Confesso que, quando a prova de o remorso do baltazar serapião (assim, tudo em caixa baixa) chegou na redação, no finzinho do ano, perto do Natal, entrou numa pilha de “a serem lidos” e ficou esquecida por ali. Embora tivesse lido en passant coisas sobre ele nos blogs portugueses que acompanho, não consegui parar para dar atenção. Nesta semana soube que o romance chegaria às livrarias nos próximos dias (mais precisamente, no dia 29) e que ele viria para a Flip. É, não há o que negar, e esse é um dos grandes méritos de outros eventos literários como a Flip, o Fórum das Letras de Ouro Preto, a Fliporto, a Jornada de Passo Fundo: a confirmação de um autor atrai o interesse do público e, é claro, da imprensa. O fato de os três maiores jornais do País terem dado capa para o autor neste sábado é prova disso.
Não acho bom quando todos os cadernos literários saem com a mesma capa, mas, neste caso, é compreensível. Peguei o livro de quase 200 páginas pra ler numa noite e terminei poucas horas depois, quase sem fôlego. O mesmo aconteceu com o Antonio Gonçalves Filho, que fez a resenha sobre o livro na edição de hoje. Então dá para imaginar que os repórteres do Globo e da Folha tenham pensado a mesma coisa (embora imagino que para o leitor pareça lobby, por isso é ruim saírem todas as capas iguais).
A coisa de ser escrito todo em minúsculas, mesmo em início de frases e nomes próprios, a princípio mais me deu preguiça que interesse, tipo, ai, olha lá o cara querendo impressionar. Mas a construção da narrativa vence qualquer preconceito como esse. Ou, pelo menos, no meu caso venceu.
A história se passa num passado medieval, centrada numa família cuja trajetória se confunde com a de uma vaca de estimação, e lança os olhos sobre questões como imobilidade social e violência contra a mulher, ou algo como a bestialidade humana. Não descrevi com detalhes no meu texto do Sabático de hoje porque isso entrou na resenha do Toninho, que dá para ler na versão impressa.
Tá aí a entrevista, feita por e-mail, como prefere o autor. Num próximo post, coloco um trecho do livro para quem não leu o livro ter noção.
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Aguardado na Flip de 2011, o angolano Valter Hugo Mãe fala sobre o premiado romance O Remorso de Baltazar Serapião, lançado no Brasil e comparado a um ”tsunami” literário
Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo
E os sismógrafos não registraram nada?, quis saber José Saramago (1922-2010) quando, em outubro de 2007, descobriu que O Remorso de Baltazar Serapião, romance então agraciado com o prêmio que leva seu nome, estava à venda desde março do ano anterior. Só semanas antes da premiação o escritor havia lido a obra do angolano Valter Hugo Mãe e sentido o impacto daquele “tsunami linguístico, semântico e sintático”.
Hoje devidamente reconhecido em Portugal, Valter Hugo Mãe já esteve cinco vezes no Brasil sem que os sismógrafos literários dessem sinal de abalo. A visita mais recente, em 2008, foi como convidado de uma feira literária em Brasília, mas sem nenhum livro lançado por aqui; das outras vezes veio em nome da extinta Quasi Edições, que publicou no além-mar Ferreira Gullar e Caetano Veloso, entre outros. O próximo desembarque será diferente. Confirmado para a 9.ª Flip, o autor chegará ao público já com seus dois mais elogiados romances lançados por aqui. O Remorso de Baltazar Serapião está previsto para os próximos dias pela Editora 34, e A Máquina de Fazer Espanhóis, que arrebatou a crítica portuguesa no ano passado, foi comprado pela Cosac Naify, que pretende publicá-lo a tempo da festa literária, em julho.
Dono de uma narrativa desconcertante – a começar pela grafia, toda em letras minúsculas, o que vale inclusive para o modo como assina o próprio nome -, o autor de 39 anos se diz entusiasmado por voltar à terra onde fica “como menino sonhando com água de coco e queijo coalho”. Veja, a seguir, a íntegra da entrevista que concedeu por e-mail ao Sabático.
No livro, você coloca a pureza do amor de serapião em contraponto às violências que ele comete contra essa mulher que ama – e que, no fim das contas, não faz mais que cumprir seu papel na sociedade. Nesse sentido, embora transcorra num passado medieval, a história não poderia se passar nos dias atuais?
Sim. Todo o livro é uma ostentação de estigmas sociais que sobrevivem até hoje. Lutamos ainda muito para que a dignificação deixe de ser um problema de género, mas a cultura continua a tender para exigir do homem uma predominância que atira as mulheres para um poder quase sempre apenas sensual e muito objectificado.
O baltazar serapião julga fazer tudo pelo bem, instigado por uma mentalidade que parece reclamar dele uma intervenção sempre impiedosa. Quando fui advogado defendi quase só mulheres em processo de divórcio cujas vidas poderiam ultrapassar no horror a vida da bela ermesinda do meu livro. Não poderei nunca esquecer essas conversas e o desespero dessas mulheres com idade para serem minhas mães e absolutamente perdidas num preconceito social que não as protege e permite ao homem toda a devassidão e agressividade.
Por que optou por ambientá-la nesse passado medieval?
Quis fazer um jogo com a linguagem, mas também para que a questão da subjugação das mulheres fosse conotada indubitavelmente como algo medieval. Depois de fazer com que as pessoas concordem com o ser algo medieval, típico de um tempo de trevas mental, será mais fácil reclamar alguma responsabilidade ponderando que não pode mesmo continuar a ocorrer nos dias de hoje. É um ataque às hipocrisias, claro.
Embora seja uma narrativa completamente diferente, a desconfiança atormentada de uma mulher cuja traição nunca é revelada é tema central de uma das maiores obras da literatura brasileira, Dom Casmurro, que, ainda hoje, mais de um século depois de escrita, levanta discussões entre os leitores. Consegue imaginar efeito similar numa história de traição do homem?
Claro que não. A sociedade quase espera do homem essa traição, de uma mulher nunca. A mulher traidora é corrompida pelo mal, o homem traidor pode ser um herói, o galã sedutor que não faz mais do que exercer com esplendor a solicitação do seu código hormonal.
Interessa muito em termos simbólicos que a desconfiança acerca da traição da mulher nunca seja comprovada ou justificada, porque creio que o tempo ainda não se redimiu da história das mulheres. Eu creio que a história ainda não conseguiu desculpar-se e, nesse sentido, aquilo por que as mulheres passaram e passam continua a ser assente no disparate e no abuso revoltante do poder por partes dos homens.
A história ainda não cumpriu as mulheres. São, de algum modo, um ser humano para o futuro, porque o passado e o presente substancialmente não lhes pertenceram e não pertencem.
Como foi o trabalho de recriar, ou inventar, essa linguagem que remete a esse tempo arcaico? Foi necessário algum tipo de pesquisa ou apenas um exercício de imaginação?
Sou fascinado com deixar que a imaginação decida quase tudo, mesmo correndo riscos. Gosto de trabalhar a partir da minha quietude e da possibilidade de efabular. Não pesquisei, apenas estive atento para que não usasse algo descabido. Com a linguagem, no entanto, tudo pode caber se houver coerência e um sentido estético. Claro que esse sentido estético não pode abdicar do conteúdo. Importa ter algo que dizer, porque é fundamental que um romance, mesmo sendo pura ficção, contenha uma tese, um pensamento que provoque no leitor a necessidade de decidir algo, de concordar ou discordar com um tema maior.
A relação entre o sagrado e o profano também é central no livro. São características indissociáveis do homem?
Estou sem convicções na transcendência, mas a questão espiritual sempre me acompanha. Somos votados a uma sacralização de nós mesmos, ainda que sem deus. É importante que vejamos o homem, o planeta, a vida, como algo de uma dimensão interior, urgente de respeitar e apaziguar. Os meus livros sempre têm essa ansiedade perante o respeito e a dignificação das coisas relevantes, daquilo que pode produzir felicidade. Como não acredito na felicidade depois da morte, gosto de pensar na criação de uma espiritualidade diferente, que seja feita de acreditarmos em nós, e uns nos outros, ao invés de acreditarmos num deus inventado.
Há essa característica curiosa no livro, da família se desintegrando e suas existências se desconstruindo à medida em que a narrativa se constrói. Como pensou nesse formato, pode comentar?
Este livro pensa no ser humano como se destruindo por defeito. É como pensar numa apoteose que se assemelha mais a uma implosão. O final do livro é de facto uma implosão, como se convergissem as personagens e tivessem sua solução sumária. Parecem tombar num mesmo poço, fechando a história. Pensei que seria um modo de fazer a narrativa exuberar na linguagem e nos quadros descritos enquanto ao nível dos significados tudo se enegrecia e criava entropia. Há uma voracidade que sentencia as personagens mas que serve para a plasticidade do romance, tornando o assunto do livro ainda mais contundente e desarmante. Algo mais cruel.
Você diz em entrevistas que o uso de minúsculas cria uma aceleração na leitura que interessa a você. Por que acha essa aceleração interessante? A leitura mais lenta não pode, por vezes, permitir ao leitor a percepção de mais significados no texto?
Sim, concordo que a lentidão pode fornecer esse tempo de reflexão, mas acho que tenho urticária a coisas chatas, textos, filmes, conversas que não progridem logo e se tornam ritmadas, despachadas. Talvez nos meus livros revele um pouco essa impaciência. Sou até um indivíduo contemplativo, mas em pouco tempo de contemplação posso já ter ficado impressionado, comovido, chorei litros de lágrimas e bastou para que mude minha vida. Não fico nunca parado muito tempo. Os meus livros têm todos um sentido de urgência, quer porque sempre ando ocupado com assuntos que me agridem e sobre os quais quero pensar melhor, pensar mais perto, quer por essa vontade de envolver logo o leitor e o fazer correr dentro da história sem travão.
José Saramago era um grande entusiasta deste romance. Ele foi um autor que influenciou sua escrita? Se sim, de que maneira?
Sim, Saramago foi alguém que admirei e admiro muito, sobretudo pela sua vocação interventora. Ele quis ter opinião, quis exercer opinião, ser cidadão. Muita gente hoje demite-se da cidadania, não vota, não reclama, não propõe nada, não quer saber. Cresci respeitando muito o Saramago porque acima de tudo ele sonhou com um país melhor para mim, sonhou com um mundo melhor para todos nós e participou com esse sentimento genuíno de bem do colectivo dos homens. Identifico-me muito com isso.
Quando o Saramago elogiou o meu livro e se tornou de algum modo um admirador meu, recebi daí uma recompensa preciosa por ter querido tornar-me escritor.
Quando fundou a Quasi Edições você ajudou a levar ao público português autores brasileiros contemporâneos, como Caetano Veloso e Ferreira Gullar. Quais são os escritores brasileiros que chamam a sua atenção atualmente?
Tenho estado a ler Rubem Fonseca, que é maravilhoso. Tem de haver uma onda Rubem Fonseca por todo o mundo porque adoro o modo, como vocês dizem, desenrolado e inteligente de ele dizer as coisas. Gosto muito do humor dele. Façam o favor de dizer no Brasil que estou apaixonado por ele.
E minhas paixões brasileiras não ficam por aí. Tem sido muito importante a edição em Portugal dos livros do Chico Buarque, que os portugueses amam por inteiro desde sempre. Eu fiquei contente com o sucesso de Leite Derramado. Fico contente de mais que ele assuma seu lugar de grande escritor, porque ele foi sempre um escritor genial que tinha de gastar mais tempo com os textos para eles virarem romances.
E Marcelino Freire, gosto muito, Nelson Rodrigues, gosto muito, Marcelo Mirizola diverte-me muito (maravilhosa cabeça suja), Evandro Affonso Ferreira, muito exuberante, gosto muito, Bernardo Carvalho e Rubens Figueiredo, gosto muito.
O trabalho de instituições portuguesas como o Instituto Camões tem feito gerações de autores lusos se tornarem conhecidos no Brasil. O governo brasileiro não tem uma ação nesse sentido no que diz respeito aos autores brasileiros. O público português costuma ter interesse pelas novas gerações de brasileiros?
O público português teria interesse caso pudesse conhecer. O Brasil precisa encontrar urgente o seu instituto análogo, um Instituto Guimarães Rosa? Drummond? Há muito génio a quem pedir o nome. A cultura brasileira teria muito a ganhar. Cultura é identidade e identidade é sempre fundamental para a auto-estima de um país. Alguns dos nomes que mencionei acima não têm edição portuguesa. Leio-os porque sou visceralmente afectado pelos livros. Tenho pena que o público mais convencional não possa ser confrontado com eles.
Você já definiu seu livro A Máquina de Fazer Espanhóis, previsto para sair por aqui no meio do ano, como um “exercício de justificação para a vida depois de uma perda desta dimensão”. Como foi escrever sobre sensações da terceira idade estando tão longe dela?
Perdi o meu e fui pela imginação adentro buscando o que sobrava dele dentro da minha vida. Foi assim. Procurei bem na minha imaginação como seria um homem de 84 anos e encontrei muitas possibilidades. Os leitores disseram que entendi. Chorei em muitas sessões com o público porque é milagroso que pessoas com 80 e mesmo 90 anos me digam que sou um deles, que estou entre eles como igual. Consegui, de alguma forma, conviver com a terceira idade de um homem que poderia ter sido o meu pai. Só não foi porque ele morreu antes de deixar de ser novo.
Você escreve prosa e poesia, tem um grupo musical, dedica-se também às artes plásticas. Por que esses interesses tão amplos? São formas de expressar que a literatura não compreende?
São formas de cobiçar a vida. Cobiço a vida, quero sempre intensificar a minha existência, fazer do meu tempo algo importante para mim, aprender e levar-me além do que seria de esperar. Adoro artes, adoro a música, a pintura, o cinema. Não consigo ficar passivo. É claro que sou um cantor sofrível e um artista plástico ainda pior, mas é importante que o experimente e use as expressões para preencher meus fascínios. Sei que sou um escritor e é como escritor que espero ser responsabilizado, mas não quero ter de pedir licença para cantar um fado ou desenhar um pequeno monstro amoroso. O que nos é natural não pode ser absolutamente reprimido sob pena de habitarmos uma versão falsa de quem verdadeiramente somos.
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