas.

JUVENIL
Viagem no tempo e nas telas

O selo Seoman, da Pensamento Cultrix, adquiriu em concorrido leilão os direitos de Tempest, primeiro livro de trilogia juvenil assinada por Julie Cross, previst0 para sair ano que vem nos EUA. Narrando a história de um jovem que viaja no tempo e tenta salvar a namorada, que morreu, a obra já teve direitos adquiridos pela Summit, produtora dos filmes da série Crepúsculo.

POLÍTICA
Vice da Bolívia no Brasil

O vice-presidente boliviano Álvaro García Linera virá ao Brasil no dia 13 para o lançamento de seu livro A Potência Plebeia (Boitempo), reunião de ensaios, publicados entre 1989 e 2008, sobre diferentes etapas do processo sociopolítico da Bolívia. García aproveitará para fazer uma rápida visita à presidente eleita, Dilma, em Brasília.

FUTEBOL
Galvão, uma antologia

Hit no Twitter durante a Copa, as pérolas de Galvão Bueno vão virar livro nos moldes de Nunca Antes na História Deste País, de Marcelo Tas, que reuniu frases de Lula.

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Com o mesmo ilustrador do título anterior, Ricardo Gimenes, o volume Calaboca Galvão sai também pela Panda Books, comentado por Pablo Peixoto. Entre os pensamentos selecionados, estão frases como “Essa chuva de Interlagos foi parecida com a de Silverstone, ambas tinham água…” e “Casagrande, eu tenho a impressão de que o Dunga pediu aos jogadores para chutar a gol.”

A pedra no caminho de Drummond, por Lygia Fagundes Telles

Reproduzo abaixo trecho do livro Biografia de Um Poema (ver post abaixo), uma das histórias compiladas pelo próprio Drummond sobre os versos de No Meio do Caminho, publicada originalmente em 1º de maio de 1948, no caderno Letras e Artes do jornal A Manhã.

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Poesia até o infinito

Por Lygia Fagundes Telles

“- Li o livro do Carlos Drummond – ele disse. E prosseguiu com uma careta: – Horrível! Então aquilo é poesia? Eu também sou moderno, gosto dos modernos, mas assim também é demais!

– Pela primeira vez ouvi hoje alguns versos dele. Gostei muito! – confessei.

– É impossível que você tenha gostado! – retorquiu o poeta. – Ouça só esta maravilha que tive a paciência de decorar… (…) – Começou:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(…) Calou-se e ficou a me olhar ansiosamente. Dei uma risada:

– Não acho horrível coisa nenhuma! Acho gozado – exclamei.

O moço da gravata-borboleta tirou então do bolso alguns versos que compusera.

Leu-os. E depois disse:

– Como você acaba de ver, nos meus também não há rima nem métrica. Mas há ideia e ritmo, compreendeu? Ao passo que…

– Sim, eu sei! – interrompi-o, impaciente. Não há como um dia de mau humor para se dizer as verdades todas. Pensei naquele alexandrino e não resisti. Disse-lhe: – Mas o fato é que já esqueci sua poesia. E não esqueci e “nunca me esquecerei desse acontecimento” a que você acaba de se referir.

(…) Fui pela rua com o livro debaixo do braço e pensando em meu exame. A nota era muito baixa e isto era uma coisa aborrecida, apenas aborrecida. Mas inesquecível. Como se fosse uma pedra no sapato. No sapato não, que também era demais. Mas uma pedra no meio do caminho, bem no meio do caminho. Está claro que seria fácil contorná-la. Mas, em redor de mim, fisionomias empedernidas também iam encontrando outras pedras: um encontro desfeito por causa da garoa, uma carta que não chegou no momento desejado, uma vaga que foi preenchida por outro… Pedras, pedras, pedras. Haverá outros encontros, chegarão outras cartas, abri-se-ão muitas outras vagas. Mas a garoa caindo forte justamente naquele momento, e o carteiro passando reto, e aquele sujeito sentado num lugar que quase foi nosso… Não, esses acontecimentos nunca mais serão esquecidos.

Agora eu já não achava essa poesia gozada. Tinha um autêntico gosto de vida e era um gosto bem amargo.”

A história da pedra no caminho

[publicado no Caderno 2 de 24/11. As usual, incluo aqui algumas imagens do livro que não entraram na edição impressa. O crédito de todas é Acervo Instituto Moreira Sales/Divulgação]


O poema em fac-símile da primeira edição de Alguma Poesia, de 1930

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IMS lança edição ampliada de fortuna crítica do poema de Drummond

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) costumava dizer que, se cometesse um crime, bastava sumir e reaparecer apenas dez anos depois, e então o crime estaria prescrito, mas que, em relação ao poema No Meio do Caminho, escrito em fins de 1924, podiam se passar 50 anos e ele nunca deixaria de ser julgado.

Tal noção o levou, ao longo de toda a vida, a recortar e guardar cada crítica, comentário e charge feitos sobre os versos “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho…”, publicados na Revista de Antropofagia, em 1928, e dois anos depois incluídos em seu livro de estreia, Alguma Poesia. O resultado desse esforço de compilação o poeta mineiro trouxe a público em 1967, ao lançar Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de Um Poema. Era uma resposta irônica às vésperas dos 40 anos daquela primeira publicação – com isso, o escritor devolvia aos leitores a leitura que eles haviam feito de seu trabalho.

O livro que o Instituto Moreira Salles lança hoje, no Rio, em homenagem aos 80 anos de Alguma Poesia, é uma edição ampliada da Biografia de Um Poema. O trabalho ficou a cargo do poeta Eucanaã Ferraz, que contou com a ajuda do próprio Drummond para a nova edição – mesmo depois de publicar a biografia, o poeta continuou, talvez por costume, a arquivar a fortuna crítica relativa a No Meio do Caminho – e incluiu, ao final, uma “biografia da biografia”, com as resenhas sobre o título de 1967.

“Drummond guardou muita coisa que saiu sobre ele ao longo da vida, mas em pastas, por assunto ou pelo sobrenome do crítico”, diz Ferraz, destacando a consciência do poeta, que trabalhou por muitos anos no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional), sobre a importância da preservação da memória. “A diferença no que diz respeito a No Meio do Caminho é que ele arquivou tudo não sobre o livro que o continha, mas sobre aquele poema.” Ferraz destaca ainda que, embora não tenha escrito uma única linha da biografia – o prefácio original ficou a cargo do português Arnaldo Saraiva -, Drummond fez sua própria leitura sobre as críticas ao separá-las em capítulos com títulos como Muita Gente Irritada, Das Incompreensões e Popularidade, Mesmo Negativa.

Crítica. O poema No Meio do Caminho não repercutiu ao sair na revista nem no livro de 1930. Neste segundo momento, lembra Ferraz, os versos foram eclipsados pelo Poema de Sete Faces, considerado à época sem pé nem cabeça. Foi em 1934, quando Drummond assumiu no Rio o cargo de chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública – posição-chave no ensino do País -, que os primeiros críticos usaram o poema da pedra contra o autor.

Considerados pobres e repetitivos (“O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio”, escreve Gondin da Fonseca em 1938), rejeitados pelo “brasileirismo grosseiro, erro crasso de português” (conforme crítica da Folha da Manhã, em 1942, pelo uso do popular “tinha” no lugar do correto “havia”), os versos facilitaram a vida dos críticos do modernismo. Depois, passaram a receber exaltados elogios.

A discussão incomodava o poeta, mas ele logo percebeu que graças a ela tinha um livro “sobre como uma obra de arte sai de seu universo e ganha dimensão social e cultural”, como descreve Ferraz, entusiasta do poema. “Não adiantou Drummond dizer que isso não era digno de tanta atenção, tanto que 80 anos depois estamos falando sobre o tema. O poema desmentiu Drummond.” Numa coisa, porém, Drummond estava certo. Como escreveu nos versos, ele nunca teve a chance de se esquecer daquele acontecimento, a pedra no caminho, na vida de suas retinas tão fatigadas.

UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO – BIOGRAFIA DE UM POEMA

Autor: Carlos Drummond – edição ampliada de Eucanaã Ferraz. Editora: IMS (344 págs., R$ 50). Lançamento no Rio: IMS. Rua Marquês de São Vicente, 476, (21) 3284-7400. Hoje, a partir de 19h30.

Drummond e a pedra no traço de Loredano

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Drummond em retrato de Marcel Gatheurot, de 1959

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A pedra musicada por Francisco Mignone, em 1938

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A pedra em charge de Augusto Rodrigues, no Diário de SP, em 1943

Escreva uma história com Tim Burton

Você se lembra de uma brincadeira em que uma pessoa escreve uma frase num papel, dobra a parte de cima e a pessoa seguinte lê o fim da frase para então escrever outra, construindo uma história?

O escritor, artista, cineasta etc. Tim Burton criou uma página que leva a ideia para a internet. Chama-se Tim Burton’s Cadavre Exquis, título que se refere a “exquisite corpse” – nome da tal brincadeira que, segundo a Wikipedia (pode confiar?), foi inventada pelos surrealistas (não sei como é o nome do jogo em português. Se alguém souber, me conte).

Burton lançou a primeira frase (“Stainboy, using his obvious expertise, was called in to investigate mysterious glowing goo on the gallery floor”) seguida da hashtag #BurtonStory e pede a usuários do Twitter que continuem a saga usando a hashtag.  Na página inicial, aparece sempre a última frase (e as atualizações de todos que usaram a hashtag no Twitter) e o convite para escrever a próxima.

Os melhores tuítes do dia são escolhidos pelo próprio Burton, e a história segue até dia 6/12 – por enquanto, 13 foram aprovados. A ideia é escrever quase às cegas, só com base no primeiro e no último tuíte, mas quem quiser pode ler tudo clicando em Read the Story.

(Quem me cantou a bola para este post foi a Bruna Bittencourt, ex-colega de Ilustrada tão viciada em internet quanto eu, mas que curiosamente resiste a ter um blog ou frequentar redes sociais…)

A coluna da semana

[Publicada no Sabático de 20/11]

BABEL

Raquel Cozer, raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

ENCONTRO
Livraria da Vila terá festival sobre águas do Rio Negro
Loja oficial de eventos como Flip e Festival da Mantiqueira, a Livraria da Vila resolveu inventar festival próprio, um tanto fora do padrão, para 2011. Trata-se do Navegar É Preciso, que acontecerá de 8 a 13 de maio sobre as águas do Rio Negro, no Amazonas. Um navio abrigará autores e artistas nacionais em encontros sobre literatura e educação. Já estão confirmados Laurentino Gomes, Mary Del Priore, Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Ilan Brenman e o grupo Mawaca. A programação inclui atividades fora do barco, como pesca, trilhas e visita a biblioteca do projeto Vagalume numa comunidade. “Quis juntar a ideia da livraria como ponto de encontro com projeto de sustentabilidade e turismo. Nunca fiz esse passeio, achei que seria ótimo fazê-lo com pessoas que gostam de cultura”, diz Samuel Seibel, dono da livraria. Interessados podem guardar grana desde já: com uma noite em hotel e quatro no cruzeiro Iberostar Gran Amazon, o passeio custará de R$ 4.525 a R$ 7.655, sem aéreo. Informações: http://www.auroraeco.com.br e (0-11) 3086-1731.

ENSAIOS
Anseios de Leminski

Em março de 2011, a Editora da Unicamp vai colocar nas livrarias a reedição de Ensaios e Anseios Crípticos, de Paulo Leminski, com mais de 50 textos curtos sobre assuntos variados, como Euclides da Cunha, rock e haicai. Os ensaios foram publicados originalmente em dois volumes pela curitibana Criar Edições. O primeiro, de 1986, com noções teóricas, está esgotado. O outro, de 2001, ainda em catálogo, contém análises de autores que o poeta admirava.

INFANTIL
A quatro mãos

Dois dos autores de quadrinhos brasileiros de maior prestígio no País, Ziraldo e Mauricio de Sousa, almoçaram juntos na terça em São Paulo para bater o martelo de um projeto editorial. Lançarão, na Bienal do Rio de 2011, dois infantis pela Melhoramentos. Detalhes ainda são segredo, mas a tiragem inicial está definida: 100 mil cópias.

LIVRARIA 1
Venda consciente

Sem interesse em faturar com as vendas de Decision Points – autobiografia de George W. Bush, lançada com 1,8 milhão de cópias nos EUA -, mas também disposta a atender qualquer eventual fã do ex-presidente, a livraria independente Green Apple, de São Francisco, achou uma solução: doar 100% dos lucros com o título a um hospital local.

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Não foi a primeira vez que a loja tomou posição política. Em 2009, deu a uma ONG do Alasca o faturamento com Going Rogue, de Sarah Palin. “Vendemos 10 ou 12 cópias. Foram 8 ou 10 a mais do que teríamos vendido (sem o anúncio da doação)”, disse Kevin Ryan, dono da livraria, ao SFWeekly. Da obra de Bush, que já vendeu 775 mil cópias, a Green Apple estocou só 12 unidades.

LIVRARIA 2
As melhores do mundo

A City Lights Bookstore (foto), também em São Francisco, é a melhor livraria do mundo segundo o recém-lançado Lonely Planet”s Best in Travel 2011: “Tendo sido ponto de encontro de ícones literários americanos, dos autores beat em diante, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, ainda é central para a vibrante cena cultural da cidade.”

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Completam a lista do guia, na ordem:

2º) El Ateneo (Buenos Aires)

3º) Lello (Porto)

4º) Shakespeare & Company (Paris)

5º) Daunt Books (Londres)

6º) Another Country (Berlim)

7º) The Bookworm (Pequim)

8º) Selexyz Dominicanen (Maastricht)

9º) Bookàbar (Roma)

10º) Atlantis (Santorini, na Grécia)

LEILÃO
Os livros de Cyro Pimentel

Interessados no leilão de itens do acervo pessoal do poeta Cyro Pimentel, que ocorre no próximo sábado, conforme noticiado pela coluna na semana passada, podem contatar o leiloeiro José Luiz Garaldi pelos telefones (0–11) 3257-4362 e 3283-3635 ou pelo e-mail livrariasereia@uol.com.br.

Estante triste

Roubar ideia de post de blog da casa pode? Ah, quando é linda, pode. Ou, se não podia, criei o precedente. Roubei esta (aproveitei e chupinhei junto o texto) do Renato Cruz, também repórter do Estadão, que tem blog no Link.

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“A estante triste está triste porque todo mundo tem um iPad. Ou um Kindle”, segundo o blog Make.

Ela foi projetada pelo designer americano Blaine Johnston, da Red F Studios.

Duas Babéis

Mais tarde faço aqui um balanço do Fórum das Letras de Ouro Preto. Lembrei agora que não joguei aqui a Babel deste  sábado nem a do dia 30, então seguem ambas (e saca só que arraso que promete ser essa HQ Democracy, do mesmo cartunista de Logicomix, uma das minhas preferidas deste ano).

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[Publicado no Sabático de 13/11]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

POESIA
Tradução inédita de Ezra Pound

O selo Demônio Negro lança em abril do ano que vem a primeira tradução brasileira de Lustra, volume de poemas que Ezra Pound (1885-1972) publicou em 1916 e no qual é possível perceber efeitos de impacto e provocação que se tornariam característicos de sua obra. Sairá em edição montada manualmente, com capa dura em tecido alemão e tradução e introdução de Dirceu Villa. No texto, Villa lembra os argumentos de Pound ao editor ao saber de cortes em Lustra: “O que quer que você tire, a posteridade vai pôr de volta, e o fará ridicularizando a época e o mau gosto que levaram a removê-lo.” O poeta estava certo – a edição brasileira, bilíngue e anotada, inclui os textos censurados à época.

REPORTAGEM
Bonnie e Clyde da vida real

A história real de um casal multirracial que sequestra um avião nos anos 70, foge com o dinheiro e vai viver entre a intelectualidade francesa é o tema de The Heavens Belong to Us, previsto para sair no exterior em 2012 e cujos direitos foram adquiridos pela Zahar.

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O autor, Brendan I. Koerner, é colunista do New York Times e da Slate. Seu primeiro livro, Now the Hell Will Start (2008), investiga a maior caçada humana realizada pelo Exército americano, em plena selva indo-birmanesa, durante a 2.ª Guerra. O livro teve os direitos comprados para o cinema por Spike Lee, e Koerner trabalha no roteiro.

QUADRINHOS
A democracia depois da lógica

Depois de ser convidado a ilustrar a HQ Logicomix, que virou fenômeno ao contar a história da lógica na matemática, o cartunista grego Alecos Papadatos parte para projeto próprio, mas de natureza similar. Trata-se de Democracy (imagem), que narra o nascimento do “governo do povo” em Atenas. Com texto de Abraham Kawa, ficará pronta apenas em 2012, mas os direitos já foram garantidos pela WMF Martins Fontes, que também publicou Logicomix por aqui.

LEILÃO
Preciosidades desvendadas

O leiloeiro José Luiz Garaldi acabou de garimpar o acervo do poeta Cyro Pimentel (1926-2008), cuja existência foi noticiada em setembro por esta coluna. Achou raridades, como a impressão régia de 1819 proibindo a venda de fogos no Rio, devido a acidentes. É a única cópia de que se tem notícia e será exposta na R. Oscar Freire, 42, dias 25 e 26, entre 201 itens a serem leiloados dia 27.

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Item mais caro: dois números da revista francesa Verve, de 1952, com litografias de Braque, Matisse, Chagall e outros. O valor inicial é de R$ 3.400. Há ainda, com lance de R$ 2,400, a única coleção completa conhecida de A Rolha, semanal de 1918 cujas denúncias levaram o diretor, Benedito “Baby” de Andrade, a ser assassinado num bar paulistano. Entre os livros, há duas cópias de A Luta Corporal (1954) autografadas por Ferreira Gullar. A mais bem conservada terá lance de R$ 170, e a menos, de R$ 870 – é que esta foi dedicada a Oswald de Andrade.

ENCONTROS
Música e leitura

A Editora 34 inicia em dezembro o projeto literário e musical Leituras Íntimas, que terá na abertura, dia 13, a autora Beatriz Bracher e a crítica Noemi Jaffe lendo trechos de obras ao som de música brasileira ao vivo. Os encontros, sempre mensais, serão na Casa de Francisca, nos Jardins.

SAÚDE
História de uma doença

Prevista para sair nos EUA na terça, The Emperor of All Maladies, uma “biografia do câncer”, foi comprada pela Companhia das Letras. O livro de estreia do médico Siddhartha Mukherjee já mereceu texto de cinco páginas da New Yorker e elogios do renomado historiador Tony Judt (1948- 2010), que declarou: “Com ele, Mukherjee ingressa no pequeno rol de médicos que pode não só falar como escrever sobre a profissão.”

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[Publicado no Sabático de 30/10]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

CLÁSSICO
D. Quixote integral, revisto e pela metade do preço

A Editora 34 lança no dia 15, exclusivamente na Fnac, edição de bolso de D. Quixote, com texto integral revisto pelo tradutor, Sergio Molina. Cada um dos livros – O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha, cuja tradução foi premiada no 46.º Jabuti, e O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha – custará R$ 39, ante os R$ 79 das edições originais. Diferentemente dessas, as versões pocket da obra de Cervantes não são bilíngues nem têm ilustrações de Gustave Doré, mas mantêm as notas e a apresentação de Maria Augusta da Costa Vieira. É a segunda vez que a 34 investe no formato, já consolidado no País. Em 2009, realizou teste bem-sucedido com A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Agora, estuda a possibilidade de fazer o mesmo em 2011 com Fausto, de Goethe.

PREMIADO
Booker em português

O vencedor do Man Booker Prize 2010, The Finkler Question, sai por aqui no ano que vem. O romance de Howard Jacobson foi comprado pela Bertrand Brasil depois de surpreender na premiação – dias antes do anúncio, surgiram tantos apostadores para C, de Tom McCarthy, que a casa inglesa de apostas Ladbrokes suspendeu os negócios, desconfiada de vazamento do resultado.

TRADUÇÃO
Enigma do capital

A Boitempo adquiriu os direitos de The Enigma of Capital, do geógrafo David Harvey, professor da Universidade da Cidade de Nova York. A editora venceu disputa com grande casa brasileira após intervenção do próprio autor – meses atrás, havia comprado também dele A Companion of Marx’s Capital. Ambos devem sair em 2011, para quando Harvey programa visita ao País.

TENDÊNCIA
A era do amor

Dois romances de forte temática amorosa, dos mais concorridos em Frankfurt, chegam ao Brasil nos próximos anos. Night Circus, estreia da americana Erin Morgenstern , sobre dois aprendizes de mágico no fim do século 19, foi comprado pela Intrínseca. A Record ficou com Every Day, Every Hour, da croata Natasa Dragnic, disputado por cinco editoras nacionais e que narra as agruras de um casal afastado pelo destino.

CIÊNCIA
Outro olhar sobre a genética

Uma das maiores apostas da Zahar dentre as aquisições no período de Frankfurt é Epigenetic, de Richard Francis. No livro, o neurocientista questiona o determinismo genético partindo da ideia de que o ambiente bioquímico que reveste os genes influencia o desenvolvimento neural e fisiológico.

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A explicação para a confiança da editora em obra de tema tão complexo está no estilo do autor, que busca referências simples para leigos. Em capítulo sobre as diferentes reações humanas diante de trauma, por exemplo, ele exemplifica com o clássico O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino.

FUTEBOL
Livro sagrado do São Paulo

Após a Bíblia do Corintiano, lançada no centenário do time, a Panda Books prepara para janeiro a Bíblia do São-Paulino, que incluirá reprodução do RG de Leônidas da Silva e comprovante de participação na “campanha do cimento”, da época da construção do estádio do Morumbi. No total, serão 30 itens no volume, de autoria de Rui Branquinho e do historiador Michael Serra.

DIGITAL
Vendas internacionais

A questão de como garantir o respeito de direitos territoriais na venda de e-books vem ganhando destaque. Há poucos dias, a revista Bookseller provou ser possível comprar, do Reino Unido, títulos restritos aos EUA. Bastou registrar na Amazon endereço americano e usar cartão de crédito inglês.

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Outra preocupação do mercado inglês é que os livros digitais têm ajudado editoras americanas a superarem um ponto fraco. Os europeus, maiores compradores estrangeiros de títulos no idioma, deixaram de privilegiar sempre a edição britânica, antes beneficiada pela proximidade física.

Pois é poesia. Ou não

Fotos Carol Reis/Divulgação

Não sou fã da poesia de Adélia Prado. Vejam bem, isso é diferente de desmerecer a obra dela, que respeito, e o alcance que tem, principalmente em se tratando de um gênero tão pouco lido no Brasil. O auditório lotado do Cine Teatro Vila Rica, ontem, no Fórum das Letras de Ouro Preto, ajudou a dar a dimensão.

Mas houve um momento ali pouco depois do começo que me peguei encantada por aquela “pacata senhora mineira” (a expressão é referência a uma das formas como, segundo ela, costumam chamá-la em cartas). Daquele jeitinho tranquilo, macio, ela fala coisas como “Hitler, Stálin (…). Cometo os mesmos crimes em outra ordem, posso cortar o falo do meu marido sendo possessiva. Um crime tem sangue, o outro é incruento”. Ou “Quando me excluo, quando digo: ‘Aqui estão os bonzinhos, ali estão os malvados’… Isso não existe. Não há nação que vá para a frente assim”.

Ao ponto em que Edney Silvestre, que dividia a mesa com ela, achou por bem assumir papel de entrevistador junto com Leda Nagle, em vez de entrevistado ao lado de Adélia, já que era ela que todos queriam ouvir. Foi pena que mesmo com o reforço a mediação tenha errado a mão nas questões sobre fé e religiosidade. A certa altura, a própria Adélia constatou: “Depois vão dizer que dei aula de catecismo em vez de falar de literatura, mas olha as perguntas que vocês me fazem”. Instada a falar do tema, ela discorria e repetia: “Esquece Deus”, respondeu para Silvestre quando ele questionou se não ter fé diminuiria alguém, “você pode amar ao próximo e a si mesmo”.

Só hoje de manhã parei para pensar numa contradição no pensamento dela. Bem no começo, ela demonstrou imenso preciosismo ao explicar que pode enxugar e mexer quase infinitamente em versos até considerá-los dignos de publicação (“Você pode ir pro inferno se fizer uma coisa dessas”, disse, na minha frase preferida de toda a mesa, sobre enviar um texto para o editor sem ter certeza de que está bom). Mais perto do fim, tentando definir arte, mandou: “Não existe literatura pensada. A arte verdadeira tem sangue, excremento, suor (…). Não há transcendência que sobreviva ao banheiro”. Mas então reescrever não é pensar a literatura? Só é, mesmo nos casos em que a origem é pura inspiração – e, para mim, isso é sempre bom. Digo, reescrever. Saber que ela tem esse  preciosismo só me faz admirá-la.

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Sou fã de poesia concreta, e acho que admitir isso é bem mais impopular que dizer que não sou fã da poesia de Adélia Prado. Conheço muito menos do que gostaria das origens do concretismo – o simbolismo, Ezra Pound, e.e. cummings e afins -, mas sempre me fascinou aquela linha tênue que separa a poesia do design, a literatura das artes plásticas. Então para mim, ontem, era muito mais esperada a mesa do Décio Pignatari, que veio logo depois da de Adélia.

É claro que, justamente por essa uma opinião impopular, Pignatari nem de longe atraiu tanta gente quanto Adélia. E ainda conseguiu perder umas cinco espectadoras de uma vez só ao dizer com todas as letras que “o teatro brasileiro é uma vergonha”.

Mas foi uma das mesas que mais me divertiram. Pignatari está bem velhinho, com 83 (aliás, o caçula dos concretos originais, Augusto de Campos, completa 80 no ano que vem). Eu nunca o tinha visto pessoalmente e fazia tempo que não via nenhuma entrevista com ele. Mas o resultado não é muito diferente do que a gente poderia imaginar. Se alguém é radical nos conceitos depois que a juventude já passou, e radical era tudo o que os concretos eram e seguiram sendo, essa característica tende só a se acentuar quando a velhice chega.

Daí que, depois que o mediador e o poeta Fred Barbosa, no palco com Pignatari, ficaram quase uma hora tecendo loas ao concreto e aos frutos do concretismo, foi engraçado quando Pignatari finalmente tomou a palavra: “Não estou interessado em nada disso, muito menos em poesia. Poesia é um saco, não tenho mais paciência. Não vou escrever nunca mais”.

Não vou aqui reproduzir tudo o que ele falou porque é mais ou menos aquilo que a gente leu nas últimas décadas, mas vale um exemplo que resume muito o que foi a mesa dele. Até porque ele repetiu umas cinco vezes, acho, algumas delas esquecendo que já tinha falado antes. “Sobre a velha Ouro Preto o ouro dos astros chove”, recitou, com ênfase, o verso de Olavo Bilac – que, se não me engano, aparece no livro dele O Que É Comunicação Poética. “Tem seis ôs fechados e um ó aberto. Isso é que é poesia, mas ninguém está entendendo nada disso. As pessoas tentam entender o conteúdo, mas a graça da poesia é que ela expande o verbal rumo ao não verbal.”

E uma gracinha, para finalizar, em resposta a quando o Fred Barbosa questionou o fato de ele dizer que poesia enche o saco e ao mesmo tempo ser aplaudido por um público ao falar de poesia: “Ora, não nasci ontem”, disse Pignatari. “Sou professor, sei seduzir um público”.

Jornalismo x biografia

Foto Carol Reis/Divulgação

O jornalista Lira Neto, biógrafo da Maysa e do Padre Cícero, chegou ao hotel ontem, em Ouro Preto, preocupado com o fato de sua mesa ser no sábado de manhã, horário da ressaca. É claro que isso não o impediu de aproveitar a sexta à noite: Bira, Gui, Maria Fernanda (do Publishnews) e eu fomos jantar com ele na Casa dos Contos (cachaça de cortesia no cardápio, mas, em defesa do Lira, a cachaça ele não tomou). E só não estendemos pra um barzinho porque não tinha lugar aberto depois que nos sentimos convidados a parar de atrapalhar o sono dos garçons e cozinheiros.

Daí que ele ficou surpreso quando viu lotada a sala onde rolou hoje sua mesa sobre jornalismo e literatura com Paulo Markun e Edward Pimenta – no público, entre outros, Décio Pignatari, que saiu antes do fim, e Adélia Prado. Lira Neto é tipo showman, contador de causos, e repetiu tipo metade das histórias que tinha nos contado no restaurante. O resto acho que era impublicável.

Ele contou que esteve faz alguns meses aqui para investigar sobre seu próximo livro, uma trilogia sobre Getúlio Vargas a ser lançada nos próximos anos. Agora dá pra incluir uma história sobre a qual falou no jantar: ele sabia que Luiz Schwarcz tinha interesse em publicar uma megabiografia sobre Getúlio e que já havia inclusive convidado três biógrafos (acertei pelo menos um dos três, mas qualquer um acertaria) a abraçar a causa; como soube que os convites não tinham animado nenhum dos três, fez a sugestão, devidamente aceita.

A vinda para Ouro Preto era para confirmar uma lacuna na história pessoal do ex-presidente. Getúlio e o irmão estudaram na juventude em Ouro Preto – o irmão, mais velho, cursava a Escola de Minas, que formou alguns dos principais engenheiros do País; Getúlio cursava o Ginásio Mineiro. Sabia-se que nesse momento havia ocorrido um assassinato, que alguns biógrafos atribuem a Getúlio, e outros, ao irmão. Lira mergulhou nos arquivos da escola sobre Getúlio e não encontrou nada. Estava desistindo quando resolveu tentar algo que ninguém tinha feito antes: investigar os arquivos do irmão de Getúlio, um calhamaço empoeirado e desanimador. Mas lá estava a confirmação: era o irmão o assassino.

A mesa foi bem bacana. É curioso como a gente sempre valoriza mais mesas com estrangeiros, tipo a única chance de ver um grande autor gringo de perto, mas não raro mesas com brasileiros impressionam mais. No caso do Lira e do Markun, com detalhe importante: as biografias que fizeram incluem detalhes nunca antes publicados e que eles conseguiram por mérito próprio, ao contrário de jornalistas que escrevem sobre história e que apenas compilam dados já investigados por outras pessoas. Seguem algumas frases, trechos, momentos que me chamaram a atenção.

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“Quando Ruy Castro soube que eu faria uma biografia de Maysa, disse: ‘Cuidado, biografar mulher é encrenca, você se apaixona por ela.’ Não deu outra: tive ciúme de Ronaldo Bôscoli, o único homem à altura dela, além de mim” (Lira Neto)

“Quando Castelo Branco estava deixando a presidência, a contragosto, ele ligou para Rachel de Queiroz e disse: espalhe para seus amigos: o Brasil perde um presidente sem pesçoco para ganhar um sem cabeça” (Lira Neto)

“Meu principal personagem é o poder. Isso é claro na biografia do Castelo Branco, na do Alencar, cujo título é Inimigo do Rei (em relação a Dom Pedro 2º), na da Maysa, na relação com a imprensa, como ela usava a mídia e como a mídia a usava” (Lira Neto)

“Lira gosta do poder, eu gosto dos perdedores (como personagens). Você aprende com o fracasso. O Herzog, o Cabeza de Vaca, de certa maneira eles são perdedores” (Markun)

“Quando penso em fazer uma biografia, três coisas me vêm a cabeça: se tem gente que vai querer ler, se vai vender e se a história me interessa” (Markun)

“As biografias fazem sucesso porque as pessoas estão órfãs de narrativas. O romance contemporãneo, na busca por novas possibilidades, implodiu a narrativa. Isso é lindo, mas abriu essa lacuna” (Lira Neto)

“Biografia romanceada pra mim é algo indigesto. Vai fazer então um romance histórico” (Lira Neto)

“Eu acho necessária a regulamentação dos meios de comunicação. Não vejo esse perigo de tramas do governo como ouço por aí” (Markun)

A caminho de Ouro Preto

Então é isso. Amanhã cedo (aliás, tão cedo que não deveria estar aqui postando) pego voo pra BH e sigo para o Fórum das Letras de Ouro Preto. Contarei tudo o que rolar de legal por aqui (você pode assinar os feeds) e também pelo meu Twitter.

Para entrar no clima, uma foto que tirei da última vez que estive por lá. Uma orientação para quem for à cidade: é proibido capotar seu caminhão.

Do Portugal Telecom

Dessas imagens que dizem mais que mil palavras, a foto abaixo, feita por Leonardo Soares, da Agência Estado, dá uma dimensão do que foi a entrega do Portugal Telecom na noite de segunda-feira – Jô Soares entregando o prêmio para Chico Buarque, mas parecendo tentar puxar para si próprio o troféu.

Como me escreveu um autor hoje pela manhã, após ler o texto que fiz para o Caderno 2 (e que segue abaixo), “aproveitar o Chico para fazer escada é demais mais mais”.

Sobre o resultado… Leite Derramado “não é mau”, como argumentou Chico. Vi muita gente fazendo críticas pesadas ao romance, do qual até gostei. O caso é que, levando em conta aspectos puramente literários, havia concorrentes mais fortes, como O Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho (ainda não consegui parar para ler A Passagem Tensa dos Corpos, do Carlos de Brito Melo, nem Pornopopeia, do Reinaldo Moraes, dois que foram muito elogiados por pessoas cuja opinião respeito).

Mas prêmios nunca existiram para fazer algum tipo de justiça divina. E quem quiser discordar que faça parte da curadoria do próximo…

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“Merecia estar entre os primeiros”

Chico Buarque, vencedor do Prêmio Portugal Telecom por Leite Derramado, diz que livro “não é mau”

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

“Não li todos, não sei se mereço o prêmio, mas merecia estar entre os primeiros, talvez”, disse Chico Buarque, ontem, após ganhar o Prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes para obras em língua portuguesa, por Leite Derramado (Companhia das Letras). “O livro não é mau.”

O resultado, anunciado em cerimônia comandada por Jô Soares, já era esperado entre os presentes na Casa Fasano desde que, no início da noite, soube-se que o músico confirmara presença. O mesmo havia acontecido na quinta passada, quando ficou em segundo lugar na categoria romance do Prêmio Jabuti, mas levou a honraria na categoria principal de ficção, de livro do ano.

Pelo Portugal Telecom, Chico recebeu R$ 100 mil. Em segundo lugar, ficou o romance Outra Vida (Alfaguara), de Rodrigo Lacerda, que levou R$ 35 mil, e, em terceiro, o volume de poemas Lar, (Companhia das Letras), de Armando Freitas Filho.

“Sou meio responsável por este prêmio. Falei: ‘Se o Chico não ganhar eu não vou'”, emendou Jô após o anúncio. Ansioso para chamar o músico ao cenário montado no formato de seu programa de TV, o apresentador nem citou os outros seis finalistas. Além dos vencedores, estavam indicados AvóDezanove e o Segredo do Soviético, do angolano Ondjaki (único não brasileiro entre os concorrentes), A Passagem Tensa dos Corpos, de Carlos de Brito e Mello, O Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho, Pornopopeia, de Reinaldo Moraes, Olhos Secos, de Bernardo Ajzenberg, e Monodrama, de Carlito Azevedo.

O romance Caim, de José Saramago, foi retirado da disputa na semana passada a pedido da Fundação Saramago e da Companhia das Letras. A organização optou por homenagem, com a presença da viúva do escritor, Pilar del Río. Ao lado da escritora Nélida Piñon, ela foi chamada ao palco no início da noite para falar sobre o autor e a fundação antes da exibição de trechos do documentário José & Pilar.

Depois de anunciar os vencedores, Jô perguntou a Chico se ele não achava uma injustiça ter sido premiado por apenas dois (“três”, corrigiu o músico) de seus quatro romances. “Acho”, respondeu o autor, em tom de brincadeira. Jô então o questionou sobre o fato de se considerar ou não um escritor amador. “Eu não, mas as pessoas me consideram”, respondeu o músico, ao que o apresentador aproveitou para fazer propaganda em causa própria: “Pergunto isso porque lembro de uma crítica do Wilson Martins que dizia que você e eu éramos amadores. Só que àquela altura nossos livros já tinham vendido barbaridade!”

Chico disse achar natural que as pessoas tenham restrição a escritores que não escrevam em tempo integral – bissexto, ele lançou o primeiro romance em 1991 (Estorvo) e os outros vieram em 1995 (Benjamin), 2003 (Budapeste) e 2009 (Leite Derramado).

“É difícil dissociar o narrador da pessoa pública. As pessoas pensam que o livro faz sucesso porque o autor tem um programa de TV ou é compositor. Mas não acho chato isso, não. Se eu visse um outro compositor ou apresentador que escrevesse um livro, talvez eu desconfiasse de que não fosse bom. Isso é muito natural”, concluiu.

De onde vêm as boas ideias

Fui pela manhã num evento em que a Zahar apresentou alguns dos livros previstos para os próximos meses e, a certa altura, os editores (incluindo Rodrigo Lacerda, recém-premiado com o segundo lugar do Portugal Telecom pelo romance Outra Vida) passaram o trailer do novo livro de Steven Johnson, Where Good Ideas Come From, que eles devem lançar em algum momento do ano que vem.

Ex-colunista da Wired e da Slate, Johnson é um dos maiores pensadores do ciberespaço. Teve por aqui, também pela Zahar, publicados títulos como A Invenção do Ar. O novo livro, diz ele, é um sonho realizado de anos de trabalho.

Se for tão bom quanto o trailer, promete. O vídeo é imperdível também para quem não está nem aí para a ciência, mas adora quadrinhos.
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A coluna da semana

Coloquei no pé do post duas imagens da HQ O Pequeno Livro dos Beatles (do mesmo autor de O Pequeno Livro do Rock, sobre o qual escrevi faz alguns meses no Caderno 2), que sai na França neste mês e, na sequência, é lançado por aqui, com a presença do criador, Hervê Bourhis, na Livraria Cultura.


As usual, clique nas imagens da HQ para ampliar.


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[Publicada no Sabático de 6/11]


BABEL
Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

DIGITAL
Selo terá primeiro infantil de Paulo Coelho e inédito de Faulkner

Um título infantil de Paulo Coelho – o primeiro em quase 30 anos de carreira – está entre as apostas para 2011 da Benvirá, selo de ficção e não ficção da Saraiva que completa um ano em abril. A sugestão foi feita ao best-seller pelo diretor editorial Thales Guaracy, que antes disso coloca no mercado versões paradidáticas de três obras dele já publicadas, Veronika Decide Morrer, O Alquimista e O Demônio e a Srta. Prym. “O infantil será algo no estilo Alice no País das Maravilhas, no sentido de ter mais texto que imagem. A ideia é que seja um título que os pais e os filhos possam ler”, diz Guaracy. Outro dos investimentos do selo será em obras de grandes autores de língua inglesa ainda não editadas no Brasil. Caso, por exemplo, de William Faulkner (1897-1962), de quem a Benvirá publicará a primeira tradução do volume de contos Knight”s Gambit (1949) – além de novas edições de cinco outros títulos -, e de Patricia Highsmith (1921-1995), com This Sweet Sickness (1960), A Suspension of Mercy (1965) e The Black House (1981).

INFANTIL
Mordida em Picasso


Filho da fotojornalista Lee Miller com o pintor surrealista Roland Penrose, o inglês Antony Penrose guardou de eventos na casa dos pais uma recordação que virou livro de título autoexplicativo: O Menino Que Mordeu Picasso. Ilustrado com obras do espanhol feitas para o menino e fotos deles juntos (foto), o livro inclui lembranças sobre o artista que “cheirava a perfume francês” e cujo paletó de tweed “pinicava”. Sai no Brasil no primeiro semestre do ano que vem, pela Cosac Naify.

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Sobre a mordida-título, Tony relata que Picasso revidou. E ainda comentou: “Foi a primeira vez que mordi um inglês!”

CONGRESSO
Escritores no Brasil

O ficcionista cubano Pedro Juan Gutiérrez, a escritora e ensaísta americana Camille Paglia e o francês Roger Chartier, estudioso da história do livro e da leitura, confirmaram presença no 3.º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, que acontece de 16 a 20 de maio de 2011 em São Paulo.

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Outra estrela do evento promovido pela Cult e por universidades é do meio cinematográfico. O alemão Werner Herzog aceitou convite para falar sobre Glauber Rocha nos 20 anos da morte do diretor brasileiro.

MÚSICA
O livro dos Beatles

Depois que Paul McCartney se apresentar em São Paulo, no fim deste mês, fãs encontrarão nas livrarias a HQ O Pequeno Livro dos Beatles, do francês Hervê Bourhis. Nos moldes de O Pequeno Livro do Rock, o novo título da Conrad terá lançamento na Livraria Cultura, com presença do autor.

SUPER-SELLER
Ecos de um sucesso

Cinco dias bastaram para Cemitério de Praga, romance de Umberto Eco lançado no último dia 29 na Itália, precisar de três impressões e chegar ao topo das listas de mais vendidos na Itália. Com 370 mil cópias, a obra tem sido comparada ao maior sucesso de Eco, O Nome da Rosa, lançado há exatamente 30 anos. A nova saga de conspirações e assassinatos sai pela Record em 2011.

HISTÓRIA
Idade Média revisitada

A Editora da Unicamp pretende traduzir até 2012 ao menos meia dúzia de títulos recentes que revisam temas do período medieval. Ainda este ano, sai A Cavalaria, de Dominique Berthélemy. Em 2011, Cidades e Sociedades Urbanas na Itália Medieval, de Patrick Gilli, e A Guerra Santa, de Jean Flori. O primeiro da série foi Inventar a Heresia?, organizado por Monique Zerner e traduzido por Néri de Barros Almeida.

INTERCÂMBIO
Edições bilíngues

Contatos em Frankfurt renderam ao selo Demônio Negro parcerias com a editora italiana Edizione Torino Poesia e a inglesa &Others Stories. A intenção é publicar títulos bilíngues, na Itália, Inglaterra e aqui, preparando catálogo para 2013, quando o Brasil será homenageado na feira alemã. O foco editorial será em poesia contemporânea.