Papai, o que você fez pelas bibliotecas?

O consultor de internet inglês Philip Bradley tem usado o tempo livre para adaptar antigos pôsteres de modo que se encaixem na campanha Save Libraries. Partiu do clássico “Seu país precisa de você”, que virou “Sua biblioteca precisa de você”, e daí foi evoluindo a ideia em outros cartazes cujas imagens estivessem em domínio público, com destaque para vários da Primeira e da Segunda Guerra.

A pesquisa trouxe à tona curiosidades: os pôsteres da Primeira Guerra, por exemplo, costumavam destacar a responsabilidade individual e o sentimento de vergonha das pessoas, caso de um em que a menininha, no colo do pai, perguntava: “Papai, o que você fez na Grande Guerra?”.  Os da Segunda Guerra, por sua vez, estimulavam a força coletiva. Ele explica em detalhes aqui, em inglês.

Seguem abaixo algumas das imagens que achei mais bacanas. Destaque para o “Eu, viajar?”, o quarto pôster, uma orientação para que as pessoas passassem as férias em casa em vez de gastar gasolina dirigindo por aí, e para o “Esqueça a culinária”, em que, na verdade, em vez de uma pilha de livros, a mulher carregava potes de comida, numa campanha pela economia de alimentos.

Ah, se tivessem usado todo esse empenho em nome da leitura…

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Aqui tem mais algumas imagens.

A coluna da semana

[Publicado no Sabático de 29/1]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

BIOGRAFIA
Henri Matisse por trás da pintura

Matisse: The Life, de Hilary Spurling, a mais importante biografia sobre o francês (1869- 1954), chega às livrarias no segundo semestre pela Cosac Naify, que já lançou dois livros relacionados ao pintor, Matisse: Escritos e Reflexões sobre Arte (2007, textos dele) e Matisse: Imaginação, Erotismo e Visão Decorativa (2009, textos sobre ele). Publicada originalmente em dois volumes, em 1998 e 2005, reunidos em 2009 na edição que sai agora no País, a obra resultou de 15 anos de pesquisas e rendeu à autora o Prêmio Whitbread. Nela, Hilary sustenta que, apesar de ter largado a mulher (pintura 1, abaixo.), aos 70, pela jovem modelo Lydia Delectorskaya (pintura 2), Matisse teve com esta só uma relação platônica, e que por trás de sua arte tranquila vivia um homem profundamente angustiado.

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ROMANCE
Estreia celebrada

Ex-cameraman, operador de telemarketing, segurança, investigador e professor de inglês, o australiano Steve Toltz, de 38 anos, chegou à final do Man Booker Prize 2008 logo com o primeiro livro, A Fraction of the Whole. Perdeu para outra estreia, O Tigre Branco, de Aravind Adiga, mas arrebatou a crítica, do sério Observer ao popular site Ain”t It Cool, que resumiu: “É um exemplo colossal de como a ficção pode ser boa”.

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E bote colossal nisso: Uma Fração do Todo, previsto para o final de abril pela Record, trata da relação entre um rapaz temperamental, Jasper Dean, e seu pai, Martin, em várias camadas narrativas ao longo de cerca de 600 páginas.

MEMÓRIAS
A formação de Milosz

A autobiografia que o Nobel de Literatura Czeslaw Milosz (1911-2004) publicou em 1959, oito anos após o início de seu exílio em Paris, sai em agosto pela Novo Século. Em Reino Nativo, o polonês desfia seus aprendizados morais e intelectuais da infância aos 40 anos, oferecendo ao Ocidente um retrato à época inimaginável da vida num Leste Europeu massacrado pelos conflitos da primeira metade do século 20.

CLÁSSICO
De volta ao Tempo Perdido

Um alento para quem começou a colecionar as reedições de Em Busca do Tempo Perdido pela Globo Livros, em 2006. Após lançar quatro volumes nos primeiros dois anos, e nenhum no terceiro e no quarto, a editora promete seguir com as publicações. O quinto título, A Prisioneira, está previsto para março, e o sexto, A Fugitiva, também deve sair ainda neste ano.

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Nesse ritmo, pode ser que a editora tenha os sete reeditados antes de a Companhia das Letras iniciar os lançamentos de sua tradução, por Mario Sérgio Conti, em 2012.

FUTURO DO LIVRO – 1
Enfim, um outro olhar

Depois de tanto ouvirem ladainhas de editores e jornalistas sobre o futuro do livro, os americanos Jeff Martin e C. Max Magee resolveram consultar quem escreverá os livros do futuro. O resultado, The Late American Novel, sai em março nos EUA, com ensaios de nomes que despontaram em tempos de e-readers, a exemplo de Reif Larson (O Mundo Explicado por T.S. Spivet, da Nova Fronteira, que neste ano terá versão interativa em iPad nos EUA) e Benjamin Kunkel (Indecisão, da Rocco).

FUTURO DO LIVRO – 2
Work in progress

Você compraria um livro com a promessa de receber o final só daqui a algumas semanas? Há um assim à venda desde quarta na Amazon e na Barnes&Noble. Maravilhas do e-book: oferecido só para Kindle, Final Jeopardy, de Stephen Baker, narra o esforço da IBM para desenvolver uma máquina capaz de vencer o melhor jogador de Jeopardy, espécie de Show do Milhão dos EUA. Acontece que a batalha final homem vs. máquina, já gravada e mantida a sete chaves, vai ao ar só mês que vem.

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Assim que o programa de TV for exibido, a editora liberará o desfecho do livro digital, com a análise da partida. A versão impressa será vendida, na íntegra, a partir de então.

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Teste do Jeopardy, com os dois concorrentes, e, no meio, todo pimpão, o computador Watson, representado por um globo brilhante. No teste, Watson levou a parada (Foto de Seth Wenig/AP)

Novos clássicos em quadrinhos

Há tempos estava querendo escrever sobre o mercado em expansão dos quadrinhos, mas não tinha ideia de como levantar essa lebre, já que a expansão em si vem ocorrendo já faz alguns anos. Daí ouvi falar na intenção da Companhia das Letras de começar a lançar adaptações literárias pelo selo Quadrinhos na Cia e, juntando isso com o tanto de clássicos em quadrinhos que chegaram na redação em 2010, achei que tinha pano pra manga.

Falei com tanta gente que muita coisa teve de ficar de fora, inclusive a boa contextualização feita pelo Guazzelli, que além de quadrinista é mestre em comunicação e estudioso da história de HQs. Entre outras coisas, o fato de os quadrinhos terem até influenciado o cinema em sua origem; a força da Editora Brasil-América Ltda (Ebal) no segmento de adaptações em décadas passadas; e a diferença das atuais adaptações em relações àquelas (porque as da Ebal eram quadradas, “amarradas”, nas palavras dele, na comparação com as características mais ousadas das atuais).

Taí o texto, publicado no Sabático de hoje.

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Imagem de Os Sertões, de Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa

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Com o crescimento da adoção por escolas públicas e particulares, editoras investem em adaptações para HQ de clássicos da literatura

Raquel Cozer – O Estado de S. Paulo

Clara dos Anjos, a personagem-título do último romance escrito pelo carioca Lima Barreto (1881-1922), demorou décadas para tomar forma. Nasceu numa versão rascunhada em 1904 e ficou de lado até 1921, quando o autor decidiu retomar a história, concluída no ano seguinte e publicada mais de duas décadas depois, em 1948. Em julho próximo, uma quarta etapa desta lenta evolução chegará às livrarias pela Companhia das Letras. Trata-se da versão em quadrinhos roteirizada por Wander Antunes e ilustrada por Marcelo Lélis, e que sinaliza uma forte entrada da editora numa disputa cada vez mais acirrada: a de adaptações de clássicos da literatura, especialmente a brasileira, com o objetivo de adoção por escolas das redes pública e privada.

Com duas adaptações traduzidas previstas para este semestre – A Divina Comédia, de Dante, por Seymour Chwast, e Na Colônia Penal, de Franz Kafka, por Sylvain Ricard-Mael -, o selo Quadrinhos na Cia está em negociações com artistas e escritores para outras versões de obras nacionais, segundo o editor André Conti: “Há mais projetos em andamento. Um selo tem que ser saudável, e uma das maneiras de um selo ser saudável é ter livros para adoção em escolas.”

Por saúde, entenda-se retorno financeiro. Embora o selo de HQ da editora paulistana tenha emplacado grandes lançamentos desde 2009, quando foi criado, a venda para o governo é garantia de tiragens até dez vezes maior que as usuais, estas em torno de 2 mil ou 3 mil exemplares. Além disso, obras baseadas em clássicos da literatura têm mais chance de serem escolhidas para uso em escolas particulares – o que garante as vendas de tiragens inteiras, mesmo que não tão grandes quanto as adquiridas pelo governo.

Não que quadrinhos com roteiro original também não venham sendo beneficiados pelo Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), que selecionou 38 títulos em HQ ou imagem dentre os 300 a serem distribuídos para uso em aula neste ano. Os eleitos incluem adaptações como O Guarani e O Cortiço (Ática), mas também as sagas de heróis Necronauta (HQM), de Danilo Beyruth, e Demolidor, o Homem sem Medo (Panini), de Frank Miller e Romita Jr.

Mas, num momento em que o gênero apenas começa a superar o que o quadrinista Eloar Guazzelli define como preconceito histórico, as HQs derivadas de clássicos assustam menos por envolverem literatura. “Elas formam um caldo de cultura em que as crianças crescem e ampliam horizontes”, avalia o autor, que já adaptou O Pagador de Promessas (Agir), de Dias Gomes, A Escrava Isaura (Ática), de Bernardo Guimarães, e Demônios (Peirópolis), de Aluísio Azevedo.

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O Pagador de Promessas, de Guazzelli

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Embora o PNBE tenha sido instituído em 1997, HQs só passaram a ser adquiridas para uso em sala de aula em 2006. A possibilidade de venda para os governos federal e estadual levou editoras a prestar atenção nesse nicho.

Foi no ano passado que se tornou notável o número de adaptações em quadrinhos. A Companhia Editora Nacional, que entrou nesse mercado em 2005, publicou em 2010 sete de seus 15 títulos do gênero. A DCL, após o sucesso de Domínio Público (2008), com versões de vários autores, comprou no ano passado uma coleção com sete clássicos e criou o selo Farol HQ, disponibilizando, entre outros, Robinson Crusoé e Moby Dick – só este último teve 25 mil cópias distribuídas para escolas públicas e 9 mil para livrarias e colégios particulares. Para 2011, a editora prevê 12 publicações do gênero, incluindo suas primeiras adaptadas por artistas brasileiros.

“A aceitação de HQs na escola é fenômeno novo. Três anos atrás, ouvia-se que era melhor investir em prosa. Hoje é possível lidar com essa linguagem diferente. Quando o governo validou os quadrinhos, as escolas particulares passaram a rever seus conceitos”, diz Daniela Padilha, editora da DCL. “Muitas vezes, os professores é que perguntam se não vamos lançar tal título, e então avaliamos.”

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O Alienista, de Fábio Moon e Gabriel Bá

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Responsável pela publicação de um dos maiores sucessos dessa tendência – O Alienista, com ilustrações e roteiro de Fábio Moon e Gabriel Bá, vencedor do Prêmio Jabuti de livro didático ou paradidático em 2008 e hoje com quase 100 mil exemplares vendidos -, o Grupo Ediouro amadureceu o método de produção. “Começamos com o trabalho de adaptação e preparação de texto dentro de casa. Analisamos com muito cuidado o texto, para que não perca o ritmo nem o estilo, e até a pertinência do tema em aula”, diz a diretora editorial Leila Name.

Para este ano, o grupo prepara seis títulos, a começar por Pedro Mico, de Antonio Callado, para maio. Outros três, de autores contemporâneos e com os quais o público mais jovem já se identifica, também prometem virar sucesso: Morangos Mofados e Onde Andará Dulce Veiga, de Caio Fernando Abreu, e Mandrake, de Rubem Fonseca. “O formato renova o público leitor. Tem garotada lendo Machado de Assis com mais entusiasmo. Uma leitura difícil como Os Sertões torna-se mais palatável”, diz Leila, referindo-se à adaptação de Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa que chegou às livrarias no fim de 2010.

É justamente o discurso de porta de entrada para a literatura o que mais alimenta críticas contra as adaptações. “Não acredito que alguém vá ler Dom Casmurro só porque leu Machado em quadrinhos antes. O sujeito vai se sentir desobrigado a ler”, diz Thales Guaracy, diretor editorial de ficção e não ficção da Saraiva, responsável pelos selos Benvirá, Caramelo e Arx, que, no ano passado, publicou Frankenstein e Histórias de Poe. “Não foi um grande negócio. Não vamos fazer mais”, diz.

Para o professor de literatura brasileira da USP Alcides Villaça, a questão é mais simples. “Literatura e quadrinhos são formas narrativas diferentes, linguagens que têm valor em si mesmas.” Villaça é a favor do uso de HQs em aulas, mas não como substituições às obras, e sim dialogando com elas. “Não gosto da ideia de “porta de entrada”. O professor deveria definir o âmbito das linguagens, respeitando ambas.” A argumentação é simples: na literatura, a articulação verbal é fundamental, enquanto na HQ ela não é central. Usar uma no lugar da outra seria, então, como exibir em sala de aula um filme baseado numa obra e acreditar que os alunos estão dispensados de ler o livro.

James Ellroy na Flip

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O escritor norte-americano James Ellroy aceitou convite para participar da nona edição da Flip, que acontece em julho. Ele deve vir lançar o livro Sangue Errante (Record), que  fecha a trilogia do submundo americano, formada pelo Tablóide Americano e 6 Mil em Espécie. Os dois primeiros títulos da série ganharão versão em bolso a tempo da Festa Literária Internacional de Paraty.

A Record também adquiriu os direitos da autobiografia The Hilliker Curse: My Pursuit of Women, que deve ser lançada no ano que vem. O autor de policiais é mais conhecido pelos romances que originaram os filmes Dália Negra e Los Angeles – Cidade Proibida.

A organização da Flip reconhece que recebeu email com resposta afirmativa da agente do autor, mas ainda não confirma sua vinda.

Humor à moda antiga

Porque o conceito de graça varia conforme o ponto de vista.

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Do Chainsawsuit. Vi no Geekosystem.

Cidade fictícia, mas real

[publicado no Caderno 2 de 25/1]

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Em Entre Assassinatos, Aravind Adiga mostra dramas da sociedade na Índia

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

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Kittur é uma cidade localizada entre Goa e Calcutá, ali na beirada do mar Arábico, e que, pelas paisagens e riquezas históricas, merece no mínimo uma semana de atenção do turista interessado em conhecer o sudoeste da Índia. A partir dessas informações, é importante para o leitor saber também que Kittur é uma localidade fictícia, cenário inventado pelo escritor Aravind Adiga para interligar os contos de seu mais recente livro, Entre Assassinatos. Mas uma cidade que, por sua diversidade de religiões, raças e línguas, poderia ser qualquer outra no país.

É assim, como destino turístico, que a cidade-personagem é apresentada no volume pelo premiado escritor de 36 anos, destaque da atual literatura indiana. Após recomendar a estadia de uma semana no local, Adiga passa a descrever como podem ser aproveitados esses sete dias, em trechos no estilo de um guia turístico que aparecem intercalados com os contos propriamente ditos. Entre uma e outra história, ficamos sabendo, por exemplo, que o local tem 193.432 habitantes segundo o mais recente censo, dos quais apenas 89 declaram não ter religião ou casta.

“A sobreposição do guia turístico em relação aos contos é em parte funcional, já que nos ajuda a ver essa cidade, e em parte irônica, porque as histórias contadas são sempre mais sombrias do que o tom claro dos parágrafos introdutórios poderia sugerir. Foi uma tentativa de explorar a diferença entre as versões oficiais da história do que realmente acontece em uma cidade”, afirma, em entrevista ao Estado por e-mail, o autor que, em 2008, venceu o prestigioso Man Booker Prize por seu romance de estreia, O Tigre Branco.

Embora tenham sido publicados bem depois do livro que tornou Adiga conhecido, os contos de Entre Assassinatos surgiram de forma simultânea à história do romance. “Muitos dos temas de O Tigre Branco estão presentes nos contos, de formas diferentes. Por exemplo, no conto em que o chofer de uma madame que, para mudar de vida, está tentado a cometer um crime”, diz.

A diferença maior está nos períodos em que transcorrem as histórias. Os assassinatos a que se refere o título da coletânea de contos são os dos líderes indianos Indira Gandhi, em 31 de outubro de 1984, e seu filho Rajiv Gandhi, em 21 de maio de 1991. É uma fase anterior à da abertura da economia da Índia, que aconteceu no ano do segundo crime, de modo que refletem os desafios da população na era socialista. A narrativa de O Tigre Branco se passa nos dias atuais, de capitalismo consolidado.

“A Índia hoje é muito diferente da velha Índia socialista da era pré-1991. No entanto, se as histórias são boas, o leitor deve sentir como se fossem atuais. Os leitores na Índia responderam bem aos contos, então devem sentir que são histórias ainda relevantes para o que eles vivem hoje.”

Castas e religiões. Os personagens apresentados em Entre Assassinatos têm em comum, na maioria dos casos, uma vontade intrínseca de mudar de vida, que esbarra em tanto em barreiras sociais quanto psicológicas – sempre descritas com a característica ironia do autor.

Um exemplo é a história do menino Ziauddin, no conto que abre o livro. Muçulmano, o garoto batalha para se firmar profissionalmente num bairro de maioria hindu, mas não resiste a pequenos deslizes que comprometem seu discurso de que “muçulmanos não fazem safadeza”. E, no entanto, é justamente um momento de reflexão que o coloca num dilema quando, enfim, alguém o trata com o respeito que ele tanto acredita merecer.

Conceitos estabelecidos localmente sobre as diferentes castas e religiões, aliás, movem a maior parte dos contos. Em outra história, uma velha cozinheira virgem de origem brâmane, a casta mais alta da sociedade, tenta mostrar para o patrão que tem mais valor que a jovem empregada de origem hoyka, casta desfavorecida à qual pertence a grande maioria da população: “Não sou eu quem está fazendo barulho, patrão: é aquela menina hoyka. Ela não conhece os nossos modos brâmanes!”, argumenta, a certa altura.

Apesar da forte crítica social que desfia ao longo das narrativas, Adiga destaca o caráter democrático da Índia, onde a população pode expressar por meio do voto a raiva e o sentimento de injustiça alimentados pelo cotidiano. “Para mim, o evento-chave que mostra essa força da democracia foi a derrota do governo em Délhi, nas eleições gerais de 2004. Num momento em que a economia estava crescendo, o governo perdeu de forma inesperada. Foi um sinal claro de que a maioria dos indianos não estava se beneficiando do tão falado boom econômico. Isso forçou os políticos a prestar atenção aos pobres.”

Mas ele admite que não só o governo tende a esquecer a pobreza. Até o início da vida adulta, conta, conheceu apenas personagens como aqueles de classe média retratados no livro. “Só fui conhecer a realidade dos pobres depois que me tornei jornalista. Até então, eles eram pessoas invisíveis: meus serviçais e cozinheiros.”

Estante pra sentar e ler

E essa estante, hein?

Que na verdade é uma mesa com cadeira…

…ou melhor, com duas cadeiras!

Vi no SwissMiss, com design da Campeggisrl.

Um ano de blog

Dois dias depois vi que tinha perdido a data: no último dia 10, A Biblioteca de Raquel completou um ano. Com direito a reorganização de estantes em setembro passado, quando, após oito meses como blog soltinho no mundo, passou a integrar a página de blogs dos repórteres e colunistas do Estadão.

Ainda teve a vantagem de, na mudança, aparecer em primeirão na lista em ordem alfabética de blogs do site, graças ao imprescindível artigo A seguido de palavra iniciada com B no título que roubei do Borges. Quem percebeu a nova posição privilegiada foi o Luiz Zanin, que até sugeriu mudar o nome do blog de cinema dele para A Arte de Zanin (espero que ninguém mais tenha ideia parecida e que nenhum Aaron venha se meter a sugerir blog pro portal).

Preciso admitir que ter obrigação de atualizar um blog dá mais trabalho do que eu pensava. Tive lá meus blogs de assuntos aleatórios em tempos passados. Daí você sabe como é, o umbigo era meu pastor, nenhum assunto me faltava. Mas escrever sobre tema específico demanda bem mais tempo e pesquisa. Principalmente porque nunca quis fazer uma página de notícias no estilo tradicional, com destaques para assuntos do dia. Pelo contrário, acho que de sites do gênero estamos mais do que bem abastecidos.

Tirando textos sobre livros recém-lançados que publico no Sabático ou no Caderno 2 e reproduzo aqui, a ideia é sempre escrever sobre temas que não aparecem em outros blogs literários nacionais, seja por meio das notas exclusivas que saem na coluna Babel, seja por reportagens que faço sobre o mercado editorial, seja pelos links que vasculho por aí.

Se fosse resumir A Biblioteca de Raquel em uma palavra, diria que é uma revista. Mas preciso de mais algumas palavras, vai: é uma revista virtual sobre curiosidades relacionadas ao mundo dos livros. Coisas como o zodíaco literário, a moda de bares-biblioteca e o moleque frustradíssimo por ganhar livros no Natal, para ficar em três exemplos recentes, vão sempre merecer mais destaque por aqui do aquilo que todos os sites de notícias, inclusive a página Cultura do Estadão, já informam muito bem.

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Ok. Terminado o blablablá, se você conseguiu chegar até aqui, aproveite para votar n’A Biblioteca de Raquel, que, nesta primeira infância virtual, concorre ao Troféu Mulher Imprensa.

Ou Troféu Davi Mulher Imprensa, como sugeriu o Daniel Seda no Twitter, considerando meu tamanhinho perto do de outras concorrentes. Mas, enfim, não custa batalhar pela força da cauda longa. =P

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Gosto do nome deste blog, deliberadamente roubado do Borges, mas ele me causa um problema: não consigo abreviar. ABDR, a sigla, já tem dono no meio editorial

A coluna da semana

[Publicado no Sabático de 22/1]

BABEL

Raquel Cozer, raquel.cozer@grupoestado.com.br – O Estado de S.Paulo

OBRA COMPLETA
Toda a prosa e a poesia de Glauco Mattoso, aos 60

Prestes a completar 60 anos, em 29 de junho, Glauco Mattoso terá sua obra resgatada por duas editoras. O recém-criado selo Tordesilhas acaba de contratar toda a sua prosa – a nova versão da coletânea Contos Hediondos, incluindo inéditos, e os romances A Planta da Donzela e Manual do Podólatra Amador – e está em conversas avançadas para adquirir também toda a poesia, com mais de 3 mil sonetos (Glauco é conhecido como o poeta que mais escreveu sonetos na história). A produção poética inclui 35 títulos (de antes e depois da cegueira causada pelo glaucoma, em 1995) fora de catálogo ou com contrato por expirar, além de poemas só publicados na internet. A ambição de reunir toda a obra literária de Mattoso numa única casa esbarra em projeto do selo Demônio Negro, que coloca no mercado em junho a caixa Biblioteca Mattosiana. O lançamento incluirá os sete títulos da série homônima, três inéditos (O Poeta da Crueldade, O Poeta Pornosiano e Poemídia e Sonetrilha) e um bônus, a coletânea A Maldição do Mago Marginal.

GASTRONOMIA
Receitas do vovô
Um livro de 1928, A Arte Culinária da Bahia, terá nova edição em junho pela WMF Martins Fontes. Lançado após a morte do autor, o abolicionista Manuel Querino (1851-1923), o volume é um inventário com base histórica de pratos e bebidas africanos e afro-baianos. Entre as curiosidades, o fato de que o acarajé era usado na África como “isca” para crianças a serem vendidas como escravas.

INTERNET
Os esquecidos
Numa boa sacada de marketing, a americana Melville House resolveu pôr o leitor para trabalhar com o lançamento da Neversink Library. Pelo site http://www.neversinklibrary.com, a editora convoca internautas a indicarem clássicos esquecidos ou ignorados. Os títulos sugeridos passam a integrar o catálogo, em edições “bonitas a preços razoáveis”.

CONCRETISMO
As Galáxias de Haroldo


Arnaldo Antunes aceitou convite para ler o poema Galáxias na abertura da Ocupação Haroldo de Campos – HLAXIAS, no Itaú Cultural, em 16/2. Com documentos como dedicatória de Octavio Paz ao poeta, a mostra será envolvida por instalação de Livio Tragtenberg e terá textos feitos especialmente, a exemplo de Caetano Veloso, que descreve Haroldo (1929-2003) como “barroco entre os líderes de uma revolução minimalista”.

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Não foi proposital a abertura quase coincidir com o aniversário de 80 anos de Augusto de Campos, irmão do homenageado, no dia 14. Aliás, convidado, o caçula dos concretistas avisou que não poderia comparecer.

MUDANÇA
José Luiz Peixoto & Companhia

A Companhia das Letras garantiu os direitos do mais recente romance do elogiado autor português José Luiz Peixoto, que tem duas obras pela Record: Cemitério de Pianos (2006) e Uma Casa na Escuridão (2009). O romance Livro, lançado em setembro em Portugal, trata da emigração de portugueses para a França em décadas passadas.

BIOGRAFIA – 1
A vida antes da paternidade

Recém-alçado ao status de pai, Elton John terá sua vida prévia à paternidade lembrada por aqui em Elton: A Biografia, que a Editora Companhia Nacional lança no início do segundo semestre. “O ponto forte da obra – recuperar os menores detalhes da vida e da música de Elton – pode causar tédio em um fã menos que ávido”, escreveu a Publishers Weekly sobre o livro de David Buckley.

BIOGRAFIA – 2
Angelina Jolie não autorizada

Andrew Morton, o homem que Diana escolheu quando resolveu contar sua versão da história com o príncipe Charles, publicará pela Novo Século o recente Angelina – Uma Biografia Não Autorizada. Previsto para julho, o título consegue a proeza de contar detalhes que a própria atriz, nada dada a segredos, nunca revelou em entrevistas.

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O autor, por sinal, voltará a atormentar a família real em William & Catherine, previsto para sair semanas depois do casamento do filho de Diana, marcado para 29 de abril.

E a casa vai virar museu…

Eu tinha uns 19 anos a primeira vez que ouvi falar em Stefan Zweig. Embora já morasse havia dois anos no Rio, por causa da faculdade, voltava para Petrópolis todo final de semana, onde viviam meus pais e meus melhores amigos. Numa dessas comecei a namorar um ex-colega de colégio, que tinha entrado fazia pouco na faculdade de medicina e não era nada aficcionado por temas literários.

Algumas semanas depois de começarmos a sair, na primeira vez que fui à casa onde ele morava com os pais, ele mandou a pergunta, na lata: “Já ouviu falar no escritor Stefan Zweig?”. Naqueles tempos, sem Google nem celular com internet, não era fácil disfarçar a ignorância. Nem tinha entendido direito como era o nome, Stefan o quê? Falei que não sabia. E ele explicou resumidamente: era um escritor austríaco consagrado que veio para o Brasil nos tempos da Segunda Guerra e escolheu Petrópolis para viver nos meses finais de sua vida. E soltou: “Ele morava aqui nesta casa. Foi aqui que ele se matou.”

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Daí ele contou que a casa tinha sido tombada, algo que a família dele ficou sabendo anos antes por um canal de TV petropolitano. Era uma casa simples, mas charmosinha, com aquela varanda grande na frente, numa esquina que separava a região central da cidade de um bairro mais bacana, o Valparaíso. Anos depois, já formada, reencontrei o ex-namorado numa festa no Rio e ele contou que os pais dele não moravam mais lá, tinham vendido a casa. Ponto, fim da história.

No início deste ano, soube que, após anos com o nome Casa Stefan Zweig sem nenhuma mudança física nem atividades culturais, o lugar entrará em reformas para se transformar em museu. O poeta e designer André Vallias, um dos personagens de uma reportagem que fiz meses atrás sobre webpoesia, estava envolvido na organização de uma mostra multimídia sobre Zweig em Petrópolis e me escreveu pra avisar. Mandou imagens de como a casa era em 1941, quando o austríaco se mudou para lá (ele e a segunda mulher se mataram meses depois, após um pacto, em fevereiro de 1942, desesperançados com o mundo) e do projeto do museu, que, se tudo der certo, será aberto para o público em agosto.

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Um dos objetivos da mostra em Petrópolis é justamente anunciar o início dessas reformas. Uma exposição numa cidade média fluminense dificilmente renderia reportagem grande num jornal paulistano, mas, como tenho lá uma relação afetiva  com a cidade, resolvi ir atrás. Conversei com o jornalista Alberto Dines, diretor da casa e biógrafo de Zweig, e soube que além do museu ele também prepara mais dois livros sobre o autor. O resultado foi publicado no Sabático de ontem, 22/1, e segue abaixo.

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70 anos depois de escrever Brasil, Um País do Futuro e se instalar em Petrópolis, onde daria fim à vida, Stefan Zweig terá museu na cidade e livro sobre a sua rede de amizades

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Foi sem festa, com discrição, que entrou em cartaz em Petrópolis, no último dia 14, uma mostra multimídia sobre o escritor austríaco Stefan Zweig (1881- 1942). No dia anterior, a cidade havia amanhecido em luto pelas destruições da pior chuva em décadas a atingir a região serrana fluminense. A organização decidiu cancelar o evento de abertura, de modo que muitos daqueles que passaram desde então pelo Centro de Cultura Raul de Leoni, onde também fica a principal biblioteca da cidade, foram pegos de surpresa pela homenagem a um dos mais célebres moradores que Petrópolis já teve.

Não muito longe dali, há exatos 70 anos, Zweig encontrou o refúgio para os momentos finais de sua vida, ao lado da segunda mulher, Lotte. Uma “casa minúscula, mas com um amplo terraço coberto e uma bela vista”, como descreveu o já então consagrado autor em setembro de 1941. E que, neste ano, passará a abrigar um centro de memória dedicado não só a Zweig, mas a vários intelectuais que, como ele, encontraram abrigo no Brasil durante os horrores da 2.ª Guerra – estão incluídos aí nomes como Otto Maria Carpeaux, ensaísta austríaco; Paulo Rónai, tradutor nascido na Hungria; e George Bernanos, ficcionista francês.

Tombada desde os anos 80 e comprada do antigo morador em 2005, a Casa Stefan Zweig acaba de entrar em obras para a inauguração como museu, conforme projeto do arquiteto Miguel Pinto Guimarães. A meta é que a reforma esteja concluída em agosto, quando se completam sete décadas de um livro-chave do austríaco, Brasil, Um País do Futuro, escrito nos meses anteriores à mudança para Petrópolis. O intervalo entre a aquisição da casa e o início das obras é explicado por questões kafkianas, segundo o diretor da instituição e principal biógrafo de Zweig, Alberto Dines. “Para fazer qualquer reforma era necessário fazer pedidos por escrito, mostrar pesquisas históricas e geológicas, porque a casa estava tombada. O curioso é que durante anos o lugar sofreu alterações. Ou seja, desfigurar foi fácil, difícil foi provar a importância de reconfigurar”, diz o jornalista, cuja biografia de Zweig, Morte no Paraíso, lançada em 1981, foi fundamental para a renovação do interesse do público brasileiro pelo escritor, o que levou ao tombamento da construção.

O local, que incluirá biblioteca e auditório, privilegiará exposições audiovisuais. O jornalista deixará no museu seu próprio acervo sobre Zweig, que inclui livros e fotos – a maior parte do material que o austríaco doou à biblioteca municipal de Petrópolis antes de morrer se perdeu; outros documentos estão conservados na Fundação Biblioteca Nacional. Pesquisadores comandados pelo historiador carioca Fábio Koifman agora tratam de encontrar no Arquivo Nacional documentos sobre outros intelectuais a serem lembrados nessa espécie de “museu dos exilados” – por coincidência, a Casa Stefan Zweig fica na Rua Gonçalves Dias, batizada em homenagem ao poeta criador da Canção do Exílio.

Stefan Zweig Vive!, a exposição multimídia atualmente em cartaz na cidade, organizada por Dines e pelo poeta e designer André Vallias, é a primeira homenagem do que o jornalista chama de “ano Stefan Zweig”, juntando as efemérides do lançamento de Brasil, Um País do Futuro; os 130 anos do nascimento do escritor, em novembro; e os 70 anos de sua morte, em fevereiro de 2012. Além da mostra e do museu, Dines pretende lançar duas edições fac-similares de material deixado por Zweig.s, é um conceito amplo demais.

A primeira delas será um volume contendo a “rede social” do escritor, feito a partir de uma cópia da agenda telefônica que o austríaco trouxe consigo ao chegar ao Brasil e que inclui contatos de pessoas próximas a ele, como os alemães Thomas Mann e Albert Einstein, o regente húngaro Eugen Szenkar (primeiro diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira) e, entre os brasileiros, o jurista Afonso Arinos de Melo Franco e o empresário Roberto Simonsen (o responsável pela orientação de toda a parte econômica de Brasil, Um País do Futuro). “São cerca de 150 nomes, já pesquisamos a maioria. Alguns não conseguimos, são absolutamente desconhecidos”, afirma Dines, que agora organiza fichas biográficas de cada nome, a entrarem no livro junto com as reproduções da agenda.

A outra edição fac-similar terá como base o manuscrito de Zweig para uma conferência que proferiu em 1936 no Rio, em sua primeira visita ao Brasil, e que repetiria com poucas variações anos depois em Buenos Aires, sob o título A Unidade Espiritual do Mundo. “Foi num momento em que tinha acabado de começar a Guerra Civil Espanhola, em que o nazismo já botava os dentes para fora, e vinha o cara falar sobre unidade espiritual. Devia parecer ingenuidade naquela época, mas o curioso é que hoje esse virou um tema importante para a ONU, discutido nos fóruns Aliança das Civilizações”, avalia Dines.

É possível dizer que Zweig foi visionário nessa discussão, assim como, de certa forma, o foi em Brasil, Um País do Futuro, o tratado otimista que daria origem ao aposto mais famoso sobre a república brasileira e às maiores críticas já feitas ao escritor. Afinal, sete décadas depois, o País é apontado como um protagonista no cenário econômico mundial, uma alternativa à qual Zweig apontava lá atrás, embora os problemas internos ainda a superar – e as tragédias na região serrana do Rio são exemplo – façam crer que futuro, no fim das contas, é um conceito amplo demais.

Um pouco de baltazar serapião

Primeiro capítulo de o remorso de baltazar serapião, romance do angolano Valter Hugo Mãe, sobre o qual falo no post abaixo.

***

um

a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.

mal tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos, batíamos os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas ao tamanho de bichos desumanos. tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família como pecadores de uma mesma praga. maleita nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos destituir lentamente de toda a pouca normalidade.

abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga mugia noite inteira quando havia tempestade. dava-lhe frio e aflição de barulhos. era pesado que nos preocupássemos com a sua tristeza, se havia algo na sua voz que nos referia, como se soubesse nosso nome, como se, por motivo perverso algum, nos fosse melódico o seu timbre e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixá-la sem retorno, sem aviso de que a má disposição das nuvens era fúria de passagem.

com vento a bater nos tapumes da janela mal coberta, água a inundar esterco no chão, velha, ela ficava à espera de que algo repusesse o dia e a libertasse para o campo, a fazer nada senão comer erva, vendo-nos labor ininterrupto. nós não dormíamos, ficávamos a fustigar o sono com dores de cabeça, martírios horas e horas. o aldegundes, que se levantava para a tentar acalmar, falava-lhe e prometia-lhe tudo. o meu pai dizia que, a ele, a sarga o confundia mais na ideia de família, se nascera com ela ali e, já eu um irmão muito mais velho, haveria de ser em perigo que o aldegundes se deixaria com ela em brincadeiras. que tempo de crescer o de uma criança, exclamávamos, com uma vaca pela mão em companhia, conversas a sério como se fosse entre gente, e a gostar dela como se gosta das pessoas, ou mais do que das pessoas todas, dizia ele, só algumas é que não, como a mãe, o pai, o irmão e a irmã. assim ela acalmava um pouco à voz infantil dele e nós adormecíamos instantes, mas voltávamos a acordar com a trovoada, embatendo nítida sobre a nossa casa tão pequena, e com o gemido abafado da bicha que recomeçava.

nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós veem-nos com a vaca e lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso disparate de ter um animal tão tratado como família, e não entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que éramos muito lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava a acordar. o aldegundes vinha dizer-nos que ela tinha água nas patas e que em pressas se devia varrer dali inundação que lhe dava medo, e ele não reparava que também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de tormento sem mais sono.

o meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso segundo um rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a que servíamos. uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. por isso, esqueciam-se quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso, e só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um casal. à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele fizera os filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma. o meu pai entrava em casa muito tarde, quando estávamos recolhidos à luz da fogueira, e era feito silêncio para que aliviasse o cansaço e pedisse o que lhe aprouvesse. normalmente, tínhamos refeição da noite, jantar quente com vantagens sobre o desamparo da nossa condição social, e escutávamos as impressões do dia, as instruções para o que viria, e os votos de boa noite. por vezes, eu podia perguntar coisas. em noites de maior paz, faria perguntas sobre as mulheres e as promessas do corpo delas feitas ao desalento do nosso corpo de homens. e deixaríamos coisas ditas no ar, para continuar interminavelmente. eram coisas que se suspendiam sobre nós, como roupa a secar, e com que nos deparávamos mais tarde, como se lhes batêssemos com a cabeça numa distração qualquer, quando o trabalho era satisfeito e o tempo se permitia preciosamente ao convívio. o meu pai, o sarga, dizia-me que, se pudera pacificamente chamar-se afonso, sentiria maior felicidade. recordava os meus avós e jurava que chegaram a ter uma pequena terra só deles, escondida num muro à inveja dos trepadores e cultivada de legumes para servir uma fome só da família. era uma terra bonita de vistas, abençoada de fertilidade, calma de vento e cheia de furos de água. bebíamos e comíamos da nossa terra, lembro-me, contava o meu pai, era muito pequeno, como o aldegundes, e tudo ali nos bastava, como tínhamos galinhas e coelhos e o casal de porcos a fazer uma ninhada de leitões para cada ano, e era verdade que ninguém nos incomodava ou se acercava da nossa discrição. estávamos ali esquecidos para bem do nosso sossego. o meu pai sossegava e recolhia-se à cama, onde a minha mãe já se recolhera, a pedido de autorização, aliviada do peso do corpo em cima do pé torto, coçando longamente as pernas da comichão que lhe dava, atenta para acordar bem cedo na manhã seguinte.

quando chovia noite inteira era o pior. o aldegundes, fraco, um repolho de gente quase a querer ser homem, era descarnado e enfezado de altura e largura. que haveria de poder ele quando a sarga estava mais assustada e escutava menos as suas palavras. imaginava eu que ela assustada quisesse fugir para onde conhecesse mais seguro, soubéramos nós o que ela soubesse e talvez se acalmasse em algum lugar. mas, sem diálogo, ela ali ficava a debater-se com o coração aos saltos e o aldegundes choramingando súplicas, o meu pai infinitamente paciente, abdicado de descanso pela vaca, e eu sempre fazendo conta à atenção que lhe era dada, uma permissão desmedida no prejuízo das nossas noites. o aldegundes apossava-se do corpo da sarga pela cabeça, mas era verdade que ela era tonta, como fosse destituída da pouca inteligência que as vacas podiam ter. não tinha nem uma, o mais que fazia era reconhecer-nos e gostar de nós, isso sentíamos, e mais do que isso, nada. entornava os recipientes, perdia os caminhos, batia com o focinho nas paredes, enganada das portas. mas o aldegundes lá lhe esfregava a cabeça, olhos nos olhos, na escuridão. punha vela a arder protegida e queria muito não demorar. mas água que entrava era desordenada e cruel. e era certo que seria o que mais assustava a sarga, por isso ele se dava ao trabalho de varrer cuidadosamente tudo, porta aberta ao campo a enxotar esterco lá para fora, a vaca detida pela corda ao pescoço.

o meu pai levantou-se sem que a irritação lhe turvasse os sentidos. levou vela a juntar à do aldegundes e não se ouviu mais nada. a sarga calou-se de sossego e sono, especada na noite como uma coisa que só parecesse ser ela sem o ser. era como um objeto, sem voz nem movimento, disposto para o tempo da noite sem serventia nem mais nada. e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu pai, discernido superiormente sobre todas as coisas da nossa vida.

A urgência como motor da escrita

Confesso que, quando a prova de o remorso do baltazar serapião (assim, tudo em caixa baixa) chegou na redação, no finzinho do ano, perto do Natal, entrou numa pilha de “a serem lidos” e ficou esquecida por ali. Embora tivesse lido en passant coisas sobre ele nos blogs portugueses que acompanho, não consegui parar para dar atenção. Nesta semana soube que o romance chegaria às livrarias nos próximos dias (mais precisamente, no dia 29) e que ele viria para a Flip. É, não há o que negar, e esse é um dos grandes méritos de outros eventos literários como a Flip, o Fórum das Letras de Ouro Preto, a Fliporto, a Jornada de Passo Fundo: a confirmação de um autor atrai o interesse do público e, é claro, da imprensa. O fato de os três maiores jornais do País terem dado capa para o autor neste sábado é prova disso.

Não acho bom quando todos os cadernos literários saem com a mesma capa, mas, neste caso, é compreensível. Peguei o livro de quase 200 páginas pra ler numa noite e terminei poucas horas depois, quase sem fôlego. O mesmo aconteceu com o Antonio Gonçalves Filho, que fez a resenha sobre o livro na edição de hoje. Então dá para imaginar que os repórteres do Globo e da Folha tenham pensado a mesma coisa (embora imagino que para o leitor pareça lobby, por isso é ruim saírem todas as capas iguais).

A coisa de ser escrito todo em minúsculas, mesmo em início de frases e nomes próprios, a princípio mais me deu preguiça que interesse, tipo, ai, olha lá o cara querendo impressionar. Mas a construção da narrativa vence qualquer preconceito como esse. Ou, pelo menos, no meu caso venceu.

A história se passa num passado medieval, centrada numa família cuja trajetória se confunde com a de uma vaca de estimação, e lança os olhos sobre questões como imobilidade social e violência contra a mulher, ou algo como a bestialidade humana. Não descrevi com detalhes no meu texto do Sabático de hoje porque isso entrou na resenha do Toninho, que dá para ler na versão impressa.

Tá aí a entrevista, feita por e-mail, como prefere o autor. Num próximo post, coloco um trecho do livro para quem não leu o livro ter noção.

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Ana Pereira/Divulgação
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Aguardado na Flip de 2011, o angolano Valter Hugo Mãe fala sobre o premiado romance O Remorso de Baltazar Serapião, lançado no Brasil e comparado a um ”tsunami” literário

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

E os sismógrafos não registraram nada?, quis saber José Saramago (1922-2010) quando, em outubro de 2007, descobriu que O Remorso de Baltazar Serapião, romance então agraciado com o prêmio que leva seu nome, estava à venda desde março do ano anterior. Só semanas antes da premiação o escritor havia lido a obra do angolano Valter Hugo Mãe e sentido o impacto daquele “tsunami linguístico, semântico e sintático”.

Hoje devidamente reconhecido em Portugal, Valter Hugo Mãe já esteve cinco vezes no Brasil sem que os sismógrafos literários dessem sinal de abalo. A visita mais recente, em 2008, foi como convidado de uma feira literária em Brasília, mas sem nenhum livro lançado por aqui; das outras vezes veio em nome da extinta Quasi Edições, que publicou no além-mar Ferreira Gullar e Caetano Veloso, entre outros. O próximo desembarque será diferente. Confirmado para a 9.ª Flip, o autor chegará ao público já com seus dois mais elogiados romances lançados por aqui. O Remorso de Baltazar Serapião está previsto para os próximos dias pela Editora 34, e A Máquina de Fazer Espanhóis, que arrebatou a crítica portuguesa no ano passado, foi comprado pela Cosac Naify, que pretende publicá-lo a tempo da festa literária, em julho.

Dono de uma narrativa desconcertante – a começar pela grafia, toda em letras minúsculas, o que vale inclusive para o modo como assina o próprio nome -, o autor de 39 anos se diz entusiasmado por voltar à terra onde fica “como menino sonhando com água de coco e queijo coalho”. Veja, a seguir, a íntegra da entrevista que concedeu por e-mail ao Sabático.

No livro, você coloca a pureza do amor de serapião em contraponto às violências que ele comete contra essa mulher que ama – e que, no fim das contas, não faz mais que cumprir seu papel na sociedade. Nesse sentido, embora transcorra num passado medieval, a história não poderia se passar nos dias atuais?

Sim. Todo o livro é uma ostentação de estigmas sociais que sobrevivem até hoje. Lutamos ainda muito para que a dignificação deixe de ser um problema de género, mas a cultura continua a tender para exigir do homem uma predominância que atira as mulheres para um poder quase sempre apenas sensual e muito objectificado.

O baltazar serapião julga fazer tudo pelo bem, instigado por uma mentalidade que parece reclamar dele uma intervenção sempre impiedosa. Quando fui advogado defendi quase só mulheres em processo de divórcio cujas vidas poderiam ultrapassar no horror a vida da bela ermesinda do meu livro. Não poderei nunca esquecer essas conversas e o desespero dessas mulheres com idade para serem minhas mães e absolutamente perdidas num preconceito social que não as protege e permite ao homem toda a devassidão e agressividade.

Por que optou por ambientá-la nesse passado medieval?

Quis fazer um jogo com a linguagem, mas também para que a questão da subjugação das mulheres fosse conotada indubitavelmente como algo medieval. Depois de fazer com que as pessoas concordem com o ser algo medieval, típico de um tempo de trevas mental, será mais fácil reclamar alguma responsabilidade ponderando que não pode mesmo continuar a ocorrer nos dias de hoje. É um ataque às hipocrisias, claro.

Embora seja uma narrativa completamente diferente, a desconfiança atormentada de uma mulher cuja traição nunca é revelada é tema central de uma das maiores obras da literatura brasileira, Dom Casmurro, que, ainda hoje, mais de um século depois de escrita, levanta discussões entre os leitores. Consegue imaginar efeito similar numa história de traição do homem?

Claro que não. A sociedade quase espera do homem essa traição, de uma mulher nunca. A mulher traidora é corrompida pelo mal, o homem traidor pode ser um herói, o galã sedutor que não faz mais do que exercer com esplendor a solicitação do seu código hormonal.

Interessa muito em termos simbólicos que a desconfiança acerca da traição da mulher nunca seja comprovada ou justificada, porque creio que o tempo ainda não se redimiu da história das mulheres. Eu creio que a história ainda não conseguiu desculpar-se e, nesse sentido, aquilo por que as mulheres passaram e passam continua a ser assente no disparate e no abuso revoltante do poder por partes dos homens.

A história ainda não cumpriu as mulheres. São, de algum modo, um ser humano para o futuro, porque o passado e o presente substancialmente não lhes pertenceram e não pertencem.

Como foi o trabalho de recriar, ou inventar, essa linguagem que remete a esse tempo arcaico? Foi necessário algum tipo de pesquisa ou apenas um exercício de imaginação?

Sou fascinado com deixar que a imaginação decida quase tudo, mesmo correndo riscos. Gosto de trabalhar a partir da minha quietude e da possibilidade de efabular. Não pesquisei, apenas estive atento para que não usasse algo descabido. Com a linguagem, no entanto, tudo pode caber se houver coerência e um sentido estético. Claro que esse sentido estético não pode abdicar do conteúdo. Importa ter algo que dizer, porque é fundamental que um romance, mesmo sendo pura ficção, contenha uma tese, um pensamento que provoque no leitor a necessidade de decidir algo, de concordar ou discordar com um tema maior.

A relação entre o sagrado e o profano também é central no livro. São características indissociáveis do homem?

Estou sem convicções na transcendência, mas a questão espiritual sempre me acompanha. Somos votados a uma sacralização de nós mesmos, ainda que sem deus. É importante que vejamos o homem, o planeta, a vida, como algo de uma dimensão interior, urgente de respeitar e apaziguar. Os meus livros sempre têm essa ansiedade perante o respeito e a dignificação das coisas relevantes, daquilo que pode produzir felicidade. Como não acredito na felicidade depois da morte, gosto de pensar na criação de uma espiritualidade diferente, que seja feita de acreditarmos em nós, e uns nos outros, ao invés de acreditarmos num deus inventado.

Há essa característica curiosa no livro, da família se desintegrando e suas existências se desconstruindo à medida em que a narrativa se constrói. Como pensou nesse formato, pode comentar?

Este livro pensa no ser humano como se destruindo por defeito. É como pensar numa apoteose que se assemelha mais a uma implosão. O final do livro é de facto uma implosão, como se convergissem as personagens e tivessem sua solução sumária. Parecem tombar num mesmo poço, fechando a história. Pensei que seria um modo de fazer a narrativa exuberar na linguagem e nos quadros descritos enquanto ao nível dos significados tudo se enegrecia e criava entropia. Há uma voracidade que sentencia as personagens mas que serve para a plasticidade do romance, tornando o assunto do livro ainda mais contundente e desarmante. Algo mais cruel.

Você diz em entrevistas que o uso de minúsculas cria uma aceleração na leitura que interessa a você. Por que acha essa aceleração interessante? A leitura mais lenta não pode, por vezes, permitir ao leitor a percepção de mais significados no texto?

Sim, concordo que a lentidão pode fornecer esse tempo de reflexão, mas acho que tenho urticária a coisas chatas, textos, filmes, conversas que não progridem logo e se tornam ritmadas, despachadas. Talvez nos meus livros revele um pouco essa impaciência. Sou até um indivíduo contemplativo, mas em pouco tempo de contemplação posso já ter ficado impressionado, comovido, chorei litros de lágrimas e bastou para que mude minha vida. Não fico nunca parado muito tempo. Os meus livros têm todos um sentido de urgência, quer porque sempre ando ocupado com assuntos que me agridem e sobre os quais quero pensar melhor, pensar mais perto, quer por essa vontade de envolver logo o leitor e o fazer correr dentro da história sem travão.

José Saramago era um grande entusiasta deste romance. Ele foi um autor que influenciou sua escrita? Se sim, de que maneira?

Sim, Saramago foi alguém que admirei e admiro muito, sobretudo pela sua vocação interventora. Ele quis ter opinião, quis exercer opinião, ser cidadão. Muita gente hoje demite-se da cidadania, não vota, não reclama, não propõe nada, não quer saber. Cresci respeitando muito o Saramago porque acima de tudo ele sonhou com um país melhor para mim, sonhou com um mundo melhor para todos nós e participou com esse sentimento genuíno de bem do colectivo dos homens. Identifico-me muito com isso.

Quando o Saramago elogiou o meu livro e se tornou de algum modo um admirador meu, recebi daí uma recompensa preciosa por ter querido tornar-me escritor.

Quando fundou a Quasi Edições você ajudou a levar ao público português autores brasileiros contemporâneos, como Caetano Veloso e Ferreira Gullar. Quais são os escritores brasileiros que chamam a sua atenção atualmente?

Tenho estado a ler Rubem Fonseca, que é maravilhoso. Tem de haver uma onda Rubem Fonseca por todo o mundo porque adoro o modo, como vocês dizem, desenrolado e inteligente de ele dizer as coisas. Gosto muito do humor dele. Façam o favor de dizer no Brasil que estou apaixonado por ele.

E minhas paixões brasileiras não ficam por aí. Tem sido muito importante a edição em Portugal dos livros do Chico Buarque, que os portugueses amam por inteiro desde sempre. Eu fiquei contente com o sucesso de Leite Derramado. Fico contente de mais que ele assuma seu lugar de grande escritor, porque ele foi sempre um escritor genial que tinha de gastar mais tempo com os textos para eles virarem romances.

E Marcelino Freire, gosto muito, Nelson Rodrigues, gosto muito, Marcelo Mirizola diverte-me muito (maravilhosa cabeça suja), Evandro Affonso Ferreira, muito exuberante, gosto muito, Bernardo Carvalho e Rubens Figueiredo, gosto muito.

O trabalho de instituições portuguesas como o Instituto Camões tem feito gerações de autores lusos se tornarem conhecidos no Brasil. O governo brasileiro não tem uma ação nesse sentido no que diz respeito aos autores brasileiros. O público português costuma ter interesse pelas novas gerações de brasileiros?

O público português teria interesse caso pudesse conhecer. O Brasil precisa encontrar urgente o seu instituto análogo, um Instituto Guimarães Rosa? Drummond? Há muito génio a quem pedir o nome. A cultura brasileira teria muito a ganhar. Cultura é identidade e identidade é sempre fundamental para a auto-estima de um país. Alguns dos nomes que mencionei acima não têm edição portuguesa. Leio-os porque sou visceralmente afectado pelos livros. Tenho pena que o público mais convencional não possa ser confrontado com eles.

Você já definiu seu livro A Máquina de Fazer Espanhóis, previsto para sair por aqui no meio do ano, como um “exercício de justificação para a vida depois de uma perda desta dimensão”. Como foi escrever sobre sensações da terceira idade estando tão longe dela?

Perdi o meu e fui pela imginação adentro buscando o que sobrava dele dentro da minha vida. Foi assim. Procurei bem na minha imaginação como seria um homem de 84 anos e encontrei muitas possibilidades. Os leitores disseram que entendi. Chorei em muitas sessões com o público porque é milagroso que pessoas com 80 e mesmo 90 anos me digam que sou um deles, que estou entre eles como igual. Consegui, de alguma forma, conviver com a terceira idade de um homem que poderia ter sido o meu pai. Só não foi porque ele morreu antes de deixar de ser novo.

Você escreve prosa e poesia, tem um grupo musical, dedica-se também às artes plásticas. Por que esses interesses tão amplos? São formas de expressar que a literatura não compreende?

São formas de cobiçar a vida. Cobiço a vida, quero sempre intensificar a minha existência, fazer do meu tempo algo importante para mim, aprender e levar-me além do que seria de esperar. Adoro artes, adoro a música, a pintura, o cinema. Não consigo ficar passivo. É claro que sou um cantor sofrível e um artista plástico ainda pior, mas é importante que o experimente e use as expressões para preencher meus fascínios. Sei que sou um escritor e é como escritor que espero ser responsabilizado, mas não quero ter de pedir licença para cantar um fado ou desenhar um pequeno monstro amoroso. O que nos é natural não pode ser absolutamente reprimido sob pena de habitarmos uma versão falsa de quem verdadeiramente somos.

Não tente fazer isso no seu Kindle

Como não tenho coragem de grifar livros nem a lápis, peguei essa mania de dobrar pontinhas de páginas quando algum parágrafo me chama a atenção. Só a beiradinha mesmo, coisa discreta, com dó no coração, para não estragar. A regra é meio aleatória: se o parágrafo ficar mais pra cima da página, dobro a ponta de cima; se ficar mais perto do pé, a de baixo; se ficar no meio… bem, sei lá. Não raro, ao terminar o livro nunca mais consigo descobrir por que exatamente dobrei aquela ponta, mas daí fico com pena de desmarcar e não ter a chance de saber que em algum momento um parágrafo foi importante para mim.

Assim sendo, minhas estantes estão cheios de livros com essas dobrinhas espalhadas pelas beiradas. Lembrei disso quando a Dani Arrais, nessa generosidade de quem garimpa tanta coisa incrível que pode se dar ao luxo de doar links a blogs-amigos, me mandou esses origamis em livros do Recyclart.

Vou ver se nas próximas leituras encontro mais trechos interessantes para tentar um desses.

A coluna da semana

[publicado no Sabático de 15/1]

BABEL

Raquel Cozer – raquel.cozer@grupoestado.com.br

País terá plataforma online para catálogos de editoras

Em até um ano deve entrar no ar na a versão brasileira da plataforma espanhola Dilve (Distribuidor de Información del Libro Español en Venta), banco de dados online para gestão e distribuição de informação bibliográfica e comercial do livro. O projeto teve início no último semestre, quando a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e a Associação Nacional do Livro (ANL) firmaram acordo preliminar com a Federación de Gremios de Editores de España (FGEE). O programa, gratuito para associados das entidades, permitirá que editoras pequenas, médias e grandes cadastrem seus catálogos, com dados como ISBN, capa, sinopse e trechos. “Será interessante em especial para pequenos e médios livreiros, já que grandes livrarias têm ferramentas próprias, mas também terá utilidade como um grande canal de informações sobre os títulos disponíveis para venda no País”, diz Vitor Tavares, presidente da ANL. Sem nome definido, a plataforma terá convênio ainda com a Fundação Biblioteca Nacional, responsável pelo cadastro de ISBN.

MÚSICA – 1
Dr. Ozzy responde

Seus problemas acabaram: na semana que vem, a Benvirá começará a pedir no Twitter sugestões de questões para Ozzy Osbourne responder no livro que lança este ano, Pergunte ao Dr. Ozzy. A obra é baseada na coluna de saúde Ask Dr. Ozzy, do Sunday Times, na qual, “após décadas usando e abusando de seu corpo”, o músico doutrina leitores a partir de seus próprios erros. Algumas perguntas entrarão na edição internacional, escrita com Chris Ayres.

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Do ano passado, a biografia Eu Sou Ozzy vendeu mais de 30 mil cópias pela Benvirá.

MÚSICA – 2
Referências do rock

O selo Rough Guides, conhecido pelos guias de viagem, chegará ao Brasil numa série de livros de referência sobre rock. Sem data definida, os títulos sairão pela Aleph e pela DK (subsidiária da Penguin), com biografias, discografia e curiosidades. Abrem a série Led Zeppelin, Bob Dylan (ambos pelo ex-editor da Times Nigel Williamson) e Pink Floyd (por Toby Manning, do Guardian).

NA PELE 
Para sempre sua

Ao descobrir que leitores vinham tatuando imagens baseadas em poemas de um autor da casa, a independente Black Ocean criou uma promoção: quem fizer o mesmo ganhará títulos da editora pelo resto da vida. Depois disso, o autor homenageado nas tais tatuagens, Zachary Schomburg, decidiu levar a ideia para sua própria editora, Octopus Books. Será que a moda pega?

DAS ANTIGAS
Novas aventuras da velha Carrie

Espécie de Sex & The City retrô, The Group, de Mary McCarthy, sairá pela Record em 2012. A obra de 1963 satiriza a alta sociedade da Nova Inglaterra, seguindo mulheres envolvidas com questões ainda atuais: uma é viciada em sexo, outra se submete ao egocentrismo do marido, outra vive de escrever sobre livros e por aí vai. Candace Bushnell, autora de Sex & The City, faz a introdução.

QUADRINHOS
Crônicas visuais

Sai em março o novo trabalho de Marcello Quintanilha, vencedor do HQMix 2009 de melhor desenhista nacional por Sábado dos Meus Amores. Em Almas Públicas, o niteroiense volta às crônicas visuais, mesclando o trágico e o cômico nas rotinas de personagens e aproximando-os do Rio antigo.

FESTIVAL
Versão jovem da Jornada

A programação da 14.ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, a ser divulgada semana que vem, terá pela primeira vez encontros para jovens de 15 a 25 anos, de cursos tecnológicos e universitários. A Jornight será coordenada pelo historiador e roteirista João Alegria, sempre das 19h30 às 21h30. A Jornada ocorre de 23 a 25/8.

VÍDEO
Hatoum por Hatoum

Milton Hatoum é o segundo convidado da série mensal Leituras Sabáticas. Ele lê texto próprio em vídeo no estadao.com.br/e/s2.

Um projeto que dá o que falar

[publicado no Caderno 2 de 13/1]

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Na Câmara, proposta tenta impedir pontos de venda de selecionar os títulos que comercializam

Ayrton Vignola/AE

Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo

Um projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados propõe que livrarias sejam obrigadas a disponibilizar para venda todo livro apresentado por autores ou editores, partindo do princípio de que tais pontos de venda “não são meras casas comerciais”. Pela proposta, caso não queira comercializar alguma obra, o livreiro terá de expor por escrito as razões ao editor e ao autor, que poderão pedir a interferência da Câmara Brasileira do Livro (CBL).

O projeto n.º 7913/10 foi apresentado em 17 de novembro pelo ex-deputado federal Bonifácio de Andrada (PSDB-MG) como adendo à legislação de 2003 que instituiu a Política Nacional do Livro. Na justificativa, Andrada afirma que a lei n.º 10.753/03, embora tenha a finalidade de “assegurar ao cidadão brasileiro o direito de produção, edição, difusão e comercialização do livro”, “não criou mecanismos práticos” para que os autores consigam a circulação das obras.

A CBL e a Associação Nacional de Livrarias (ANL), que não foram consultadas pelo deputado, só tomaram conhecimento do projeto em dezembro, após ser encaminhado para apreciação da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania. O assunto ganhou repercussão na rede esta semana, quando Jaime Mendes, gerente comercial da Zahar, abordou-o em seu blog Livros, Livrarias e Livreiros, em post intitulado “Projeto de Lei proíbe livrarias de selecionar os livros que vendem”.

O presidente da ANL, Vitor Tavares, destaca que “não existe livraria no Brasil, nem megastore, que tenha espaço físico para disponibilizar para venda todos os livros produzidos no Brasil” – só em 2009, segundo o balanço anual Produção e Vendas do Setor Editorial, realizado pela Fipe, foram mais de 22 mil lançamentos e 30 mil reedições. “Além disso, cada livraria tem sua peculiaridade. Você não pode impor a uma livraria especializada em livros em francês que comercialize um título que não seja desse nicho”, diz Tavares.

O editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, que administra duas lojas do grupo Martins Fontes, destaca que, caso sua equipe de compras (formada por dez pessoas) seja obrigada a justificar por escrito cada recusa de livro, “não terá tempo para fazer absolutamente mais nada”.

“É deprimente que um deputado resolva fazer alguma coisa pensando no mundo dos livros, dos autores, das livrarias, e simplesmente não converse com alguém do mercado. Basta conversar cinco minutos para saber que essa proposta é totalmente inviável”, diz Martins Fontes.

“Na iniciativa privada, cada um compra o que quer. Escolhemos nossos títulos assim como um mercado compra o arroz que quer, o feijão que quer”, argumenta Pedro Herz, proprietário da Livraria Cultura. “Se não posso selecionar o que quero pôr dentro da livraria, então vou cobrar do deputado a construção desse espaço para colocar tudo o que existe, o que deve equivaler a um prédio maior que o da Fundação Biblioteca Nacional.”

Descendente de José Bonifácio, o patriarca da Independência, Bonifácio Andrada foi deputado federal nas últimas oito legislaturas e é membro da Academia Mineira de Letras, com vários livros publicados. Ao Estado, disse que o projeto é uma tentativa de ajudar autores “que não estão protegidos pelos livreiros e pelos distribuidores”. “Fico feliz de colocar o assunto em discussão. O que quero é dar condições ao autor de ter pelo menos o seu livro analisado.” A ANL pretende agora, com o fim do recesso, conversar com o relator do projeto de lei, o deputado Mauro Benevides (PMDB-CE).

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Para independentes, conversa e boa edição são o caminho

Uma boa livraria, na definição do editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, “é aquela que atende aos interesses do mercado e faz uma seleção representativa do que se produz no Brasil e no mundo”. Dessa forma, diz, é natural que livrarias deem mais atenção a editoras maiores, que mais produzem. “Até estatisticamente é maior a possibilidade de que essas editoras tenham títulos interessantes a oferecer.”

Ainda assim, as duas lojas da Martins Fontes administradas por ele optam por um método que aumenta a probabilidade de um autor independente ou de editora pequena emplacar títulos para venda. Com espaço para 100 mil volumes, o livreiro optou por disponibilizar nas prateleiras só um exemplar de cada título, de modo a oferecer maior variedade. Só nas vitrines e nas “ilhas”, reservadas para obras que vendem mais, os títulos aparecem em maior quantidade. Uma loja como a Laselva, por exemplo, uma das maiores redes do mercado, trabalha com 3 mil títulos por loja.

Embora seja comum ouvir de pequenos editores reclamações quanto à dificuldade para conseguir a atenção das grandes redes, a maior parte de autores e editoras independentes consultados pelo Estado afirmou que, se a obra for interessante, o caminho se torna fácil. O escritor Antonio Xerxenesky lembra que, quando participou em Porto Alegre da criação da independente Não Editora, imaginou que a distribuição “seria o grande demônio” do negócio. “Mas, quando levamos nossos livros na Livraria Cultura (de Porto Alegre), fomos muito bem recebidos. As edições são lindas e impressionam muito, passam um ar de profissionalismo. Não tivemos nenhuma barreira ou dificuldade para entrar nas grandes redes.”

Sérgio Coutinho, morador de Maceió e autor de dois livros (O Movimento dos Movimentos e Manual de Metodologia para a Pesquisa Jurídica), cuidou pessoalmente da distribuição de suas obras – também tentou primeiro na Livraria Cultura, no Recife. “O responsável por compras encaminha condições gerais do contrato e aguarda resposta por email. É tudo muito rápido”, conta. No caso do Manual, a obra mais recente, foram apenas dois dias de conversas. “Amanhã já poderei levar exemplares do livro para Recife. A livraria distribuirá os exemplares entre as diversas unidades. Até o fim da semana o livro estará à venda pelo site.” O segredo, diz, é que o autor tenha “menos vaidade e vergonha do que vontade de ser lido”.

Menos sorte teve Eduardo Sterzi, que achou fácil emplacar seu livro Prosa só em livrarias pequenas. “Nas grandes foi quase impossível, rendendo até episódios cômicos, como na Fnac. O comprador perguntou: ‘Este livro é de quê?’ Respondi: ‘De poesia.’ Ele, olhando para o título na capa, disse: ‘Prosa, poesia… nada disso vende.’ E a conversa se encerrou por aí.”